Mais que o número de infectados e mortos, surtos globais como o coronavírus provocam mudanças de comportamento, caos social e disseminação de boatos
Se você não estava num retiro espiritual em terras remotas ou numa viagem à Marte, já percebeu que vivemos um momento singular e histórico. A pandemia provocada pelo novo coronavírus é assunto em todo o mundo desde o início de janeiro de 2020, quando os primeiros casos começaram a brotar e se espalhar a partir da China.
Com o passar das semanas e o aumento dramático no número de infectados, eventos começaram a ser cancelados ou suspensos. Festivais e campeonatos esportivos foram paralisados. Líderes mundiais como o americano Donald Trump e a alemã Angela Merkel admitiram recentemente que vivemos o maior desafio global desde a Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945.
Você pode imaginar, caro leitor, como a redação de SAÚDE está no presente momento, cientes de nossa responsabilidade em levar informações de qualidade e que façam a diferença na sua vida. Mais do que noticiar os fatos do dia, tentamos sempre estimar qual o significado de cada descoberta, qual o impacto de cada informação nova no seu dia a dia. Num momento de crise, temos a certeza absoluta que esse tipo de conteúdo faz diferença.
Nos últimos dois meses, conversei com mais de 30 profissionais de saúde e cientistas: infectologistas, virologistas, biólogos, enfermeiros, químicos, epidemiologistas e outros especialistas me ajudaram a entender mais do assunto e a produzir reportagens o mais atualizadas possível até você. Boa parte dessa apuração foi utilizada para escrever uma matéria para a edição de março da revista (que você pode ler aqui). A segunda parcela das conversas servirá para nortear uma segunda reportagem especial, que sairá na revista de abril.
Ao longo de toda a correria, resolvi adotar um hábito. No início de cada entrevista, repito a mesma pergunta para todos os profissionais: é possível equiparar o momento que vivemos agora e o coronavírus com algum fato histórico? Na maioria das vezes, o silêncio toma conta da ligação por alguns segundos. Invariavelmente, surgem três respostas: a peste negra, a gripe espanhola e a gripe suína. Chegou a hora de conhecer, então, as semelhanças e diferenças entre essas três ameaças do passado com o pesadelo que assola o nosso presente.
Ratos e pulgas assolam a Europa e a Ásia
O infectologista Stefan Cunha Ujvari, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, é um apaixonado pelo passado. Nos últimos anos, ele lançou uma série de livros que fazem uma relação entre a medicina e as grandes mudanças na sociedade ao longo do tempo. Na obra A História da Humanidade Contada pelos Vírus, Bactérias, Parasitas e Outros Micro-organismos (clique aqui para comprar), revela como esses seres microscópicos moldaram a evolução no planeta ao longo de milênios e, hoje, nos ajudam a entender nossa própria origem na Terra.
Quando fiz aquela primeira pergunta para o doutor Ujvari, ele não titubeou: “No século 14, a peste negra gerou um pânico na população muito parecido ao que estamos vivendo agora. As pessoas ficaram isoladas, ninguém saia às ruas, com medo de entrar em contato com os miasmas, gases venenosos que supostamente estariam por trás da doença”.
Claro que o ar não tinha nada a ver com a questão: a peste bubônica, nome correto da condição, é provocado pela bactéria Yersinia pestis, que acaba transmitida ao ser humano por meio de pulgas que infestam ratos e outros roedores.
Acontece que, naquela época, Europa e Ásia eram um verdadeiro lixão a céu aberto. Sem nenhum tipo de saneamento básico, as pessoas jogavam as próprias fezes no meio da rua. Se um indivíduo passasse distraído no momento do despejo de excrementos, corria o risco de voltar para casa completamente sujo e fedido.
Esse cenário insalubre foi perfeito para que ratos, pulgas e bactérias fizessem a festa. Estimativas dão conta que a peste negra tenha matado entre 75 a 200 milhões de pessoas, praticamente um terço de toda a população que vivia nessa região do planeta.
O quadro O Triunfo da Morte, do holandês Pieter Bruegel (veja abaixo), dá uma noção poética e macabra do caos no período da peste negra: corpos amontoados são levados em carroças puxadas por caveiras. Mais dramático, impossível, não?
Ujvari vê outras coincidências entre o período da peste negra e os tempos atuais: “No século 14, muita gente passou a adotar o hábito de pendurar dentes de alho no pescoço, para se proteger dos ares contaminados”, conta. Pois é, apostar em soluções milagrosas (e aparentemente sem nexo) já é uma tradição de séculos… Hoje, para combater o coronavírus, é possível encontrar receitas caseiras que envolvem o mesmíssimo alho, ou outros ingredientes como o vinagre, o limão e a cúrcuma. Infelizmente, isso não passa de crendice popular.
Ainda vale mencionar que a própria noção de quarentena surgiu nesse período da história: a então República de Veneza, cujo território hoje pertence à Itália, foi bastante atingida pela peste negra (a epidemia provavelmente começou ali, acreditam alguns historiadores). Um membro do clero sugeriu que se adotasse a restrição de circulação livre das pessoas, especialmente daquelas que chegavam em barcos e navios.
A escolha de 40 dias (ou quaranta giorgi, no bom italiano) obedeceu critérios bíblicos: algumas passagens do Velho Testamento falavam desse tempo de isolamento para surtos de lepra (ou hanseníase, nos termos modernos).
Claro que, hoje em dia, nem sempre o período de reclusão completo é respeitado: as pessoas são liberadas de acordo com a evolução da doença e quanto ela leva para provocar sintomas e ser transmissível. Os brasileiros que voltaram da China e ficaram de quarentena na Base Aérea de Anapólis, em Goiânia, por exemplo, permaneceram encerrados por duas semanas.
É óbvio que existem inúmeras e evidentes diferenças entre a peste negra e a Covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus. Pra começo de conversa, a primeira é causada por bactérias e a segunda por vírus. Também devemos levar em conta que a ciência evoluiu demais nos últimos setes séculos: em 1 300 e pouco, nem se sabia da existência de micro-organismos, que dirá de remédios ou vacinas eficazes de combatê-los.
A gripe espanhola, que NÃO surgiu na Espanha
“Conselhos ao povo da inspetoria de higiene:
- EVITAR aglomerações, principalmente à noite.
- NÃO fazer visitas.
- TOMAR cuidados higiênicos com o nariz e a garganta […]
- EVITAR toda fadiga ou excesso físico
- O DOENTE, aos primeiros sintomas, deve ir para a cama, pois o repouso auxilia a cura e afasta as complicações e contágio. Não deve receber, absolutamente, nenhuma visita.
- EVITAR as causas de resfriamento, é de necessidade tanto para os sãos, como para os doentes e convalescentes.[
- AS PESSOAS IDOSAS devem aplicar-se com mais rigor ainda todos esses cuidados.”
Numa primeira leitura rápida, é possível pensar que essas recomendações foram publicadas em algum site nos últimos dias numa campanha de prevenção contra o coronavírus, certo? Porém, a verdade é que elas foram escritas em 1918 e veiculadas em jornais da época, como você pode ver abaixo. O objetivo era conscientizar nossos bisavôs e bisavós sobre formas de se proteger da gripe espanhola, que causava terror no mundo todo.
A gripe espanhola é considerada por muitos especialistas a mãe das pandemias: provocada pelo vírus influenza do tipo A H1N1, ele contaminou mais de 500 milhões de pessoas e provocou entre 17 e 50 milhões de mortes. Ao menos um quarto de toda a população do planeta se infectou com essa doença.
No Brasil, estima-se que a gripe espanhola tenha matado ao menos 35 mil pessoas. Entre elas, destaca-se o então presidente eleito Rodrigues Alves, que estava pronto para iniciar um segundo mandato como chefe da república. O político paulista não resistiu às complicações e morreu no dia 16 de janeiro de 1919.