Desde o surgimento da síndrome infecciosa pandêmica Covid-19, associada ao coronavírus SARS-CoV-2, múltiplos estudos científicos têm sido desenvolvidos no intuito de contribuir para o controle da disseminação, morbidade e mortalidade relacionada ao processo infeccioso por essa partícula viral.
Simultaneamente, frente à novidade da pandemia e ao gradual conhecimento obtido decorrente das investigações, muitos questionamentos têm surgido, assim como suposições ou falsas informações sobre os métodos de tratamento e profilaxia. A desinformação têm prejudicado significativamente a adesão aos programas de vacinação anti-Covid-19, com consequente prejuízo no controle da pandemia e favorecimento do surgimento de novas variantes com novas ondas de casos em todo o mundo.
Um dos pilares teóricos dos movimentos anti-vacina-Covid-19 divulgado e acolhido por muitos está relacionado com a hipótese de toxicidade da glicoproteína da espícula (Spike protein ou proteína S) de SARS-CoV-2 para os seres humanos, o que resultaria em quadros de efeitos adversos significativos, incluindo levando a quadros de distúrbios de coagulação e ao óbito.
Tal estrutura faz parte de algumas propostas vacinais em distribuição em diferentes países. Afinal, a Spike protein (proteína S) de SARS-CoV-2 é tóxica para os seres humanos e pode significar um risco para os vacinados? Trazemos aqui resumidamente o que até o momento foi publicado sobre essa teoria e as implicações sobre o que foi divulgado.
A infecção pelo SARS-CoV-2 e o papel da glicoproteína S
O coronavírus SARS-CoV-2 infecta as células do hospedeiros humano e outros através da ligação da spike protein com a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2, enzima conversora de angiotensina I em angiotensina nonapeptídeos) e seu receptor celular. A glicoproteína S consiste em uma estrutura trimérica, de 1273 aminoácidos e dois domínios funcionais (as subunidades S1 e S2), que catalisa a fusão da partícula viral com a membrana da célula hospedeira.
Esse trímero “pré-fusional” apresenta três domínios de ligação ao receptor denominados RBD (receptor-binding domains), presentes na S1 e de alta afinidade com ACE2. A entrada viral na célula hospedeira requer a clivagem da proteína S na junção entre as subunidades S1 e S2 por proteases celulares. Essa clivagem pode acontecer após a adesão viral pela protease de superfície denominada TMPRSS2 ou no interior do compartimento lisossômico após a internalização viral.
Esse processo proteolítico permite a dissociação da subunidade S1 (S1 solúvel) e o rearranjo conformacional da subunidade S2 necessário para o início da fusão viral com a membrana celular. Um pré-processamento da proteína S no SARS-CoV-2 por um sítio adicional de clivagem de furinas (não existente em outros coronavírus) permite a penetração viral através da membrana celular sem mesmo a necessidade de internalização por lisossomas, o que torna o processo mais eficiente.
Estima-se que a atividade de furina em diversos órgãos favorece os quadros clínicos graves de Covid-19, especialmente em diabéticos nos quais se detecta a superexpressão dessas proteases. Adicionalmente, o trímero RDB na partícula viral pré-fusional mantém dois dos domínios “escondidos”, não permitindo a interação com fatores do sistema imune (ex. anticorpos).
A infecção pelo coronavírus leva a um processo complexo de resposta imune que desencadeia a liberação de uma “tempestade” de citocinas pró-inflamatórias, especialmente IL-6 e IL-1𝛃, resultando no desenvolvimento da síndrome Covid-19. A maioria dos pacientes infectados desenvolve anticorpos contra a proteína S, mas a proteção imune contra o SARS-CoV-2 está relacionada com a produção de anticorpos neutralizantes.
Uma das teorias vigentes quanto aos quadros moderados a graves de Covid-19 está relacionada ao desbalanço do sistema renina-angiotensina induzido pela infecção por SARS-CoV-2. Sob condições fisiológicas normais, a angiotensina II aumenta a pressão arterial devido a vasoconstrição, e simultaneamente promove inflamação local, coagulação sanguínea, trombose, fibrose, e aumenta a permeabilidade capilar que pode resultar em edema.
A angiotensina têm o efeito oposto, isto é, leva à redução da inflamação, trombose, fibrose, e leva à vasodilatação. Dessa forma, o estímulo da expressão de ACE (ou ACE1, enzima conversora de angiotensina I em angiotensina II ou angiotensina octapeptídeos) e/ou a inibição da expressão de ACE2 na superfície das células podem resultar em dano tecidual (especialmente pulmonar) significativo.
Já foi demonstrado que a infecção por SARS-CoV-2 reduz o nível de expressão celular de ACE2, diminuindo a atividade dessa enzima, o que resultaria em um desbalanço nos níveis de angiotensina II e angiotensina no tecido pulmonar, por exemplo, e favoreceria o processo de trombose e danos subsequentes, e tais alterações poderiam estar relacionadas com infecções com alta carga viral para proporcionar tamanha alteração.
Alguns autores, através de experimentos in vivo com modelos animais, sugerem que a proteína S íntegra não induz tais alterações, mas quando processada ou em ambiente ácido, podem induzir aos danos pulmonares por downregulation de ACE2. É importante lembrar que a proteína S é expressa na superfície de células infectadas em processo de produção de novos vírions e promovem diversos efeitos fisiológicos como micropinocitose e fusão de membranas entre células vizinhas.
Jiang & Mei (2021) sugerem que essa glicoproteína também resulte em danos diretos no DNA baseados em resultados de experimentos in vitro, porém tal estudo sofreu críticas significativas quanto a qualidade metodológica consequentemente com conclusões questionáveis (Freed & Schildgen, 2021).
Letarov et al. (2021), por exemplo, sugerem a hipótese de que a subunidade S1 solúvel, a qual contém os domínios RBD intactos, apresenta atividade significativa no processo de downregulation de ACE2 e seus efeitos deletérios. Outros supõem que a proteína S pode atuar diretamente como indutora da trombose arterial e suas consequências. Adicionalmente, a presença de RNA de SARS-CoV-2 na corrente sanguínea poderia também contribuir para a hiperatividade plaquetária.
Novas hipóteses também têm sido divulgadas como estímulo ao esclarecimento e melhor compreensão da fisiopatologia da Covid-19. Theoharides (2022) discursa sobre a possível associação da penetração da proteína S pela barreira hemato-encefálica levando à inflamação perivascular, por ativação da microglia em associação com produção de citocinas inflamatórias. Tal mecanismo de neurotoxicidade poderia estar diretamente associado com a síndrome longa de Covid-19, caracterizada por cronicidade de sinais e sintomas como fadiga e sintomas neuropsiquiátricos.
Em pacientes infectados por SARS-CoV-2, uma série de anticorpos monoclonais contra a partícula viral já foi descrita, sendo que os principais anticorpos neutralizantes são específicos para a região RBD, e outros para a região N-terminal (NTD) da estrutura S1 e regiões da S2.
Tais aspectos justificam o uso da glicoproteína S e de fragmentos da região RDB como alvo do desenvolvimento de vacinas. Adicionalmente é importante lembrar que o domínio S1 apresenta altas taxas de mutação, especialmente nas regiões RBD, o que pode comprometer a especificidade de algumas vacinas, especialmente de material genético, para algumas variantes do SARS-CoV-2.
Então, as vacinas anti-Covid-19 podem ser tóxicas?
As diversas vacinas anti-Covid-19 disponíveis atualmente exibem características distintas quanto ao modo de ação, administração, composição e outros detalhes, mas todas envolvem em sua composição a presença da glicoproteína S (ou do fragmento RBD da subunidade S1) ou o material genético viral codificante que levará a expressão temporária dessa estrutura pelas células do hospedeiro vacinado (Heinz & Stiasny, 2021).
Observa-se que após a aplicação intramuscular das vacinas de material genético, serão expressas proteínas S na superfície celular das células musculares, fibroblastos, células endoteliais, células dendríticas e outras (Moghaddar, Radman & Macreadie, 2021).
É fato que o material genético inserido por via vacinal é rapidamente degradado e a expressão da proteína S também é temporariamente obtida até a indução da resposta imune adquirida, o que não justificaria um desbalanço significativo no sistema conduzido por ACE2 e nem a progressão dos efeitos como ocorre na infecção natural pelo coronavírus pandêmico, porém mediante os relatos de efeitos adversos observados em inúmeros pacientes, especialmente quanto a febre, cefaleia, mialgias e distúrbios de coagulação, não se pode descartar a hipótese de indução de alterações na coagulação e outros pela proteína S vacinal.
Estudos com a inoculação de fragmentos da proteína S em modelos animais, como zebrafish (os quais exibem receptor de ACE2 com 72% de homologia com humanos), observaram efeitos deletérios significativos hepáticos, renais, ovarianos e tecidos cerebrais nos estudos experimentais realizados, o que podemos inferir para os efeitos adversos observados em seres humanos (Charlie-Silva et al., 2021, 2022; Nuovo et al., 2021; Ventura Fernandes et al., 2022).
Portanto, apesar dos efeitos adversos pós-vacina não ocorrerem na maioria dos vacinados, devemos ter cautela quanto a possibilidade da ação direta da proteína S sobre os mecanismos deletérios induzidos.
Até o momento não há comprovação científica dessa associação direta, e nem se a dose de proteína S vacinal seria suficiente para os efeitos adversos, os quais podem ser também influenciados ou associados à composição vacinal por outras moléculas e adjuvantes ali presentes.
Por outro lado, considera-se que uma forma de evitar os efeitos adversos já descritos, e ainda não definidos quanto a indução por adjuvantes ou por estruturas virais, consiste na avaliação de outros alvos imunogênicos de SARS-CoV-2 (ex. proteína E, proteína N, proteínas ORF3a, ORF6 e ORF7b, ORF10 e outros) como promissores substitutos componentes vacinais.
Fonte: PEBMED