Rute aproveitava um dia de sol em uma praia em João Pessoa, na Paraíba, aos quatro meses de idade, quando seus pais notaram uma mancha amarela em um de seus olhos.
“Meu marido perguntou: ‘É normal isso?’ E eu respondi que não sabia, que estava vendo pela primeira vez”, lembra a mãe, Sheila Batista de Oliveira, que na época tinha 21 anos.
A procura de um médico que pudesse explicar o que era aquilo veio logo em seguida. De acordo com Sheila, a primeira suspeita do oftalmologista é que pudesse ser catarata, uma doença mais comum em idosos, mas que também pode causar manchas oculares quando acomete crianças.
“Quando chegaram os resultados de exames, ele perguntou se eu poderia ir acompanhada para receber a notícia, que o quadro era pior do que ele esperava.”
“Chamei minha tia que era enfermeira e ele explicou que minha filha estava com retinoblastoma, um câncer no olho, e que deveríamos procurar o Hospital Napoleão Laureano com urgência”, lembra.
O retinoblastoma é um tumor maligno que se origina nas células da retina, a parte do olho responsável pela visão. É um tipo de câncer considerado raro e pode afetar um ou ambos os olhos.
“Esse tumor afeta majoritariamente crianças de até 5 anos. Ele é constituído por células da retina (os receptores que captam a luz) porém ainda na forma indiferenciada, ainda não totalmente ‘maduras’, que são as células presentes nas crianças. A causa da doença está associada a alteração em um gene chamado de ‘RB’, que em pessoas sadias produz uma proteína que impede o desenvolvimento do tumor”, esclarece Christiane Rolim, oftalmologista pediátrica do Sabará Hospital Infantil.
Apesar do pouco tempo de vida, o câncer já estava avançado em Rute. No Hospital Napoleão Laureano, que é filantrópico e referência no tratamento de câncer e doenças de sangue, a pequena foi logo levada para uma cirurgia que retirou seu olho (o que os especialistas se referem como ‘enucleação ocular’).
“Não foi nada fácil ter uma filha saudável, perfeita, e pouco tempo depois descobrir que ela está com um câncer no olho que pode tirar sua vida”, diz a mãe.
Os sintomas e diagnóstico
Quanto mais cedo o retinoblastoma é descoberto, maior é a chance de preservação da visão e da remissão do câncer, explica Sidnei Epelman, oncologista pediatra, presidente da Tucca (Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer).
“Os pais cometem um erro quando ignoram mudanças oculares nas crianças e demoram demais para levá-las ao médico. É um câncer que pode ser agressivo se você deixá-lo ‘caminhar.’ Ele pode matar se virar extraocular e atingir o sistema nervoso central.”
O principal sintoma do retinoblastoma é a manifestação de um reflexo brilhante no olho doente, parecido com o brilho que apresentam os olhos de um gato quando iluminados durante à noite. As crianças também podem ficar estrábicas (vesgas), ter inchaço nos olhos, dor ou perder a visão, sendo os últimos sinais os mais difíceis de perceber nos primeiros meses de vida.
“É no exame de fundo de olho e no teste do reflexo vermelho, usualmente feito pelo pediatra, que é possível um rastreamento precoce do tumor”, indica Rolim.
De acordo com a oftalmologista pediátrica, além do exame oftalmológico usual, é comum que a criança seja submetida ao mapeamento de retina e a documentação com fotografias de diferentes tipos.
“Se a criança for muito pequena e pouco colaborativa, será necessário realizar esse exame sob sedação para que ele seja o mais minucioso possível, e que ambos os olhos possam ser examinados. Posteriormente uma ressonância magnética das órbitas e do cérebro colaboram com o diagnóstico diferencial e estadiamento (checagem se o câncer se espalhou).”
O longo tratamento de Rute
Pouco tempo depois da cirurgia de Rute, os médicos detectaram que a doença também estava no outro olho. “Eles me disseram que eu teria que procurar ajuda em São Paulo porque os tratamentos que tinham ali eram limitados e minha filha precisaria de outras opções”, conta Sheila.
A família foi encaminhada para a Tucca – Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer, que tem sede em São Paulo e parceria com o Hospital Santa Marcelina. A associação recebe, sem cobrar por isso, pacientes de todas as partes do Brasil.
A mãe foi à São Paulo sozinha porque a família não tinha condições financeiras de acompanhá-la e sua ida foi arranjada com a ajuda de uma assistente social. Lá, ouviu do médico que a equipe faria de tudo para salvar a vida da sua filha, mas que não poderiam garantir que ela manteria a visão.
“Eu tenho muita fé e comecei a rezar para que minha filha fosse curada pelas mãos do médico, o doutor Luiz Fernando. Foi um período muito difícil, eu só chorava. Não comia, não cuidava de mim, não tinha nenhum familiar perto. Estava perdida em uma cidade onde não conhecia nada. Acabei desenvolvendo depressão”, diz Sheila.
Rute recebeu uma prótese ocular para o olho que havia sido retirado e recebeu três tipos diferentes de quimioterapia — foi só na terceira tentativa que seu organismo de fato aceitou o tratamento. Paralelamente, o uso de terapia com laser foi feito em sua visão.
“Cada sessão era uma esperança de que eu voltaria para João Pessoa com a minha filha viva e enxergando”, afirma Sheila.
A menina ficou em tratamento durante os primeiros seis anos de vida, com curtos períodos de pausa para que sua mãe pudesse levá-la para ver a família. Quando ela tinha três anos, Sheila engravidou de Isaac, que também passou os primeiros anos de vida em observação, mas não teve o mesmo câncer da irmã.
Alguns meses antes do aniversário de sete anos de Rute, a equipe do Tucca informou à mãe que um pequeno tumor, do tamanho de um grão de feijão, havia surgido na cabeça.
“O médico liberou que ela fosse para João Pessoa comemorar o aniversário para depois encararmos as possibilidades de tratamento. Com medo que fosse a última, fizemos uma festa maravilhosa com a ajuda de toda a família.
De volta à São Paulo, Rute seguiu com o tratamento de quimioterapia e laser, mas os médicos decidiram manter o tumor sob observação para evitar que uma cirurgia muito arriscada fosse feita sem necessidade.
“Em seis meses, o tumor não tinha crescido nem diminuído. Continuava do tamanho de um feijão. Mas depois de um ano, o exame não mostrava mais nada. Foi o milagre que pedi a Deus”, diz a mãe.
Para a família, que pôde voltar à João Pessoa com o compromisso de examinação periódica para Rute, era o fim de uma longa jornada em busca da cura.
Rute manteve 80% da sua visão no olho direito, e hoje, conforme conta sua mãe, é uma aluna exemplar, uma filha amorosa e apaixonada por música. “Ela chega da escola e já pega o violão. Fica horas tocando as músicas da Paula Fernandes”, diz Sheila.
Como o tratamento evoluiu nos últimos anos
“O tratamento evoluiu consideravelmente, com o uso de laserterapia, de placas de radiação colocadas na porção externa do globo e principalmente com a quimioterapia, que tem sido realizada atualmente na cavidade vítrea (dentro do globo) e intraarterial (nas artérias retinianas), e eventualmente sistêmica”, explica a médica do Hospital Infantil Sabará.
As atualizaçãos, associadas ao diagnóstico precoce, visões, olhos e vidas têm sido salvas.
Apesar disso, Sidnei Epelman, oncologista pediatra e presidente da Tucca, conta que, em seus 20 anos à frente da instituição, não notou uma melhora em relação ao conhecimento da população geral sobre a doença. “As famílias se informam depois que recebem o diagnóstico. Mas conhecer a doença antes é extremamente importante para chegar a um diagnóstico precoce, e é por isso que todo ano fazemos campanhas.”
– Este texto foi publicado originalmente em BBC News