Muito provavelmente, 2023 vai ficar marcado como o ano em que saíram as piores e as melhores notícias sobre a dengue até o momento.
Por um lado, o Brasil registra o surto mais mortal da doença desde que os dados começaram a ser compilados. Em 2022, foram 1.017 mortes por dengue no país, um recorde histórico. E os óbitos permanecem elevados nos primeiros meses deste ano.
Por outro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou uma nova vacina contra a dengue, que pode ser usada em indivíduos de 4 a 60 anos e mostrou uma eficácia de 80,2%, além de 90,4% de proteção contra hospitalizações.
Mas será que o imunizante representará o ponto final dessa epidemia histórica que assola o Brasil há décadas e parece não ter fim?
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a vacina representa de fato uma nova fase no combate à dengue, mas o controle do vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti continuará a depender de uma série de estratégias combinadas na saúde pública.
Que vacina é essa?
Antes de entrarmos nos detalhes do novo produto, é preciso fazer uma breve explicação: o vírus da dengue possui quatro sorotipos diferentes, conhecidos pelas siglas Denv-1, Denv-2, Denv-3 e Denv-4.
Na prática, isso significa que uma pessoa pode ser infectada com esse patógeno até quatro vezes na vida.
A nova vacina, testada e produzida pela farmacêutica japonesa Takeda, é tetravalente — ou seja, resguarda contra esses quatro sorotipos.
Ela é feita a partir da tecnologia quimérica, em que os cientistas usam a estrutura do Denv-2 como uma espécie “esqueleto”, sobre o qual são inseridas as informações genéticas das quatro versões do vírus da dengue.
As doses trazem esse vírus vivo atenuado, que é reconhecido pelas células de defesa e gera uma resposta imune capaz de proteger contra o patógeno de verdade.
O esquema vacinal contempla duas doses, que são aplicadas com um intervalo de três meses entre elas.
“A nossa vacina foi aprovada pela Anvisa no dia 2 de março para indivíduos de 4 a 60 anos de idade, e pode ser usada em todos, independentemente se eles tiveram algum contato prévio com o vírus da dengue ou não”, resume a médica Vivian Lee, diretora executiva de Medical Affairs da Takeda no Brasil.
E essa questão da exposição prévia ao vírus citado pela especialista é bem relevante. Isso porque, em 2015, várias agências regulatórias do mundo (incluindo a Anvisa) aprovaram a Dengvaxia, um imunizante contra a dengue desenvolvido pela farmacêutica Sanofi.
Acontece que, após algum tempo de uso, descobriu-se que esse imunizante poderia aumentar o risco de dengue grave em indivíduos que não haviam sido afetados por esse patógeno antes da vacinação.
Com isso, essas doses passaram a ser indicadas apenas para aquelas pessoas com histórico de dengue — assim, elas estariam mais protegidas caso fossem picadas pelo Aedes aegypti uma segunda, terceira ou quarta vez.
Mas, na prática, todas essas barreiras dificultaram o uso da Dengvaxia na saúde pública. Afinal, antes de aplicar o produto, é necessário fazer um exame de sangue para comprovar se o sujeito tem anticorpos contra algum sorotipo da dengue.
“Essa vacina aprovada anteriormente tem muitas limitações. Além da necessidade de um teste prévio, ela precisa de três doses, com um intervalo de seis meses, para oferecer proteção. Diante de tudo isso, nunca houve uma perspectiva de uso dela na saúde pública”, avalia o médico Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
O que dizem estudos recentes
Mas essa experiência prévia serviu de aprendizado. Desde o episódio da Dengvaxia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a sugerir que os estudos de novas vacinas contra a dengue tivessem uma duração ampliada, de três ou quatro anos, justamente para flagrar possíveis efeitos colaterais que não aparecem em testes mais curtos, que duram alguns meses.
E foi exatamente isso o que aconteceu com a Qdenga, a vacina da Takeda: antes de receber o sinal verde das agências regulatórias, ela foi avaliada em 19 testes clínicos, que envolveram mais de 28 mil voluntários espalhados por várias partes do mundo (incluindo o Brasil).
Um dos estudos mais importantes dessa leva foi apelidado de Tides. Neste trabalho específico, os responsáveis pelo imunizante acompanharam mais de 20 mil vacinados durante quatro anos e meio.
Os resultados do Tides apontam que a Qdenga preveniu 80,2% dos casos de dengue sintomática após 12 meses da vacinação e evitou 90,4% das hospitalizações 18 meses após a aplicação das duas doses.
Na análise final, quando se completaram os quatro anos e meio de acompanhamento, o efeito das doses caiu um pouco: a eficácia contra casos sintomáticos baixou para 61% e contra hospitalizações ficou em 84%.
“Essa redução era esperada e, mesmo assim, a proteção se manteve num bom nível, mesmo com o passar dos anos”, aponta Lee.
Durante esse período de análise, também não foram observados riscos maiores de complicações por dengue entre os voluntários, mesmo naqueles que nunca tiveram a doença.
Vale destacar, porém, que a eficácia variou de acordo com o sorotipo do vírus. Ela foi maior para o Denv-1 (69,8%) e o Denv-2 (95,1%) e menor para o Denv-3 (48,9%) — não foram observados casos suficientes de Denv-4 para estabelecer um resultado de eficácia significativo.
Segundo Lee, esse fato é relevante para o Brasil, uma vez que os sorotipos um e dois são os mais frequentes no país.
“O sorotipo três provocou um surto no Brasil há mais de 15 anos. Já o Denv-4 nunca foi observado em larga escala no país ou na América Latina”, pontua a médica.
Como vai ser na prática?
Embora a vacina contra a dengue da Takeda tenha sido aprovada no Brasil, isso não quer dizer que ela já está disponível para uso.
Com o “ok” da Anvisa, a próxima etapa envolve a avaliação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão do governo responsável por determinar qual preço será cobrado por cada dose.
Essa etapa costuma demorar cerca de três meses para ser concluída.
Com o valor definido, o imunizante já pode ser vendido no país. “Projetamos que a vacina contra a dengue estará disponível no Brasil a partir do segundo semestre de 2023, inicialmente nas clínicas privadas”, projeta Lee.
Mas e na rede pública? Para ser usada no Programa Nacional de Imunizações (PNI), a Qdenga precisará cumprir um terceiro rito: ter uma análise favorável na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, a Conitec.
Questionado pela BBC News Brasil sobre o assunto, o Ministério da Saúde afirmou em nota que a incorporação da Qdenga no PNI é “uma prioridade”.
Porém, mesmo que todas as etapas em órgãos como Anvisa, CMED e Conitec sejam superadas, há ainda uma grande discussão sobre quais públicos-alvo serão convocados para uma futura campanha de vacinação contra a dengue.
“A princípio, a recomendação seria a de vacinar toda a população para as quais as doses estão aprovadas, o que engloba indivíduos de 4 a 60 anos”, diz o médico Alberto Chebabo, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
“Caso não tenhamos doses suficientes e precisemos priorizar alguns grupos, será necessário montar uma estratégia.”
“A princípio, vacinar os indivíduos com maior risco de complicação, como os mais velhos, pode ser uma boa ideia. Por outro lado, se você inicia pela população infantil, tem um ganho no longo prazo, pois aos poucos cresce a porcentagem da população que estará protegida”, complementa o especialista.
Kfouri concorda. “Precisaremos de modelos matemáticos para entender onde obteremos os maiores benefícios”, aponta.
“Será que daremos a vacina a toda uma faixa etária? Ou priorizaremos as regiões do país que são tradicionalmente mais atingidas pela dengue?”, questiona.
Métodos antigos
A dengue é um problema histórico do Brasil. Desde o final do século 19, são registrados surtos da doença no país, sendo que a situação se agravou a partir dos anos 1980, com a expansão desenfreada das cidades — e, por consequência, dos reservatórios de água parada que servem de criadouro para o Aedes aegypti.
Segundo o Ministério da Saúde, foram confirmados 1,4 milhão de casos e mil mortes pela doença somente em 2022. Esse foi o pior ano da epidemia desde o início da série histórica, em 2010.
“A dengue tem um impacto alto em nosso sistema de saúde, muitas vezes com a necessidade de montar estruturas temporárias para atender a grande demanda de casos e internações que aparecem a cada temporada”, explica Chebabo.
“Para piorar, a doença vem crescendo pelo país. Os Estados do Sul, que não tinham infecções do tipo, passaram a registrar surtos mais recentemente graças à expansão da área onde o mosquito habita”, complementa.
Por ora, as únicas estratégias disponíveis eram as campanhas de conscientização, que orientavam as pessoas a acabar com qualquer reservatório desprotegido de água parada nas casas.
Ações públicas de saneamento básico, manejo de lixões e vaporização de inseticidas (o popular fumacê) também faziam parte da rotina.
“O problema é que todas essas medidas são custosas e difíceis de realizar, principalmente num país como o Brasil, com cidades desestruturadas”, avalia Chebabo.
“E vale dizer que essas políticas funcionam mas, toda vez que você fica um tempo sem atuar, os casos e as mortes voltam a subir. É o que estamos vendo agora, em que as estratégias contra a dengue ficaram paralisadas durante a pandemia de covid-19”, completa o infectologista.
Será o fim da epidemia?
Mas a prevenção da dengue parece estar entrando numa nova fase em anos mais recentes.
Primeiro, por meio dos métodos que tentam controlar a quantidade de vírus que os mosquitos carregam.
Uma das iniciativas mais promissoras nesse campo é coordenada pelo World Mosquito Program, que faz ações em 12 nações, incluindo o Brasil.
Em nosso país, o programa ocorre em algumas cidades, como Rio de Janeiro e Niterói (RJ), Belo Horizonte (MG), Campo Grande (MS) e Petrolina (PE).
Em resumo, o projeto libera no ambiente centenas ou milhares de Aedes aegypti cultivados em laboratório que carregam a bactéria Wolbachia.
Os cientistas descobriram que a presença desse micro-organismo impede (ou ao menos dificulta) a transmissão do vírus da dengue pelos mosquitos para seres humanos.
“No acompanhamento que fizemos em Niterói desde 2007, vimos uma redução de até 77% nos casos de dengue em áreas que receberam o método Wolbachia“, calcula Luciano Moreira, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e líder do World Mosquito Program no Brasil.
“Esses resultados são corroborados por um estudo randomizado feito na Indonésia, que constatou uma redução de 77% nos casos e de 86% nas hospitalizações por dengue após a liberação dos mosquitos com a Wolbachia“, acrescenta o especialista.
Dentro desse contexto de novas tecnologias, não dá pra se esquecer, claro, da vacina contra a dengue recém-aprovada no Brasil.
Para Lee, da Takeda, o imunizante representa a “inauguração de um novo pilar” na forma de lidar com essa doença.
“Isso porque todas as demais estratégias têm o controle do Aedes aegypti como foco. A partir de agora, com a vacina, temos também uma opção voltada às pessoas, para protegê-las diretamente da doença”, diferencia a médica.
Além do produto da Takeda, há uma terceira vacina contra a dengue no horizonte, que está em testes no Instituto Butantan, em São Paulo.
Essa candidata está na última etapa de pesquisa, que reúne 16 mil voluntários do Brasil inteiro. Segundo informações preliminares, ela alcançou uma eficácia de 79,6% — os dados completos devem ser publicados em 2024.
Mas será que a vacinação ou o método Wolbachia sozinhos serão capazes de colocar um ponto final na histórica epidemia de dengue?
Segundo os especialistas, a saída para melhorar o controle dessa doença está em combinar todas as estratégias disponíveis.
“A vacinação é uma medida adicional que, para ter um impacto na mortalidade, precisa contemplar uma grande parcela da população”, acredita Kfouri.
“As novas tecnologias, como os imunizantes e o método Wolbacchia, vêm para agregar ao rol de ações que fazem parte da nossa rotina contra a dengue. As pessoas ainda precisam ser conscientizadas e saber da importância de cuidar do quintal para evitar os reservatórios de água parada”, diz Moreira.
“Todas essas medidas não serão capazes de erradicar de vez a dengue, mas com certeza podem contribuir e muito para a redução significativa dos casos e das mortes”, conclui o pesquisador.
– Texto publicado originalmente no site BBC News