“Pesquise ‘língua geográfica’ antes de falar que não escovo minha língua”.
A capixaba Roberta Santos, 22 anos, deixa a frase no topo do seu perfil no TikTok. É uma tentativa para não ter que, mais uma vez, rebater comentários e conselhos não solicitados.
Na verdade, muito antes das redes sociais, ela já tinha a resposta pronta: “Gente, isso aqui é uma condição que dá na língua, que causa esses relevos. Não é uma questão de higiene. Às vezes ela arde, muda de aparência todo dia, mas não passa pra ninguém. É algo só meu”, recorda sobre a forma como contava aos amigos na pequena Ibiraçu, norte do Espírito Santo.
Até o último dia 13 de novembro de 2021, Roberta não conhecia ninguém com uma língua igual à dela. Achava que era coisa “muito rara”, algo que descobriu na infância e com que aprendeu a conviver.
Mas 8,2 milhões de visualizações e 4 mil comentários depois, a lavadora de carros involuntariamente, com um vídeo no TikTok, criou uma rede de informações e apoio entre pessoas com língua geográfica.
“Muita gente me procurou. Teve uma mensagem muito marcante, de uma pessoa que não sabia o que era, mas ela também tinha e descobriu por causa desse meu vídeo ‘besta’. Eu li na hora e chorei”, conta Roberta.
Nos comentários da postagem, uma usuária escreveu: “Um dos vídeos mais necessários da minha vida. Eu nunca entendi por que minha língua era como era”. Outra completou: “Descobri que tem um nome para isso. Achava que mordia minha língua quando dormia”.
No Google, o número de buscas no Brasil pelo termo “língua geográfica” atingiu um pico histórico no dia 14 de novembro, exatamente um dia depois de Roberta publicar o vídeo.
De acordo com a dentista Helenice Biancalana, diretora de prevenção e promoção de saúde da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas (APCD), muitas pessoas têm a condição e não sabem. Pesquisas recentes feitas na faculdade da APCD estimam que entre 2% e 3% dos brasileiros (potencialmente, até 6 milhões de pessoas, segundo essas estimativas) têm língua geográfica, revela.
“A população ainda não é educada o bastante sobre a saúde bucal, fazer o autoexame, observar a boca diariamente e buscar um profissional. O diagnóstico deve ser feito pelo cirurgião dentista”, diz Biancalana.
Mas o que é ‘língua geográfica’?
Essa condição benigna – ou seja, sem gravidade – também é conhecida como eritema migratório ou glossite migratória.
A “migração” no nome se deve à variação na aparência, tempo de duração e local das lesões. Por exemplo, ela pode ocorrer durante uma semana numa parte da língua, sumir e, depois, aparecer em outro lugar. Já o “geográfica” faz relação com o relevo e desenhos como “mapas” que se formam na superfície.
As lesões nos pacientes são resultado da perda das papilas filiformes, pequenas saliências que todos temos no dorso da língua (olhe a sua bem de perto no espelho que você irá percebê-las).
Elas aparecem como áreas vermelhas, bem demarcadas, às vezes com bordas brancas irregulares.
“Não é uma doença, é uma característica que pode ser temporária ou permanente [como no caso de Roberta]. Na língua geográfica, há regiões despapiladas, que ficam lisas, com áreas mais avermelhadas”, explica a dentista Helenice Biancalana.
Em pessoas que apresentam a condição, alguns fatores podem desencadear “crises”, com o aparecimento ou maior intensidade das lesões, como estresse, ansiedade e uma alimentação muito ácida.
A causa exata da condição ainda é desconhecida, segundo a Academia Americana de Medicina Oral. Mas alguns fatores são apontados com possíveis relações, como psoríase, dermatite, alergias, distúrbios hormonais e genética.
No caso de Roberta, ela não tem conhecimento de alguém da família que tenha. Os pais contam que ainda bebê perceberam as lesões na língua e que logo receberam o diagnóstico. Aos 7 anos, a jovem lembra de ter uma conversa com a mãe, que explicou o motivo de ela ser “diferente”.
“Até então, achava que a língua de todo mundo ardia ao tomar coisa ácida”, conta.
Essa sensibilidade é uma das características mais comuns de quem tem a língua geográfica. Até hoje, Roberta evita alimentos cítricos, como abacaxi e sucos de limão, laranja ou “maracujá passado”. Comida muito quente também pode causar inchaço.
Como lidar?
Na adolescência, um menino que estava interessado em ficar com Roberta fez uma sondagem: mandou uma amiga perguntar à jovem se o que ela tinha na língua era contagioso – a resposta é não.
Episódios assim, de questionamentos, não são raros na vida da jovem capixaba. Mas, munida de informação, ela conta que sempre soube lidar.
“Sempre cruzei com pessoas que entenderam. Quando conhecia alguém, já explicava para não assustar. Eu nunca tive vergonha e nunca parei para pensar no tamanho do problema que a língua pode ser pra uma pessoa”. Isso até a publicação do vídeo…
“Pessoas conversaram comigo no privado sobre a vergonha que sentiam e do preconceito que elas mesmas tinham sobre elas. Tentei conversar com elas sobre isso”, conta.
Muitos dos “comentários negativos” associam a condição à má higiene e ao mau hálito. Mas a dentista Helenice Biancalana explica que as coisas não estão necessariamente relacionadas.
“A língua pode causar mau hálito se não for higienizada adequadamente. O que pode acontecer em casos de pessoas com língua geográfica é que, devido à sensibilidade, elas não consigam escovar a língua direito. Por isso, é importante buscar a orientação profissional sobre a higienização bucal”, explica.
A orientação básica é usar uma escova macia, ter cuidado para não causar sangramentos e sempre fazer movimentos de varredura, do ponto mais alto até a ponta. O uso de enxaguante bucal sem álcool pode completar a higienização.
Com seus novos 20 mil seguidores, Roberta – provavelmente a primeira “influencer de língua geográfica” – pensa como continuar falando sobre o assunto: “É muito inexplorado, é muito mais comum do que parece. Depois do vídeo, soube até de gente conhecida que tem”.
Fonte: BBC News