Julia tem 26 anos e passou os últimos cinco sem saber se sua mãe, dependente química, estava viva.
Depois que a mãe deixou a cidade onde as duas moravam no sul do país e se mudou para São Paulo, em 2015, elas perderam quase todo o contato.
Nos primeiros dois anos após a mudança, Julia afirma que ainda recebia notícias de tempos em tempos por meio de sua avó, que mantinha uma relação distante com a filha. Mas depois que a avó faleceu, toda comunicação foi perdida.
“Fiquei praticamente cinco anos sem saber se minha mãe estava viva ou morta”. “Essa dúvida me matava”. “O mais difícil foi ficar sem saber se deveria criar esperança de ver ela novamente e correr o risco de me decepcionar.”
A única notícia que a jovem recebeu da mãe durante esse período veio de um amigo, que a encontrou por acaso há cerca de três anos nas ruas do centro de São Paulo, na região conhecida como Cracolândia, área conhecida por abrigar dependentes químicos e traficantes.
“Ele me disse que ela estava extremamente magra e sem alguns dentes. Ele ficou tão abalado que nem conseguiu pegar um contato”, diz.
Há cerca de dois meses, porém, as duas se reencontraram.
A família de Julia recebeu no final de junho uma ligação de um hospital em São Paulo, onde a mãe da jovem estava internada após ser atropelada por um carro.
“Fiquei muito feliz quando recebi notícias”, conta. “Ao mesmo tempo tive medo, porque não sabia o que esperar quando a visse novamente.”
“Mas decidi dar uma chance para ela e a ajudar na recuperação.”
Julia viu a mãe pela primeira vez pela tela de seu celular, em uma chamada de vídeo. “Eu não tinha condições de viajar para São Paulo, então os enfermeiros do hospital me ajudaram a falar com ela pelo telefone”, diz.
“Quando vi o rosto dela pela primeira vez foi bastante difícil, pois ela estava muito diferente do que me lembrava, muito magra e debilitada.”
Em São Paulo, segundo Julia, a mãe provavelmente passou muito tempo morando nas ruas ou em meio a outros usuários de crack que ocupam algumas ruas no centro da cidade.
“Mas ela me disse que também ficava em albergues algumas noites”, relata.
Julia contou com a ajuda do hospital para transferi-la até a cidade onde mora.
Após algumas semanas em uma clínica psiquiátrica, onde passou por um processo de desintoxicação, a mãe recebeu alta e foi levada para casa.
Desde o início de agosto ela está internada em um centro de reabilitação. “Ela está progredindo, já está ganhando peso e com a aparência melhor”, diz a filha.
“O tratamento completo deve durar nove meses, mas é totalmente voluntário. Ela tem me dito que está empenhada em melhorar e que quer ficar lá, mas não podemos obrigá-la a nada.”
“Estou bastante positiva, mas ao mesmo tempo tentando não criar expectativas demais, porque sei que pode ser um processo difícil”.
‘A cidade a engoliu’
Julia conta que essa não foi a primeira vez que a mãe se envolveu com o crack. “O vício está presente na vida dela desde os 15 anos, quando ela começou a usar drogas”, diz.
Ainda na adolescência, a mãe foi internada em uma primeira clínica de reabilitação e, após engravidar aos 18 anos, passou um longo período sóbria. Mas em 2013, quando se mudou para o Rio de Janeiro, Julia acredita que ela voltou a usar drogas.
“Ela passou cerca de dois anos no Rio e em 2015 foi para São Paulo. Foi aí que a cidade a engoliu”, conta à BBC News Brasil.
“Sempre fui muito apegada à minha mãe e durante os anos que passei longe dela sentia muita falta, especialmente do afeto”, diz. “Minha mãe sempre foi a pessoa que me dava carinho, abraços e contato físico.”
“Cheguei ao fundo do poço várias vezes depois que ela foi embora e minha avó faleceu. Mas desde o ano passado estou me sentindo melhor, com acompanhamento psicológico e fazendo terapia.”
‘Achava que era a única no mundo’
Um dia antes de sua mãe receber alta da clínica psiquiátrica onde ficou internada por algumas semanas, Julia decidiu compartilhar sua história nas redes sociais.
“Estava muito ansiosa para pegá-la no hospital e levá-la para casa. Estava insegura em ficar sozinha com ela”, diz. “Aí decidi postar minha história no TikTok como uma forma de desabafo.”
O primeiro vídeo de Julia sobre sua trajetória com a mãe já tem mais de 14 milhões de visualizações no aplicativo. Desde então ela vem postando atualizações sempre que recebe notícias da mãe e seu progresso na reabilitação.
“Imaginei que o vídeo poderia viralizar, mas não dessa forma”, conta. “Desde que postei tenho recebido muitas mensagens de pessoas que têm histórias parecidas com a minha e enfrentam problemas com familiares dependentes.”
“Fiquei bastante surpresa, porque em vários momentos achava que era a única pessoa no mundo a viver uma história assim. A gente sempre pensa que o nosso problema é o pior do mundo, né?”
“Mas não é verdade e, de certa forma, ouvir os relatos me ajudou um pouco. E fico feliz em também poder ajudar outras pessoas da mesma forma.”
Julia diz que o principal conselho que dá a todos que entram em contato com ela é procurar acompanhamento psicológico. “Digo sempre para procurarem terapia. Às vezes as pessoas podem se concentrar apenas em ajudar os pais dependentes e acabam esquecendo de si mesmos. Isso não pode acontecer”, afirma.
Um problema social
O drama vivido por Julia é comum entre os familiares dos centenas de dependentes químicos que vivem no centro de São Paulo atualmente.
A região conhecida como Cracolândia é um dos principais problemas sociais da cidade desde o início da década de 1990, quando o entorno da praça Júlio Prestes, na região da Luz, passou a ser ponto de concentração de usuários de drogas, principalmente crack. Mais recentemente, a cena aberta de uso de drogas se mudou para a praça Princesa Isabel, a poucos metros dali.
Após uma operação policial em maio de 2022, os dependentes químicos e moradores de rua se dispersaram, mas não deixaram as ruas da parte central de São Paulo.
Segundo um levantamento de julho de 2022, feito pelo LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, um total de 1.000 a 2.000 pessoas transitam em pequenas aglomerações por diversas esquinas da região da Luz, Santa Cecília, República e Campos Elíseos.
Diferentes governos já tentaram acabar com a concentração, mas nenhuma ação foi totalmente bem-sucedida até o momento.
“Fenômenos semelhantes a Cracolândia existem em diversas grandes cidades do mundo e são resultado de diversas questões — como falta de moradia; incapacidade do mercado de trabalho de absorver toda a mão de obra disponível; insuficiência de políticas de atenção à saúde mental”, diz o estudo do LabCidade.
“Por isso, as políticas públicas com melhores resultados no enfrentamento desse tipo de situação em outras partes do mundo são justamente as ações que buscam ao menos amenizar os problemas relacionados ao consumo abusivo de drogas e a falta de moradia”.
Outro estudo, desenvolvido por pesquisadores do Centro de Pesquisa de Vícios da Noruega (UiO), pela Universidade de Oslo e pelo King’s College de Londres em 2014, analisou o caso de cinco cidades europeias que também tiveram problemas com cenas aberta de uso de drogas e compilou algumas das soluções adotadas por elas para reverter a situação.
Segundo Thomas Clausen, professor da Universidade de Oslo, membro do UiO e um dos autores do estudo, operações policiais para dispersar cenas abertas de uso de drogas tendem a não ser bem-sucedidas quando não combinadas com ações de assistência social e tratamentos.
“Se a polícia remover um grupo de pessoas de um determinado lugar da cidade, eles precisarão ir para outro”, diz o médico à BBC News Brasil. “Somente a polícia não é capaz de resolver o problema”.
“A chave aqui é disponibilizar serviços de habitação, tratamento e saúde em diferentes áreas próximas das pessoas necessitadas. Isso inclui serviços sociais, habitação, serviços de dependência e serviços de saúde”, afirma Clausen, que no estudo analisou os casos de Amsterdã, Zurique, Viena, Lisboa e Frankfurt.
“Salas seguras de consumo de drogas e serviços de consumo assistido de drogas de baixo limiar, também precisam ser estabelecidos como parte do tratamento.”
– Este texto foi publicado originalmente em BBC News