O procedimento pode ser a solução para problemas de saúde, bullying e preconceitos. Entretanto, há um debate ético em torno da operação
Ela admite que passou longos períodos sedentária e que usava o alimento como compensação para as constantes humilhações. Ao alcançar os três dígitos na balança, não conseguia mais caminhar por duas quadras sem sentir falta de ar e dores por causa do excesso de peso. Diante de tantos insucessos, procurou ajuda médica seis meses antes de completar 18 anos. Passou por uma bateria de exames e foi para a mesa cirúrgica logo que atingiu a maioridade, engrossando a lista cada vez maior de jovens de 16 a 19 anos que são submetidos à cirurgia de redução de estômago para perder peso.
Bárbara tinha predisposição genética para obesidade – o irmão, Bernardo, e a mãe, Maria Alice, também recorreram à bariátrica; e o pai morreu por complicações de diabetes quando ela ainda era adolescente. A jovem emagreceu 43 quilos em um ano. “A pessoa obesa não se enxerga obesa. Perdi as contas de quantas vezes ouvi: ‘Você tem um rosto tão bonito; é só emagrecer um pouco’. Cheguei a um ponto em que não aguentava mais a pressão psicológica”, conta a fonoaudióloga.
A estudante Manuela Perdiz Counago, 24 anos, também operou aos 18. Ela apresentava então índice de massa corporal 39 – o IMC considerado adequado para essa idade fica entre 18,5 e 25. Para ela, um dos fatores que dispararam o ganho de peso foi a morte precoce do pai, quando ela tinha 10 anos. “Eu já comia demais; depois disso, a comida virou minha melhor amiga. Buscava conforto”, lembra.
Manuela teve depressão e, às vezes, tentava forçar o vômito, além de tomar laxantes e praticar o jejum intermitente. “As pessoas me chamavam de bujãozinho”, conta. Por oito meses, ela fez acompanhamento com nutricionistas sem resultados. Foi parar no médico, e ele recomendou a cirurgia. Ela perdeu 30 quilos e acredita que ainda precisa emagrecer mais 15. “Cirurgia não é milagre, apenas mais um instrumento no combate à obesidade”, afirma. Hoje Manuela faz acompanhamento com psiquiatra para tratar a compulsão para comida.
As técnicas usadas em bariátricas são as mesmas tanto para adultos como para adolescentes. A mais realizada no mundo, o bypass gástrico em Y de Roux, consiste na redução do estômago e na alteração do intestino, que pode levar à perda de até 50% do peso inicial. Outra técnica bastante comum é a Sleeve, em que o estômago é cortado e transformado numa espécie de tubo, sem alteração intestinal. É preciso deixar claro que se trata de um procedimento invasivo e definitivo e que não haverá resultado sem esforço pré e pós-operação – seja em adultos, seja em jovens. “A prevenção é o melhor caminho. Os pais devem servir de exemplo, mostrando o que é uma alimentação saudável, além de prestar atenção na saúde emocional dos pequenos”, afirma o cirurgião bariátrico Caetano Marchesini, conselheiro executivo da Federação Internacional para a Cirurgia de Obesidade.
A pedido de CLAUDIA, o Ministério da Saúde e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) fizeram um levantamento sobre cirurgias de redução de estômago em adolescentes. Nos últimos dez anos, o número de jovens operados saltou 218% na rede privada, passando de 660 casos em 2008 para 2,1 mil casos no ano passado, quase seis cirurgias por dia em média. Em contrapartida, na rede pública de saúde, os procedimentos ainda são raríssimos, embora as filas de espera ultrapassem os cinco anos. Em 2018, o Sistema Único de Saúde registrou apenas 30 bariátricas em adolescentes.
Bernardo Ribas Mello de Lara Reginato, estudante de 21 anos, irmão de Bárbara, também recorreu à cirurgia quando completou 18 anos. Na época, ele apresentava IMC 42 – o que indica obesidade severa de grau 3. “Eu tinha compulsão para comida. No lanche da escola, costumava comer dois salgados e três pães de queijo. Tudo piorou aos 16 anos, quando meu pai morreu por causa de diabetes”, conta Bernardo.
O garoto buscou ajuda e constatou que estava pré-diabético. “Fiquei assustado. O risco era real”, diz o jovem. Antes de operar, ele foi acompanhado por profissionais de saúde e fez terapia por dois anos. Bernardo perdeu 60 quilos e garante que não se arrepende do procedimento. “O preconceito sobre a obesidade é maior do que sobre a cirurgia. A pessoa não é obesa porque quer”, afirma.
A médica endocrinologista Jacqueline Rizzolli, diretora da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso), que trabalha há 20 anos com cirurgia bariátrica, destaca que é preciso adotar condutas diferenciadas ao avaliar adolescentes, já que eles têm mais dificuldade de seguir à risca o pós-operatório – que inclui um período de dieta líquida, outro de pastosa, uso ininterrupto de vitaminas e acompanhamento constante com nutricionista e psicóloga. “Em geral, se não forem muito bem monitorados, os jovens não fazem o segmento adequado e voltam com anemia grave, falta de ferro, cansaço excessivo”, alerta. Além disso, ela reforça a importância de evitar operações desnecessárias. “O critério é submetê-los à cirurgia somente a partir dos 16 anos. Antes, só se existir risco grave para a saúde.”
Reflexo do contexto
Ao mesmo tempo que cresce o número de jovens que fazem cirurgia de redução de estômago, aumenta a porcentagem de obesos no Brasil. Subiu 67,8% em 12 anos, segundo o Ministério da Saúde, saltando de 11,6% para 19,8% entre os adultos de 2006 a 2018. Entre as crianças e adolescentes de 5 a 19 anos, 12,4% dos meninos e 9,4% das meninas sofrem com obesidade e sobrepeso.
Essa não é uma realidade exclusiva do nosso país. Um estudo de 2017 da Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com o Imperial College de Londres, com dados de 31,5 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos de 200 países, apontou que o percentual dos que apresentam obesidade ou sobrepeso aumentou oito vezes em quatro décadas.
Diante desse cenário, há um debate ético em torno das cirurgias. Uma das vozes mais ativas na defesa da bariátrica é a do médico Aayed Alqahtani, cirurgião da King Saud University, na Arábia Saudita, que já operou crianças de 4 anos. Ele argumenta que a cirurgia pode representar, em alguns casos, a única possibilidade de salvar a vida delas. Por outro lado, especialistas alertam para o fato de as crianças serem submetidas a algo tão invasivo e definitivo numa fase crucial do desenvolvimento emocional.
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Ministério da Saúde autorizam a realização de cirurgias de redução de estômago a partir dos 16 anos. Há casos de pacientes operados antes, até com 14 anos, por determinação judicial, tomando como base a condição de saúde do adolescente. “O aumento da obesidade é progressivo. Ajuda a explicar essa tendência a oferta de comida industrializada, cada vez mais acessível e barata”, explica o cirurgião Marcos Leão Vilas Bôas, presidente da SBCBM, que já realizou 80 operações em adolescentes. “Eu tive casos de jovens que não eram capazes de caminhar sem apoio, não conseguiam andar de bicicleta. Ou tinham apneia do sono gravíssima e dormiam sentados.”
Para Caetano Marchesini, os números são reflexo de anos de alimentação inadequada, associada ao sedentarismo. Ele diz que os pacientes chegam ao consultório com pré-diabetes, pressão alta, problemas cardiovasculares e de locomoção, além do trauma psicológico por causa da exclusão social. O cirurgião reforça que a bariátrica não é milagre e que cerca de 15% dos pacientes operados voltam a ganhar todo o peso que perderam em até dois anos se não aderirem ao tratamento. “A cirurgia pode ser a melhor solução para aquele momento, mas ela não funciona sozinha. É preciso ter acompanhamento pós-cirúrgico multiprofissional sério e intensivo. Não adianta cair de paraquedas”, alerta.
A gerente de tecnologia da informação Lourdes*, 56 anos, testemunhou o arrependimento da filha, Beatriz*, após a cirurgia. A jovem, hoje com 19 anos, começou a ganhar peso aos 5 anos e nunca mais conseguiu reduzir os números da balança. Fez dietas, academia, terapia. Aos 17, pesando 125 quilos, submeteu-se à bariátrica – contra a vontade da mãe, mas com o apoio do pai. Ela emagreceu 30 quilos nos primeiros meses; depois engordou e voltou ao peso inicial. “Beatriz não estava preparada psicologicamente para lidar com as restrições alimentares. Não combinou a cirurgia com mudanças de hábitos alimentares e atividade física nem modificou a relação com a comida”, conta a mãe. “Ela não toma água, só refrigerante; compra biscoito recheado, brigadeiro, pipoca. É um autoboicote.”
Rede pública no limite
Além de o número de cirurgias bariátricas ser quase insignificante na rede pública diante da quantidade de jovens obesos no Brasil, há pouquíssimos serviços estruturados e especializados nesse tipo de atendimento. Em São Paulo, existe um ambulatório especial vinculado ao Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas, que acompanha pacientes há mais de uma década. A médica endocrinologista Maria Edna de Mello, responsável pelo serviço, diz que a maioria dos jovens chega ao local por volta dos 12 anos com IMC médio de 65 e sérios traumas psicológicos. “Eles enfrentam o preconceito todos os dias e não terão sucesso no tratamento clínico. Daí a importância da cirurgia”, afirma.
São acompanhados por uma equipe multidisciplinar e aqueles que pioram são encaminhados para a bariátrica. “A gente não tem estrutura para operar todos, apesar da imensa demanda. Assim, avaliamos a gravidade de cada caso e a frequência da presença no acompanhamento para selecionar aqueles que poderão operar”, lamenta a médica, destacando que no grupo atual há cerca de 50 pacientes em monitoramento, sendo que dez estão esperando pela cirurgia. Desses, quatro não frequentam mais a escola por causa do bulliyng que sofrem no local e por dificuldades de locomoção. Por ano, o serviço consegue operar cerca de seis jovens.
A maquiadora Renata Leite Almeida, hoje com 25 anos, é paciente do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo e operou aos 15, integrando um protocolo de pesquisa que buscava avaliar a eficácia de uma técnica cirúrgica. Ela conta que procurou o serviço aos 12 pesando 109 quilos. Mesmo com remédios, atividade física e acompanhamento multiprofissional, continuou engordando e chegou aos 130 quilos, quando foi submetida à cirurgia bariátrica.
Vítima de inúmeros constrangimentos durante a infância e a adolescência, Renata relata uma cena que nunca mais vai esquecer. Ao entrar na sala de aula e sentar-se na cadeira, os colegas se levantavam em alusão a um episódio do seriado Chaves, como se o peso dela tivesse provocado o movimento nas pessoas. “Na academia, falavam para eu não pular no jump para não estourar as molas. Diziam que eu parecia uma rolha de poço, me chamavam de Maria Redonda. São tantas as situações que me marcaram… Era muito difícil lidar com tudo isso”, afirma ela. “Não me arrependo de ter feito a cirurgia e faria tudo de novo.”
A babá Thaís Pereira de Oliveira, 18 anos, também operou pelo SUS, no ano passado. “Certa vez, antes de uma partida de vôlei na escola, fui a última da equipe a ser escolhida. Falaram que era porque eu era gorda e mal conseguia me mexer”, conta. Além do trauma psicológico, Thaís sentia dores no corpo, tinha gordura no fígado, pressão alta, falta de ar e depressão. Apesar de ter feito acompanhamento por três anos e meio e da tentativa de tratamento com auxílio medicamentoso, ela não conseguia perder peso.
“Quando decidi operar, as pessoas me criticaram muito. Diziam que eu tinha preguiça e que estava procurando a alternativa mais fácil, o que não era verdade”, lembra Thaís. Ela revela que não foi tranquilo se adaptar à dieta líquida. “E, depois de passar dessa fase, eu vomitava tudo que comia, porque engolia o alimento muito rápido. Tive de reaprender a comer, mastigar e respirar”, conta ela. Mesmo assim, está feliz com o resultado.
A decisão pela cirurgia bariátrica cabe ao médico e ao paciente, após conversas, acompanhamento e análise profunda. O procedimento não deve ser a primeira opção. Só é recomendado após todas as outras tentativas se esgotarem. No caso dos jovens, é preciso destacar ainda mais os riscos cirúrgicos e a importância de respeitar os cuidados no pós-operatório. O ideal é ter uma rede de apoio para garantir que eles se mantenham nos trilhos, seguindo a dieta, a terapia e a rotina de exercícios.
*Nomes trocados para preservar a identidade das entrevistadas
FONTE: https://claudia.abril.com.br/saude