A poetisa e ensaísta americana Anne Boyer tinha acabado de completar 41 anos quando foi diagnosticada com um dos piores tipos de câncer de mama, para qual o tratamento era muito agressivo.
Na época, ela ganhava um salário modesto dando aulas e não sabia muito sobre câncer. Desde então, ela diz que aprendeu muitas coisas – especialmente sobre o sistema de saúde dos Estados Unidos.
Boyer diz que a lógica capitalista muitas vezes faz as pessoas acharem que quem tem câncer em parte o merece. Ela também descobriu que o câncer é cercado por mitos, como a ideia de que uma atitude positiva pode ajudar a curá-lo. E percebeu que a linguagem usada para falar sobre o câncer é problemática, porque sobreviver ao câncer não é vencer uma corrida e morrer não é perdê-la.
Depois de ser submetida a uma dupla mastectomia, e quase sem conseguir ficar em pé, Anne Boyer foi mandada para casa sem poder passar uma única noite no hospital, exatamente como acontece com aproximadamente 45% das mulheres que se submetem a cirurgias nos Estados Unidos.
Com as bolsas de drenagem ainda costuradas ao peito, dez dias após a cirurgia ela já estava de volta trabalhando como professora.
Tudo isso, ela relata, a fez repensar a mortalidade e as políticas de gênero relacionadas à saúde, a distribuição diferenciada da dor e o sofrimento com base na condição social e de gênero. O resultado de tudo isso é seu livro The Undying (algo como ‘imortal’, em tradução livre), que ainda não tem edição no Brasil.
Vencedor do Prêmio Pulitzer em 2020, o livro mistura autobiografia, filosofia, poemas, textos antigos, dados, estatísticas e estudos científicos.
A BBC Mundo entrevistou a autora, que participa do festival literário Hay Festival Querétaro, no México.
BBC News Mundo – Em The Undying, você reflete sobre a mortalidade, um assunto que é quase tabu. Por que não queremos pensar sobre a morte e por que deveríamos?
Anne Boyer – Os EUA têm uma relação curiosa com a morte. Seus filmes, programas de televisão e videogames estão repletos de mortes violentas. Cadáveres enchem as telas e isso é vendido como entretenimento. Nossa linguagem é frequentemente rude e violenta, e nossos militares e nossas indústrias levam a morte ao resto do mundo. No entanto, quando se trata da própria morte – não de sua versão cinematográfica – nós a escondemos, desinfetamos, terceirizamos, pois ela entra em conflito com a filosofia da positividade a todo custo. Se não pensarmos sobre a morte de uma forma realista, ficamos com essas versões prejudiciais e manipuladoras dela.
BBC News Mundo – Ainda existem muitos mitos sobre o câncer. Qual é o pior?
Boyer – O pior mito é pensar que as pessoas têm câncer de alguma forma são culpadas por isso. Nas últimas décadas também cresceu a ideia de que se uma pessoa for positiva e tiver uma boa atitude perante a vida, ela pode superar o câncer. Isso não é verdade. Atitudes não causam câncer, nem curam. O mito da atitude positiva resume-se principalmente à imposição de uma norma machista, ou seja, a ideia de que as mulheres devem sempre ser alegres e sorrir mais.
BBC News Mundo – No livro, você também explora a relação do capitalismo com a saúde. A lógica do capitalismo se impõe sobre o bem-estar?
Boyer – O capitalismo americano impôs uma lógica perversa de individualismo extremo e corrosivo, que coloca todos em competição contra todos e, às vezes, as pessoas contra si mesmas. Os doentes, deixando de ser entidades capitalistas “produtivas” e competitivas, são vistos como perdedores, a menos que sobrevivam e, desse ponto de vista, os mortos são os perdedores e os sobreviventes são os sujeitos capitalistas adequados.
No esquema capitalista, acredita-se que tudo é uma opção e, portanto, que o câncer também é uma opção. Essa retórica esconde que, na realidade, muito do que nos acontece não é o resultado de nossa escolha, é um conjunto de condições compartilhadas, de forças históricas, de estruturas político-sociais.
Mas quando isso é escondido de nós, ficamos tão perturbados que começamos a acreditar que cada um de nós tem controle até mesmo sobre a divisão patológica de nossas células.
BBC News Mundo – O câncer hoje é mais conhecido do que nunca e a medicina tem feito grandes avanços, mas, paradoxalmente, para muitos pacientes com câncer nos Estados Unidos hoje, é muito difícil ter acesso a um tratamento adequado. Por que o setor de saúde se tornou tão desumano?
Boyer – A resposta simples é: lucro. Durante a pandemia do coronavírus, os profissionais de saúde parecem ter experimentado as pressões destrutivas desse modelo lucrativo, crise de saúde mental, esgotamento, como nunca antes. Se a medicina americana não está servindo nem para médicos, enfermeiras e outros trabalhadores, a questão é: para quem ela serve? E quem decidiu que deveria ser assim? Espero que uma das consequências desta crise seja um clamor contra as condições dos sistema que tornam o acesso à saúde impossível para pacientes e desgastante para trabalhadores da saúde.
BBC News Mundo – Por que você não gosta de campanhas como o ‘outubro rosa’, com o uso da cor em apoio a pacientes com câncer de mama?
Boyer – Não me oponho ao conforto e à solidariedade que podem ser encontrados no uso de um símbolo visual para unir pessoas que lutam contra a doença, mas a cultura da ‘fita rosa’ pega um apoio genuíno e positivo e o perverte em uma estrutura de exploração de lucro. Não precisamos de fitas rosa em produtos de consumo, muitas vezes produzidos com substâncias prejudiciais à saúde. No momento em que nossa dor se torna um produto, temos que dizer não.
BBC News Mundo – Em seu livro, você diz que não encontrou o que procurava nos textos clássicos sobre câncer, como os da escritora Susan Sontag, quando recebeu o diagnóstico. Por quê?
Boyer – Eles me ajudaram, mas o que não consegui encontrar neles é um relato da versão contemporânea do câncer: a doença vivida no mundo da informação, das telas, sob as forças extremas do lucro que dominam o sistema de saúde dos Estados Unidos. Minha esperança ao escrever este livro foi de que ele se junte a outros livros existentes, como um relato de nosso tempo.
BBC News Mundo – Durante sua doença, você encontrou muito apoio em vídeos do YouTube de outras mulheres com câncer. Por que esses vídeos a confortaram?
Boyer – É muito difícil explicar o efeito que aqueles desconhecidos tiveram sobre mim. Por isso escrever essa parte do livro foi particularmente desafiador para mim. Outras pessoas que sofreram com a mesma doença me deram uma educação que nenhum médico ou enfermeira poderia me dar: uma educação sobre sentimentos, sobre como morrer e como viver.
BBC News Mundo – Por que você diz que a solidariedade e o compartilhamento da dor são tão importantes?
Boyer – Se não compartilharmos a dor, corremos o risco de sermos destruídos por ela. Podemos acreditar erroneamente que estamos sós. A dor tende a nos amarrar, a menos que reconheçamos que é uma experiência compartilhada. Recentemente, ouvi uma prece budista: ‘Que eu tenha sofrimento suficiente para despertar em mim a mais profunda compaixão e sabedoria possível’. Uma dor compartilhada, um sofrimento compartilhado, nos ajuda a transformar essa dor em compaixão, nos ajuda a compreender a experiência coletiva do ser humano.
Fonte: BBC News