Foi publicada uma revisão sobre os diferentes aspectos relacionados aos fatores de risco e diferenças clínicas do diabetes entre os sexos.
Sabemos que o diabetes mellitus tipo 2 (DM2) vem crescendo em prevalência anualmente. Se trata de uma das condições crônicas mais importantes na clínica médica, tanto por sua frequência como por suas consequências, seja por eventos macrovasculares como doença aterosclerótica coronariana (DAC), acidente vascular cerebral (AVC) ou doença arterial periférica (DAOP), ou por suas complicações microvasculares (retinopatia, nefropatia e neuropatia).
É sabido, ainda, que a prevalência do DM é maior em homens (estima-se que haja cerca de 18 milhões a mais de homens diagnosticados com DM que mulheres no mundo) e existe um impacto do sexo biológico em seus determinantes bem como em suas consequências.
Por esse motivo, foi publicada na edição de março da revista europeia Diabetologia (uma das mais importantes no tema) uma revisão narrativa acerca dos diferentes aspectos relacionados aos fatores de risco sexo-específicos e diferenças clínicas entre os sexos.
Para tanto, os autores selecionaram estudos em humanos, publicados entre 2011 e 2022 utilizando as palavras-chave “sexo” e “gênero” em combinação com “diabetes”.
Vale a pena destacar de antemão que não existem no momento recomendações específicas para diferentes sexos nos guidelines no que concerne ao manejo do DM e suas comorbidades.
Fatores de risco para desenvolvimento de diabetes
Os fatores de risco para desenvolvimento de diabetes configuram um dos tópicos que podem ser analisados de acordo com o sexo, segundo os autores da revisão.
Gestação
Impossível não começar pela gestação. O diabetes mellitus gestacional (DMG) é uma condição que afeta cerca de 16% das mulheres. A resistência insulínica relativa pode provocar a elevação dos níveis glicêmicos, sobretudo em mulheres com obesidade ou mesmo aquelas com baixa reserva de células beta.
Além disso, o DMG é o principal fator de risco para desenvolvimento de DM2 em mulheres, chegando a representar um RR de 8,3 (6,5 – 10,6; IC 95%). Vale lembrar que para uma mulher que apresentou DMG, a recomendação de rastreio de DM passa a ser anual e não mais a cada 3 anos.
Fatores endocrinológicos
Os hormônios esteroides sexuais também possuem seu papel na suscetibilidade ao DM de acordo com o sexo. O estrógeno nas mulheres pré-menopausa protege do DM2, ao melhorar a sensibilidade à insulina, secreção de insulina estimulada por glicose e também ao reduzir a apoptose de células beta. Dessa forma, a menopausa precoce também é um fator de risco para desenvolvimento do DM.
Por outro lado, a testosterona tem uma relação bidirecional com a glicemia: a falta de testosterona (hipononadismo masculino) bem como o aumento da SHBG (que pode acontecer em situações como a obesidade, por exemplo, reduzindo a fração bioativa da testosterona) estão diretamente associados com maior risco de DM2 e de mortalidade em homens.
Portanto, é aconselhável rastreio de hipogonadismo em homens obesos com DM2. No entanto, é sabido também que seu excesso impacta negativamente o metabolismo glicêmico, visto que mulheres com hiperandrogenismo têm um risco até 4x maior de desenvolver DM. Um exemplo clássico é a Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP).
Pré DM e resistência à insulina
Durante o período pré menopausa, as mulheres apresentam maior sensibilidade à insulina e maior secreção de insulina mediada por glicose, o que acaba por impactar em menor glicemia de jejum e menor média de hemoglobina glicada (A1c).
No entanto, no período pós-menopausa, essa vantagem deixa de existir, associada ao padrão de modificação corporal sobretudo no que concerne à distribuição de gordura corporal.
Em achados laboratoriais, é mais comum que mulheres apresentem maior intolerância à glicose após o teste oral (TOTG 75g) do que homens, enquanto homens costumam apresentar mais comumente alterações na glicemia de jejum (que costuma refletir maior resistência insulínica hepática e menor secreção basal de insulina).
Por esse perfil de maior sensibilidade da mulher ao TOTG, esse é um exame que pode se tornar cada vez mais interessante, apesar de suas limitações sobretudo em termos práticos para sua realização.
Obesidade
A obesidade é uma condição crucial na patogênese do DM2, tanto para homens como para mulheres. Em geral, homens costumam desenvolver DM com um IMC menor.
Vale ressaltar que, devido ao padrão de distribuição de gordura corporal, nas mulheres a circunferência abdominal parece se correlacionar melhor como preditor de risco cardiometabólico do que o IMC em si, sendo que a circunferência abdominal aumentada é um fator de risco mais importante para o desenvolvimento de DM em mulheres do que em homens (OR 7,3 vs 2,5).
O risco de complicações é maior em homens ou mulheres?
Complicações macrovasculares
O risco de complicações macrovasculares é maior nas mulheres e estipula-se que existam alguns fatores contribuindo para tanto. Numericamente, o risco absoluto de mortalidade por causas vasculares é maior em homens; contudo, o risco relativo (RR) é maior em mulheres.
Uma razão para essa diferença é que mulheres tendem a apresentar mais aterosclerose e de grau mais avançado que homens no momento do diagnóstico do DM. Estima-se também que a contribuição da hiperglicemia como fator sinérgico ao maior risco cardiovascular seja maior em mulheres, havendo mais inflamação subclínica e coagulopatias.
Além de todos esses fatores, o período pós-menopausa confere a perda da “proteção” que o estrógeno trazia. Ou seja, o diabetes pode, do ponto de vista cardiovascular, ser um pouco “mais perigoso” em mulheres.
Ainda, soma-se à essa maior suscetibilidade o fato de que diversos estudos apontam para um subtratamento tanto do diabetes como das demais comorbidades de risco cardiovascular — mulheres tendem a receber menos tratamento para hipertensão e dislipidemia e até mesmo para doença arterial coronariana.
Um estudo dinamarquês observou ainda que mulheres diabéticas com doença cardiovascular tendem a receber menos prescrição de agonistas de GLP-1 ou inibidores de SGLT-2 do que homens.
Com relação à insuficiência cardíaca, mulheres também tendem a apresentar maior incidência e maior risco de internação hospitalar. O risco parece maior quando se considera IC com fração de ejeção preservada (ICFEp).
Complicações microvasculares
Já quanto ao risco de complicações microvasculares, existem poucos estudos que estimam de forma comparativa a incidência de eventos em homens e mulheres. De forma geral, existe um maior risco de insuficiência renal e lesão renal aguda em mulheres, ao passo que homens apresentam maior probabilidade de apresentarem microalbuminúria positiva.
Quanto à retinopatia, não existe uma diferença bem documentada entre os sexos. Já a neuropatia parece afetar mais mulheres em termos de sintomas de dor, enquanto homens tendem a apresentar maior risco de amputação de membros inferiores.
(Obs: a magnitude da diferença e o risco relativo estabelecido entre homens e mulheres com diabetes quanto ao desenvolvimento de complicações macrovasculares e microvasculares não foi abordado nesta revisão, que teve um caráter descritivo).
O impacto do tratamento do diabetes depende do sexo?
O impacto do tratamento do diabetes (DM2) não parece estar diretamente ligado ao sexo. Contudo, existem alguns dados interessantes a respeito das terapias:
- A metformina pode gerar uma resposta discretamente melhor em homens quanto à redução da HbA1c;
- As glitazonas devem ser utilizadas com cuidado em mulheres pós menopausa devido ao maior risco de fraturas e ganho de peso e edemas, sobretudo em mulheres com obesidade;
- O benefício cardiovascular é o mesmo entre homens e mulheres com o uso de iSGLT-2;
- Mulheres tendem a apresentar maior perda de peso que homens em uso de agonistas de GLP-1
Conclusão: existem “dois diabetes”, o do homem e o da mulher?
A resposta simples seria dizer: não, não há. Porém devemos ter em mente que mulheres diagnosticadas com diabetes parecem já apresentar de início mais fatores de risco cardiovasculares que homens e tendem a receber menos tratamento tanto para diabetes como para outros fatores de risco, o que eleva seu risco relativo cardiovascular.
É importante perceber as diferenças entre os sexos quanto aos fatores de risco, risco de complicações e respostas esperadas no tratamento para haver uma abordagem mais individualizada e que consiga cumprir os objetivos do tratamento: melhor controle glicêmico e redução do risco de complicações.
Texto publicado originalmente em Portal PEBMED