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domingo, novembro 24, 2024

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Avaliação do risco cirúrgico de pacientes cirróticos

Superestimações do risco cirúrgico podem resultar em contraindicação indevida da cirurgia para pacientes com perfis de risco aceitáveis.

Os pacientes com cirrose hepática têm um risco perioperatório aumentado em relação aos pacientes sem cirrose. Isso está relacionado a diversos fatores específicos da cirrose, incluindo alterações na função de síntese hepática, hemodinâmica, coagulação sanguínea, sarcopenia, desnutrição, distúrbios hidroeletrolíticos e hipertensão portal, proporcionais à gravidade da doença hepática.

Pacientes com cirrose têm mortalidade perioperatória aproximadamente três vezes maior em comparação com pacientes sem cirrose. Abaixo discutiremos os principais fatores associados a um maior risco cirúrgico e suas implicações.

Sarcopenia

Deficiências nutricionais que prejudicam a cicatrização de feridas, aumentam a fragilidade e levam a pior recuperação física no período pós-operatório, incluindo dificuldade para desmame da ventilação mecânica.

Hipertensão portal

Aumenta o risco de múltiplas complicações intra e pós-operatórias. À medida que a doença hepática progride, ocorrem alterações hemodinâmicas caracterizadas por vasodilatação esplâncnica, aumento do débito cardíaco e diminuição da resistência vascular sistêmica que podem prejudicar a perfusão dos órgãos durante a cirurgia.

Pode ocorrer desenvolvimento de ascite devido a esforços de ressuscitação volêmica intraoperatória, suspensão de diuréticos e efeitos cardíacos da anestesia. A ascite também pode resultar de lesões iatrogênicas dos vasos linfáticos, observada com mais frequência em procedimentos abdominais de grande porte, como cirurgias pancreáticas.

O fígado com cirrose é especialmente propenso a lesão isquêmica por hipotensão relativa intraoperatória e/ou manipulação do leito esplâncnico, aumentando assim o risco de descompensação pós-operatória.

O risco de sangramento intraoperatório e pós-operatório é elevado devido ao aumento da pressão hidrostática e à expansão das colaterais portossistêmicas, que afetam principalmente as cirurgias torácicas e intra-abdominais, pois podem envolver a circulação esplâncnica.

A hemorragia varicosa também pode ocorrer devido a alterações hemodinâmicas que ocorrem durante a cirurgia, além de aumento da pressão portal decorrente da expansão volêmica no intraoperatório ou pós-operatório.

Alteração da coagulação e fibrinólise

Cirróticos são mais propensos a desenvolver tanto tromboembolismo, quanto sangramentos, se comparados à população em geral, devido ao desbalanço na síntese de fatores pró e anticoagulantes.

Desregulação do sistema imune 

A cirrose torna os pacientes mais suscetíveis a infecções devido à desregulação imunológica.

Avaliação de risco pré-operatório

A estratificação de risco pré-operatório em pacientes cirróticos pode ser difícil devido ao grande número de variáveis ​​na cirrose que podem potencialmente contribuir para o risco cirúrgico.

A gravidade da doença hepática e a presença de hipertensão portal clinicamente significativa são os fatores mais importante na previsão dos resultados pós-operatórios. Escores elevados de Child-Pugh e MELD-Na estão associados à piora da mortalidade pós-operatória.

Todos os pacientes devem realizar exames laboratoriais que incluem hemograma completo, painel metabólico abrangente e perfil de coagulação, como parte da avaliação pré-operatória.

Uma anamnese detalhada e exame físico completo devem ser realizados para determinar a presença de descompensação da cirrose, incluindo encefalopatia hepática, ascite e história de sangramento varicoso.

Se o paciente não tiver feito exames de imagem abdominais anteriormente, uma ultrassonografia abdominal ou um exame seccional de imagem podem ajudar a classificar o grau de ascite, esplenomegalia ou presença/ausência de circulação colateral.

A imagem também servirá como triagem para CHC e permitirá identificar a existência de trombose de veia porta, o que pode potencialmente modificar o planejamento cirúrgico.

Se a cirurgia for eletiva, o paciente deve estar sob prevenção de hemorragia digestiva alta varicosa, seja através de ligadura elástica ou betabloqueador, ou mesmo ambos, quando indicado.

De maneira geral, não se deve realizar cirurgias em pacientes com insuficiência hepática aguda, hepatite aguda grave ou hepatite associada ao álcool, com exceção do transplante de fígado, quando indicado.

Em relação aos fatores específicos da cirurgia, são associadas a mortalidade pós-operatória os seguintes tipos de cirurgia: parede abdominal, vasculares maiores, abdominais laparoscópicas, abdominais abertas, tórax/cardíaco ou ortopédicas maiores. Cirurgias abdominais abertas, seguidas por cirurgias torácicas/cardíacas, são aquelas de maior mortalidade.

Quando viável, uma abordagem laparoscópica para cirurgia abdominal confere menor risco de morbidade perioperatória e mortalidade pós-operatória em comparação com uma abordagem aberta.

Cirróticos devem ser preferencialmente operados em centros terciários com grande experiência, uma vez que isso se associa a melhores desfechos. O status de emergência da cirurgia também foi associado à mais do que o dobro da taxa de mortalidade em comparação com cirurgias eletivas.

A avaliação pré-operatória também deve incluir uma avaliação de outras comorbidades não hepáticas, como doenças cardiovasculares, especialmente no paciente com doença hepática gordurosa não alcoólica.

Um eletrocardiograma pré-operatório deve ser realizado em todos os pacientes e, em pacientes com suspeita de disfunção sistólica, diastólica ou valvular, deve-se dosar o peptídeo natriurético cerebral e solicitar um ecocardiograma transtorácico.

O aumento da idade bem como a classificação da American Society of Anesthesiologists (ASA) também são conhecidos por predizer o aumento da mortalidade pós-operatória em pacientes com cirrose.

Em pacientes com cirrose, o escore ASA é geralmente 3 (doença sistêmica grave, ou seja, cirrose compensada) ou 4 (doença sistêmica grave que é uma ameaça constante à vida, ou seja, cirrose descompensada) e denotam risco aumentado de complicações, muitas vezes com necessidade de suporte intensivo no pós-operatório.

Ferramentas de estratificação de risco

Calculadoras de risco cirúrgico são ferramentas cada vez mais populares para estratificar o risco cirúrgico no pré-operatório. No entanto, modelos de risco não devem ser usados ​​como substitutos do julgamento clínico e, em vez disso, devem ser indicados ​​como uma ferramenta adicional para ajudar pacientes e profissionais de saúde na tomada de decisão compartilhada.

Se o risco projetado para uma cirurgia eletiva for >15% em 90 dias, geralmente, é recomendado que uma avaliação para transplante de fígado seja realizada antes da cirurgia para determinar se esse paciente é candidato.

Child e Meld

São usados ​​universalmente na prática clínica para estratificar a gravidade da doença hepática. Estudos mostraram taxas de mortalidade perioperatória após cirurgia abdominal de 10% para Child A, 30% para Child B e 80% para Child C. Já um MELD > 26 corresponde a uma taxa de mortalidade pós-operatória > 90% em diversos tipos de cirurgia.

Mayo Risk Score

Primeiro modelo dedicado de predição de risco cirúrgico validado em pacientes com cirrose. É projetado apenas para levar em consideração cirurgias ortopédicas, cardiovasculares e abdominais de grande porte e não fornece nenhuma estratificação de risco com base no tipo de cirurgia.

A literatura recente demonstrou declínio da calibração do escore ao longo do tempo, com superestimação progressiva do risco cirúrgico de cirrose. Superestimações do risco cirúrgico podem resultar em contraindicação indevida da cirurgia para pacientes com perfis de risco aceitáveis.

VOCAL-Penn Score

Desenvolvido recentemente como um modelo de predição atualizado, esse escore inclui os seguintes preditores: idade, albumina pré-operatória, contagem de plaquetas, bilirrubina e categoria de cirurgia, como cirurgia abdominal laparoscópica versus cirurgia abdominal aberta, eletiva versus indicação de emergência, doença hepática gordurosa, classificação ASA e obesidade.

O Vocal-Penn escore demonstrou discriminação superior ao MELD, MELD-Na, Child-Pugh e Mayo Risk Score aos 30, 90 e 180 dias de pós-operatório. É o escore de eleição atual.

Otimização pré-operatória

Várias medidas podem ser tomadas para otimizar os pacientes com cirrose antes da cirurgia.

Sarcopenia e desnutrição

A desnutrição observada com hipoalbuminemia e perda de massa muscular deve ser identificada e mitigada por meio da otimização do estado nutricional do paciente. É fundamental avaliação pela nutrição antes da cirurgia. O risco de sarcopenia deve ser considerado alto se o índice de massa corporal do paciente for <18,5 kg/m2.

Os pacientes devem receber pelo menos 30–35 kcal/kg/dia com 1,25–1,5 g/kg/dia de proteína, calculado com base no peso corporal ideal.

Estratégias para encurtar o jejum noturno, como a realização de um lanche entre 21-23 horas, são muito importantes para preservação da massa muscular. Indivíduos com doença hepática associada ao álcool devem ser avaliados para suplementação de tiamina e ácido fólico.

A fisioterapia pré-operatória (pré-habilitação) pode reduzir a fragilidade e melhorar o condicionamento antes da cirurgia eletiva, o que pode se traduzir em melhor e mais rápida recuperação pós-operatória.

Discrasias sanguíneas

Pacientes com anemia ferropriva devem ter seus estoques de ferro repostos antes da cirurgia. Agonistas dos receptores de trombopoietina, como avatrombopag e eltrombopag, aumentam a produção nativa de plaquetas e demonstraram reduzir a necessidade de transfusões de plaquetas durante ou após procedimentos invasivos.

Esses agentes podem ser considerados em pacientes trombocitopênicos submetidos a cirurgia eletiva de alto risco; no entanto, deve-se ter cuidado, pois esses medicamentos estão associados a um risco aumentado de trombose. Se o fibrinogênio for <100 mg/dL antes da cirurgia, crioprecipitado deve ser administrado.

Finalmente, dado que o INR não reflete necessariamente a tendência de sangramento na cirrose, não há utilidade na correção do INR com plasma fresco na ausência de sangramento ativo. Deve-se destacar que a transfusão acarreta risco de sobrecarga de volume (que pode teoricamente aumentar o risco de sangramento varicoso) e reação transfusional.

Hipertensão portal

Pacientes com evidência clínica de ascite devem ser otimizados com diuréticos, restrição de sódio e paracentese terapêutica conforme necessário antes da cirurgia. É indispensável haver um plano claro para se tratar a ascite após a cirurgia.

Isso é particularmente importante para cirurgias abdominais e correções de hérnias, uma vez que a ascite pode contribuir para a deiscência da ferida abdominal e herniação da parede abdominal. Antes da cirurgia, os pacientes com ascite devem ter seus diuréticos titulados e uma paracentese diagnóstica deve ser realizada para descartar peritonite bacteriana espontânea.

Em pacientes com indicações para profilaxia de peritonite bacteriana espontânea, os antibióticos devem ser mantidos durante o período perioperatório. O TIPS foi avaliado como uma ferramenta para descompressão portal pré-operatória, mas até o momento não há evidências suficientes para apoiar seu uso rotineiro antes de cirurgia abdominal ou torácica.

Pacientes com indicação de betabloqueadores não seletivos, como aqueles com varizes de médio ou grosso calibre ou com história de sangramento varicoso prévio, devem iniciar ou manter a terapia; no entanto, eles não devem ser usados ​​em pacientes com ascite refratária ou altos escores de Child, pois podem reduzir a reserva hemodinâmica e aumentar a mortalidade nesse cenário.

Cirurgias Específicas

Colecistectomia

Para pacientes candidatos à colecistectomia eletiva, a cirurgia deve ser adiada até avaliação do transplante hepático devido ao risco de lesão do ducto biliar, o que pode tornar o transplante potencialmente mais difícil.

Se a colecistectomia for emergencial, o ideal é que o paciente seja transferido para um centro transplantador. Se o paciente for Child C ou tiver ascite refratária, não é aconselhável prosseguir com a cirurgia e opções não cirúrgicas, como drenagem biliar ecoguiada, podem ser consideradas.

Circulação extracorpórea

Pacientes que necessitam de circulação extracorpórea para procedimentos intratorácicos apresentam alto risco de sangramento devido à necessidade de anticoagulação intraoperatória e hiperfibrinólise. Esses procedimentos devem ser realizados apenas em centro experientes e são historicamente contraindicados em pacientes com Child >B7 ou MELD >13,5.

Herniorrafia

As hérnias ventrais e inguinais ocorrem frequentemente em pacientes com cirrose e ascite devido ao aumento da pressão intra-abdominal e são indicações comuns de cirurgia nessa população.

É fundamental que a ascite seja bem tratada antes do reparo da hérnia, seja através de diuréticos e restrição de sódio, seja por meio de TIPS pré-operatório em pacientes elegíveis.

Vários fatores de risco para resultados adversos após herniorrafia foram identificados em estudos retrospectivos, como MELD >15, hipoalbuminemia, anemia e obstrução pré-operatória do intestino delgado.

Mensagens para casa

Paciente cirróticos apresentam elevado risco cirúrgico, podendo evoluir no pós-operatório com diversas complicações, como descompensação edemato-ascítica, infecções, sangramentos, tromboses, encefalopatia, etc.

A decisão cirúrgica deve ser tomada de maneira compartilhada com o paciente, através do julgamento clínico e com apoio de escores de risco, como o Vocal-Penn Score.

Cirróticos que serão submetidos a cirurgias eletivas devem realizar otimização pré-operatória com auxílio de equipe multidisciplinar, composta por médicos, nutricionistas e fisioterapeutas. A avaliação por equipe especializada em transplante hepático frequentemente é necessária na tomada de decisão.

 

 

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias PebMed

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