Condição psiquiátrica é muitas vezes representada é personagens de filmes e séries de TV; especialistas criticam estigmatização e sensacionalismo com diagnóstico
Os dados de pesquisa do Google apontam que houve um grande pico recente na quantidade de brasileiros pesquisando sobre o chamado “transtorno dissociativo de identidade” (TDI).
Essa condição psiquiátrica — na qual o paciente pode apresentar duas ou mais personalidades distintas — é considerada rara e já foi retratada em filmes como “Clube da Luta” e “Fragmentado”.
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O que é o TDI?
O TDI é uma condição em que o paciente apresenta uma “ruptura de sua identidade”, explicou o psiquiatra André Felipe Martins, do hospital Albert Einstein.
A mesma pessoa pode apresentar um número de personalidades distintas, “que ele mesmo não entende como uma continuidade da sua personalidade padrão”, pontua o doutor.
O TDI, porém, motiva discussões, segundo o psiquiatra Charles Raison, da Emory University Medical School. “Se quiser ver profissionais de saúde mental brigando entre si, pergunte a alguns deles o que pensam sobre o TDI”.
Segundo Raison, “muitos psiquiatras biológicos, que baseiam suas práticas no gerenciamento de medicamentos, dirão que a condição não existe ou que, se existir, é ‘iatrogênica’, o que significa que é causada por terapeutas que treinam seus pacientes para interpretar seus sintomas como se tivessem todo um conjunto de personalidades distintas”.
“Por outro lado, há clínicos que se especializam na doença e levam tão a sério a presença de múltiplas personalidades que separam encontros terapêuticos com cada um dos ‘alter’ (ou seja, personalidades individuais) de um paciente”, acrescentou.
Segundo Martins, o indivíduo com a condição do TDI pode apresentar, ao estar sob o domínio de outra personalidade, pode ter alterações de humor, de modo de agir, de percepção e até mesmo de fala.
“É frequente também que se queixe de amnésias lacunares, como se não se recordasse dos eventos quando estava sob o domínio de outra personalidade”, disse Martins.
Ele também afirmou que é comum os pacientes com TDI apresentarem comorbidades psiquiátricas como depressão, ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático e outros transtornos de personalidade.
Os dados oficiais sobre a incidência da doença são escassos, mas de acordo com essa publicação ligada à International Society for Traumatic Stress Studies, acredita-se que o TDI é um distúrbio raro que afeta aproximadamente 1,5% da população global.
O diagnóstico do TDI
O psiquiatra André Felipe Martins explica que, como muitos transtornos psiquiátricos, “acredita-se que exista uma predisposição genética associada a eventos traumáticos que possam gerar o aparecimento de sintomas dissociativos”.
“Eventos traumáticos possíveis incluem violência física e sexual, principalmente durante a infância e a adolescência”, acrescenta.
Ele aponta que o diagnóstico deve ser feito através de avaliação clínica com um médico psiquiatra, já que não existem exames de imagem ou laboratoriais para esse diagnóstico.
O doutor Charles Raison acrescentou que, enquanto os terapeutas que acreditam na existência do TDI apontam que as diferentes personalidades têm diferentes traçados eletroencegalográficos (exame EEG), os descrentes dizem que as pessoas podem gerar diferentes traçados EEG intencionalmente com a mudança de personalidade.
“Eu não acho que alguém poderia duvidar que esse fenômeno (TDI) existe. Você pode fazer o experimento. Pense em uma vez em que você estava dirigindo o carro e, de repente, percebeu que perdeu completamente a atenção nos últimos quilômetros ou que perdeu uma curva sem nem perceber. Isso é dissociação – você está fazendo algo importante e perde a noção da parte de si mesmo”, disse.
“Como todas as outras dificuldades mentais, a dissociação vai do normal ao extremamente patológico. Na minha experiência clínica, é muito comum que pessoas traumatizadas/muito doentes mentais manifestem altas taxas de dissociação. As pessoas que se dissociam muito têm uma experiência consciente que é como um queijo suíço: cheio de buracos. Mas, ao contrário da tristeza, raiva ou psicose clara, geralmente não é facilmente perceptível. Por isso, recebe menos atenção do que deveria”, continua.
“As pessoas que sofrem com isso raramente reclamam disso, porque quase por definição, sua percepção consciente fragmentada torna muito difícil para eles perceberem que estão perdendo algo ou não estão cientes”, completou o psiquiatra.
Existe cura e/ou tratamento?
“O curso da doença é variável. Alguns pacientes podem apresentar durante uma época de suas vidas e outros podem apresentar o transtorno durante a vida inteira. O tratamento deve ser feito com psicoterapia. O uso de medicamentos psicotrópicos é frequentemente necessário”, disse Martins.
O doutor Raison acrescentou que a ausência de boas opções de “intervenções farmacológicas” é uma das razões para a falta de investimento nos estudos dessa condição mental.
“Sou menos otimista em relação a tratamentos que procedem como se cada uma das personalidades separadas realmente existisse concretamente e depois trabalham para integrá-las novamente. Esta é a forma terapêutica mais comum de tratar o distúrbio”, afirmou o médico da Emory University Medical School.
“Quer os médicos acreditem ou desacreditem, todos eles dirão que é uma das mais sérias dificuldades psiquiátricas. Os pacientes que demonstram sintomas de transtorno dissociativo de identidade são todos extremamente doentes em minha experiência”, concluiu.
“Eles frequentemente sofreram traumas significativos, especialmente no início da vida. O caos de suas personalidades e comportamento muitas vezes deixa um rastro de tornado, e eles sofrem um tremendo desconforto emocional e ansiedade. Como mencionei, ao contrário de condições mentais como depressão ou psicose, para as quais existem tratamentos bons – embora longe de perfeitos –, há muito pouca evidência de que quaisquer intervenções atualmente disponíveis sejam de grande ajuda”.
“Um mecanismo de enfrentamento”, diz paciente
A americana Amelia Joubert, que vive em Fort Mill, no estado da Carolina do Sul, nos EUA, foi diagnosticada com TID em 2014. Ela convive com outras 11 personalidades. Mesmo antes do diagnóstico, a maneira como ela falava variava ao longo do dia: às vezes com sotaque sulistas, às vezes como uma criança pequena.
Como a maioria dos pacientes, Joubert sofreu um trauma quando criança. A psiquiatra Garrett Marie Deckel relatou as pessoas que sofreram abusos crônicos, geralmente em situações sem saída viável, podem “reconfigurar a mente” em diferentes partes ou personalidades. Algumas dessas partes podem intervir para lidar com situações traumáticas ou estressantes, enquanto outras se dissociam ou escapam da realidade.
Para uma Joubert introvertida, isso pode significar chamar sua alter enérgica, Scarlet, em grandes multidões. Desde o início da terapia, ela relata que conseguiu controlar melhor suas personalidades. Para Joubert, o objetivo da terapia nem sempre é “integrar” as diferentes partes em uma, mas aprender a funcionar e trabalhar juntas.
“Ela conseguiu usá-los com muita eficácia”, disse seu terapeuta, o psicólogo clínico Bilal Ghandour. “Não há razão para interromper esse sistema, como ela o chama.”
“É realmente uma sobrevivência ou um mecanismo de enfrentamento”, disse Joubert.
Ela, que foi hospitalizada em instituições residenciais e de cuidados intensivos, disse que muitas vezes sentiu que seus médicos não entendiam ou mesmo não acreditavam em seu distúrbio.
“Eu estava cansada de ouvir isso e sentir que tinha que ter vergonha de alguma coisa que me ajudou a sobreviver ao trauma quando criança”, disse ela.
“Clube da Luta”, “Fragmentado”: o TDI nas telas
Apesar de ser um distúrbio raro, sobram exemplos de personagens de TV e filmes que foram retratados com múltiplas personalidades.
É o caso, por exemplo, de “Clube da Luta”, estrelado por Edward Norton e Brad Pitt, ou “Fragmentado”, em que o ator James McAvoy interpreta um vilão com 24 personalidades que sequestra e atormenta três garotas em um bunker.
Especialistas em saúde mental que acompanham casos e estudam o TDI chamam a atenção para como essas produções podem estigmatizar o transtorno e impactar diretamente aqueles que convivem com o distúrbio.
“Clube da Luta e Fragmentado retratam indivíduos com TDI de forma fantasiosa. No caso de Fragmentado, o personagem com TDI apresenta sintomas que desviam um tanto da apresentação clínica do transtorno. É também importante ressaltar que os filmes frequentemente relacionam este transtorno a pessoas violentas e criminosas, o que apenas contribui para causar mais estigma e isolamento a pacientes com transtorno mental”, disse o doutor André Felipe Martins.
A doutora Garett Marie Deckel relatou, em 2017, que recebeu e-mail de um paciente após assistir “Fragmentado”. “Há um novo filme sobre uma pessoa com TDI. É um filme de suspense/terror”, escreveu seu paciente, referindo-se ao filme do diretor M. Night Shyamalan. “Eu já assustei você?”, acrescentou.
O filme retrata o lado negativo de algo em que muitos encontraram pontos positivos, de acordo com especialistas e pessoas que vivem com TDI.
Amelia Joubert, que trabalha como babá e administra um grupo de suporte a pacientes de TDI no Facebook, disse que recebeu comentários online dizendo que ela não deveria trabalhar com crianças e perguntando se ela era perigosa.
“As pessoas estão chateadas com o filme”, disse ela. “Eles estão se sentindo discriminados, mas isso não é novidade”, completou.
* CNN Q&A e Michael Nedelman, da CNN, contribuíram para esta reportagem
- Texto originalmente publicado em CNN Brasil