Número, medido em plataforma que cobre apenas um terço dos leitos de tratamento intensivo, acende alerta. Mandetta fala em “colapso” do sistema, mas Governo não endurece regras
O avanço rápido do coronavírus no Brasil vem acendendo um alerta para o risco de o sistema de saúde colapsar. O Governo Federal ―que contabiliza oficialmente mais de 900 casos confirmados e 11 mortes no país― trabalha com uma perspectiva de que isso pode acontecer no final de abril, caso as medidas de distanciamento social não sejam rigorosamente seguidas. A viga estrutural para o tratamento de pacientes com a Covid-19 são os hospitais e especialmente as UTIs, para onde deverão ser encaminhados os pacientes mais graves. Mas os dados oficiais sobre a ocupação dessas estruturas, que já atuavam no limite antes da pandemia, ainda são nebulosos. Oficialmente, o Ministério da Saúde atua para ampliar os leitos de retaguarda e garantir uma estrutura mínima de dez deles em todos os Estados, sem oferecer dados sobre o avanço da ocupação dos leitos de UTI com o coronavírus. Diz apenas que a taxa de ocupação em todas as UTIs antes da epidemia era de 78%, sem sequer diferenciar nessa conta os leitos adultos e infantis.
No Brasil, há pelo menos 176 pessoas diagnosticadas com coronavírus que estão internadas em UTIs, 157 delas somente na região Sudeste. Os números levam em conta apenas os leitos cadastrados em uma plataforma chamada UTIs brasileiras, mas que representam um terço de todos os 32.000 leitos adultos deste tipo em hospitais públicos e particulares do Brasil. Eles lançam luzes sobre como a demanda por um lugar de tratamento intensivo vem crescendo no país, especialmente no Sudeste. Segundo os dados cadastrados na plataforma e informados ao EL PAÍS pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), em três dias praticamente dobrou o número de pacientes confirmados com a Covid-19 nessas UTIs. Eram 93 na terça-feira. Na quinta-feira, o número cresceu para 176 internações. A quantidade de pacientes com o vírus em UTIs pode ser ainda maior, já que os casos suspeitos não entram nessa conta.
Apesar do aumento da demanda, por enquanto não faltam leitos para pacientes, garante Ederlon Rezende, membro do conselho consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) e diretor do serviço de terapia intensiva do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Tanto hospitais públicos quanto privados trabalham para cancelar procedimentos não emergenciais, abrir novos leitos e adaptar o fluxo de trabalho. O objetivo é evitar o contágio dentro das unidades e aumentar a estrutura de tratamento voltada exclusivamente aos casos prováveis de coronavírus.
“Nesses meus quase 30 anos de profissão, nunca vi um movimento semelhante de norte a sul do país, todo mundo se mobilizando para ampliar a capacidade de atendimento e melhor gestão de seus leitos”, diz Rezende. O plano tem sido estruturado por cada hospital e, diante de uma desigualdade grande de recursos e estrutura entre eles, se alguns conseguem abrir leitos e isolar áreas, outros menores trabalham para pelo menos reorganizar o fluxo de trabalho e dar o máximo de fôlego para receber pacientes com coronavírus. A conta é difícil, já que a demanda de atendimento por outras doenças segue latente e se soma à demanda pela Covid-19.
O Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo reservou uma ala com quatro leitos para pacientes com suspeita ou comprovação de coronavírus. Atualmente, dois estão ocupados. Se admitir mais um paciente nesta UTI e chegar a 75% da capacidade, o plano é abrir uma nova unidade com mais leitos exclusivos para tratar Covid-19 e suspender todas as cirurgias eletivas para desafogar a UTI normal. A ideia é trabalhar em escala daí por diante, abrindo novas alas para esses pacientes especificamente.
“Mas o mundo não para nas UTIs. Pode parar shopping, transporte, restaurantes. Nós temos que cuidar dos outros pacientes. Separamos alas para tratar coronavírus sem descuidar deles”, explica Rezende. Outros hospitais adotam medidas semelhantes. Oficialmente, o Governo do Estado de São Paulo disse que nesta sexta-feira havia 24 pacientes internados em UTIs, todos em hospitais privados. Na cidade de São Paulo, o epicentro da crise no país, o prefeito Bruno Covas anunciou que irá abrir 2.000 leitos normais para tratar pacientes com Covid-19 mais leves nos estádios Pacaembu e Anhembi. Isso abre margem para que os hospitais públicos, por exemplo, possam priorizar suas estruturas para abrir novas UTIs.
Recomendação e “maturidade”
O problema é que a velocidade de infecção é tanta que, mesmo com as adaptações, os sistemas de saúde público e privado correm o risco de colapsar, como aconteceu na Itália. Seja como for, o Governo insiste que ainda não é hora de impor quarentena a todos, como acontece já na Argentina. O Ministério da Saúde segue recomendando a quarentena de pessoas com sintomas de gripe e daqueles com os quais dividem a mesma casa mesmo assintomáticos. Também recomenda o isolamento das pessoas com mais de 60 anos, um grupo que estatisticamente tem mais risco de evoluir para um quadro grave da doença. O Ministério da Saúde também diz que pessoas com sintomas de gripe devem procurar os postos de saúde para triagem. As unidades de prontoatendimento ou os hospitais receberão os pacientes encaminhados nessas unidades. Mesmo na rede privada, a orientação é para que a população evite ir ao hospital sem necessidade, já que o ambiente é propício para a disseminação de doenças virais. O risco é ir a essas unidades por sintomas leves e acabar contraindo o coronavírus.
Nos hospitais, pessoas com sintomas gripais que comecem a apresentar sintomas respiratórios mais graves (como por exemplo falta de ar) são tratadas como casos suspeitos de Covid-19. Não há testes para todos, então passam a ser observadas sob o protocolo de coronavírus, que estabelece a ventilação mecânica precoce quando há insuficiência respiratória se agravando.
Na ponta, pacientes com diversos sintomas (gripais ou não) continuam chegando aos hospitais, que precisam se adaptar para seguir as recomendações do Ministério da Saúde: dar agilidade ao atendimento e criar fluxos específicos aos suspeitos de coronavírus. O Hospital do Coração de São Paulo (HCor) atende um grande volume de idosos e pacientes cardíacos, que integram o grupo de maior risco de complicações pela Covid-19. “Nosso hospital não vai conseguir parar (algumas cirurgias e procedimentos não emergenciais) porque nossos doentes demandam muito atendimento”, explica o médico Pedro Mathiasi, infectologista do HCor.
Por isso, o hospital montou duas estruturas para separar os pacientes com quadro gripal. Na entrada, é feita a triagem e o paciente que apresente sintomas compatíveis com os da gripe recebem máscara, são orientados a higienizar as mãos e encaminhados para uma área exclusiva para pessoas que possam estar com coronavírus.
Um desafio é conseguir que hospitais e unidades de prontoatendimento menores consigam replicar esse procedimento. Em meio à crise do coronavírus, profissionais de saúde têm denunciado até o racionamento de máscaras e álcool em gel para eles, o que torna difícil disponibilizar essa estrutura aos pacientes. “O protocolo do Ministério da Saúde e da OMS são muito claros, que é capturar esse doente o mais rápido ao chegar na unidade. A dificuldade é fazer isso funcionar na prática, porque cada hospital tem sua estrutura e seus recursos”, explica Mathiasi.
Diante da enorme desigualdade estrutural e financeira entre os hospitais, o médico diz que o HCor tem auxiliado unidades menores a replicarem pelo menos a parte de gestão operacional para tentar reduzir o contágio nos hospitais e dar uma celeridade no atendimento. Tudo isso no contexto de problemas crônicos do SUS somados à escassez de insumos e recursos limitados mesmo com o reforço recente dos governos.