Vacinas têm seu modo de aplicação definido a partir de muitas variáveis, que vão da facilidade do desenvolvimento à praticidade do processo de imunização em si.
Para as crianças, a melhor vacina era aquela contra a pólio. Sem picada. Indolor, em gotas — e ainda com o inesquecível mascote Zé Gotinha fazendo suas palhaçadas — e a visita ao posto de saúde costumava trazer apenas boas recordações, junto àquele sabor esquisito.
Deu certo. A gotinha inventada pelo polaco-americano Albert Sabin (1906-1993) erradicou a poliomielite do Brasil — o último caso confirmado foi em 1989 e a Organização Mundial de Saúde declarou o país livre da doença em 1994.
Agora que o mundo vive uma corrida sem precedentes por outra vacina, a que pretende imunizar os humanos contra o novo coronavírus, fica a pergunta: como será esse medicamento? Injetável? Oral? Nasal?
Ainda há mais perguntas do que respostas, evidentemente. Mas entre os mais de 150 projetos sendo desenvolvidos, há alguns que devem dispensar a picada, sim. Por exemplo, a proposta que segue em estudos no Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Queremos ir direto ao alvo. E o alvo é proteger as mucosas”, diz à BBC News Brasil o médico Jorge Elias Kalil, que coordena o projeto. Sua vacina, se concluída, será aplicada via nasal.
“Uma vacina por via nasal induz a resposta local. Nem todas as vacinas a gente consegue fazer assim, mas tem muita gente realizando esse esforço”, comenta ele.
Kalil acredita que as vacinas para prevenir a Covid-19 que estão sendo testadas em grau avançado, injetáveis, intramusculares, podem não proporcionar uma “resposta” tão efetiva quanto a por via nasal, considerando que esta é a porta de entrada do novo coronavírus. “Mas só os testes vão dizer isso. Não podemos prever absolutamente nada”, afirma.
Como nascem as vacinas
Elementos fundamentais da saúde pública da humanidade nos tempos contemporâneos, as vacinas têm seu modo de aplicação definido a partir de muitas variáveis, que vão da facilidade do desenvolvimento à praticidade do processo de imunização em si.
Diretor do Laboratório de Imunorregulação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o médico Carlos Rodrigo Zárate-Bladés explica à BBC News Brasil que, de modo geral, “uma vacina ideal, perfeita, é aquela que induz uma resposta específica contra a doença que precisamos evitar”. Mas ele acrescenta que ela não pode causar efeitos adversos, tem de ser de fácil alocação e conservação durante o transporte, poder ser fabricada de modo barato e ser de fácil administração.
“Quando se está querendo criar uma vacina, pode-se pensar em todas essas situações ideais e fazê-la. Porém, quando os testes começam, os pesquisadores esbarram em uma série de dificuldades”, comenta. “Mas a gente pode escolher, dependendo da situação, de que forma fazer.”
Zárate-Bladés concorda que o vírus Sars-Cov-2, sendo “uma patologia que entra pelo ar”, permite uma “vacina nasal que simule a entrada do patógeno no organismo”. “Outros competidores [no desenvolvimento da vacina] estão muito mais à frente, mas podemos nos distanciar deles para vender a nossa vacina lá à frente”, argumenta. “[O método por via nasal] dá a chance de promover a formação de certos elementos, uma resposta imune não necessariamente igual a de quando usamos uma vacina aplicada por qualquer outra via diferente da rota natural de infecção.”
De acordo com o bioquímico Ricardo Gazzinelli, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a definição depende do patógeno a ser combatido.
“Na verdade, a área de vacinas é muito empírica, ou seja, baseada em experimentos que funcionam, ou não. Portanto, o que define o uso de vacina são os testes clínicos, e nem sempre o racional inicial”, afirma ele, por e-mail, à BBC News Brasil.
Pesquisador da Plataforma Científica Pasteur e professor do departamento de Imunologia da USP, o farmacêutico bioquímico Jean Pierre Schatzmann Peron não acredita na viabilidade de uma vacina nasal para prevenir a Covid-19. “A maioria será injetável. As vacinas nasais são mais trabalhosas”, afirma ele à BBC News Brasil.
“As vias de administração de vacinas culminam em diferentes tipos de respostas. A maior parte delas é injetável porque, primeiro, ela é eficiente para uma resposta imune, e esse tipo de resposta induz um anticorpo que fica circulando no sangue e é capaz de eliminar os patógenos que eventualmente atinjam o organismo”, comenta.
Peron compara: as por via oral ou nasal “podem induzir outro tipo de resposta por induzirem outro tipo de anticorpos”. “Coincidentemente, esse tipo de vacina também seria interessante contra o coronavírus porque, produzindo anticorpos nas mucosas, você poderia bloquear o vírus já num primeiro momento, na entrada.”
Zárate-Bladés lembra que as dificuldades de desenvolver uma vacina nasal estão até mesmo na fase de testes em animais. “Em modelos animais, como camundongos, macacos, coelhos, é muito mais fácil injetar algo do que fazê-los inalar”, explica. “É uma das dificuldades. E cada dificuldade na produção de uma vacina se reflete no aumento do custo de produção e, consequentemente, no preço final que essa vacina terá à frente.”
A volta da gotinha
No Brasil, a vacina em gotas se tornou tão associada ao combate à poliomielite que até um personagem foi criado para celebrar seu sucesso junto à criançada: o Zé Gotinha. Então funcionário público do governo federal, o artista plástico Darlan Rosa criou o mascote em 1986. Aos poucos, a figura foi sendo incorporada às campanhas de vacinação — não só da pólio — e se tornou conhecida em todo o país.
Desde 2011, entretanto, a vacinação contra a poliomielite não é exclusivamente oral. Agora, a criação de Sabin é apenas o reforço da versão injetável, considerada por alguns especialistas como mais segura e com menos efeitos colaterais. De acordo com Gazzinelli, isso só foi possível porque a doença está erradicada no Brasil.
“A vacina por via oral usa vírus vivo; a injetada contém o vírus ‘morto’. Ainda que as vacinas vivas induzam imunidade mais duradoura, quando você chega numa fase de erradicar uma doença, a viva é indesejada, pois a atenuação do vírus pode reverter, tornando-se patogênico de novo. E se espalhar na natureza novamente”, explica. “Neste caso, se opta por vacinas ‘mortas’.”
Por outro lado, as gotinhas têm um efeito da chamada “proteção de rebanho” — a criança que a ingere, acaba contribuindo para que o vírus não se espalhe. Isto porque na versão injetável, com o vírus inativado direto na corrente sanguínea, não ocorre uma colonização da mucosa intestinal. A gotinha, por sua vez, faz isso com o vírus atenuado — que, eliminado pelas fezes espalha-se no ambiente, imunizando terceiros que tenham contato com ele. De quebra, esse vírus atenuado compete com o selvagem na natureza.