O ministro da Economia, Paulo Guedes, lançou mão do popular “devo, não nego, pago quando puder” na terça-feira (3/8) para explicar as alternativas que o governo estuda para acomodar a despesa bilionária dos precatórios no Orçamento da União de 2022.
Os precatórios são dívidas assumidas pelo governo federal, Estados e municípios resultado de processos judiciais com trânsito em julgado, ou seja, sem possibilidade de recurso. Quando um cidadão ganha uma ação na Justiça contra o INSS, por exemplo, os valores que ele tem a receber da União passam a constituir os precatórios. Os benefícios previdenciários, aliás, estão entre as maiores cifras da dívida constituída.
O valor previsto para essas despesas no próximo ano, conforme as estimativas preliminares da equipe econômica, deu um salto, passando de R$ 54,7 bilhões em 2021 para algo próximo de R$ 90 bilhões.
Em busca de espaço para acomodar seus gastos, incluindo uma eventual reformulação do programa Bolsa Família, o governo estuda parcelar o pagamento da dívida.
Guedes negou que a medida constituísse um “calote”. Especialistas e parlamentares que criticaram a proposta, contudo, divergem do ministro.
A tentativa de postergar uma despesa obrigatória, dizem, aproxima a manobra orçamentária das pedaladas fiscais, termo que ficou conhecido durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. A diferença, neste caso, é que o governo tentará adiar os pagamentos com o aval do Congresso, por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
A OAB Nacional (Ordem dos Advogados do Brasil) classificou a medida como “institucionalização do calote”. Em tom parecido, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega afirmou em entrevista ao portal UOL que o governo estaria “propondo calote” e que a ideia tinha viés “nitidamente eleitoral”.
Em sua conta no Twitter, o diretor do Instituto Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, lembrou que os precatórios são despesas obrigatórias e que, nesse sentido, “não há discussão”. “Ou bem as regras fiscais são respeitadas ou de nada servem. A responsabilidade fiscal é posta à prova justamente nestes momentos. Isso não significa que não se possa debater o arcabouço fiscal. Agora, voluntarismo é outra coisa”, escreveu.
Na mesma rede social, o economista Leonardo Ribeiro, analista do Senado e especialista em finanças públicas, usou o termo “calote” ao se referir à proposta e destacou que há algum tempo parlamentares e analistas já sinalizavam preocupação com a trajetória de aumento dos precatórios da União.
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Déjà vu
Essa não é a primeira vez que o ministro da Economia aventa essa possibilidade. Em outubro do ano passado, Guedes fez proposta semelhante quando o governo tentava encontrar espaço fiscal para financiar o Renda Cidadã, candidato a substituir o Bolsa Família que não saiu do papel.
A medida foi muito mal recebida pelo mercado, e o governo decidiu não levá-la adiante naquela época.
A chefe de Economia da Rico, Rachel de Sá, avalia, contudo, que os dois momentos são diferentes e afirma que prefere esperar para ver o que vai ser definido.
A proposta do governo no ano passado, diz ela, “tinha toda cara de contabilidade criativa”. Tratava-se de um valor que já estava previsto no Orçamento — ou seja, o governo já havia se programado para pagá-lo —, e a discussão se deu em um momento em que o ministro lançava todo tipo de proposta para tentar viabilizar o Renda Cidadã, como a instituição de uma nova CPMF e o uso de parte dos recursos do Fundeb, fundo destinado à educação básica, para bancar o programa.
“Aquilo não estava sendo discutido de forma republicana”, ressalta.
Desta vez, a equipe econômica foi surpreendida com um volume de precatórios muito superior ao que tinha nas estimativas, diz ela, às vésperas do prazo de entrega do Orçamento de 2022 ao Congresso, previsto para 31 de agosto.
“Esse é um tipo de gasto que está entre os mais difíceis de se fazer previsão, já que depende de decisões do Judiciário”, pondera.
Para Rachel, é necessário que haja uma discussão sobre os precatórios, já que sua trajetória recente de alta ameaçaria não apenas programas como o Bolsa Família, mas outras despesas discricionárias do governo, dificultando o próprio funcionamento da máquina pública.
O risco é que uma eventual flexibilização do pagamento possa ser usada com motivações eleitorais, para se fazer um “super Bolsa Família”, ela exemplifica, sem que haja de fato um compromisso do governo com o controle das contas públicas.
O mercado reagiu negativamente à medida, diz ela, justamente porque já viu em outras ocasiões propostas relativamente coerentes se tornarem “Frankensteins” durante a tramitação no Congresso.
Nesse sentido, repercutiu mal a notícia veiculada na segunda-feira (2/8) de que a ala política do governo, com apoio do Centrão, buscava ampliar o valor médio do benefício do Bolsa Família de R$ 190 para R$ 400. A equipe de Paulo Guedes defende que o valor não passe de R$ 300 para não comprometer o equilíbrio dos gastos do governo.
Nesta terça, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocou panos quentes e afirmou que não há possibilidade de calote, que o Congresso não está disposto a romper o teto de gastos e que o Bolsa Família obedecerá as limitações impostas pelo Orçamento.
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As declarações ajudaram a arrefecer a alta forte do dólar, que chegou a ser cotado a R$ 5,27 e recuou para R$ 5,19, com valorização de cerca de 0,5%.
O economista do UBS BB Fabio Ramos, por sua vez, entende que alguns colegas possam interpretar a proposta como uma tentativa de “pedalada”, mas não concorda com o uso do termo.
De um lado, diz ele, o mecanismo de parcelamento de precatórios não é um instrumento novo, ainda que hoje esteja restrito a situações bem específicas — no caso de dívidas bilionárias, em que os valores excedam 15% do total de precatórios previstos para o ano, a Constituição autoriza que a União parcele no decorrer dos seis anos seguintes.
De outro, o valor expressivo dos precatórios de 2022, que cresceria quase 65% de um ano para outro, caso seja confirmada a estimativa de R$ 90 bilhões, criou um “problema de fluxo de caixa de curto prazo” que comprometeria o pagamento de outras despesas.
Em sua avaliação, é importante, no entanto, que a solução encontrada pelo governo obedeça o teto de gastos, para sinalizar o compromisso com o equilíbrio fiscal.
Caso a proposta apresente o pagamento fora do teto de gastos, abra caminho para a inclusão de outras despesas fora do teto ou para uma reformulação do Bolsa Família mais cara do que aquela que a equipe econômica vem sinalizando, o governo corre risco de perder credibilidade, diz o economista.
O que acontece agora
Na live em que usou a expressão popular do “devo não nego, pago quando puder”, promovida pela plataforma Poder360, Guedes deu alguns detalhou alguns pontos da PEC, que ainda está em elaboração.
Segundo ele, a medida afetaria principalmente as dívidas de maior valor, acima de R$ 66 milhões. Nesse caso, a União pagaria 15% do valor no próximo ano e parcelaria o restante em 9 anos.
Valores de até R$ 66 mil seriam pagos integralmente em 2022 e o restante, ou seja, a dívida com valores entre R$ 66 mil e R$ 66 milhões, teria o pagamento condicionado a um teto estabelecido a cada ano no Orçamento, que pode estar vinculado a um percentual da receita líquida corrente ou valores corrigidos anualmente pelo IPCA.
Fonte: BBC News