Dias depois do aborto realizado legalmente em uma criança de 10 anos que foi estuprada no Espírito Santo virar campo de batalha no Brasil, o Ministério da Saúde emitiu uma portaria alterando os procedimentos obrigatórios no atendimento médico para vítimas de estupro que desejam fazer um aborto.
A nova portaria, que obriga profissionais de saúde a avisar a polícia e oferecer à mulher que veja a ultrassonografia do feto, vai intimidar as pacientes e é uma tentativa de desestimular que as mulheres vítimas de estupro façam o aborto, afirma a psicóloga Daniela Pedroso, que atua há 23 anos em um serviço de referência de aborto legal é uma das principais especialistas sobre o assunto no país.
Ela diz que a nova resolução vai fazer com que haja diminuição na procura do serviço nos hospitais, mas não vai diminuir o número de abortos feitos, afirma. “Você está empurrando a mulher para o abortamento ilegal e aumentando o número de mortes maternas”, diz Pedroso, que também é membro do GEA (Grupo de Estudos sobre Aborto).
O aborto é garantido por lei no Brasil em caso de estupro, mas o acesso pode ser bastante difícil, como o caso da menina de 10 anos mostrou.
A criança precisou ser levada para outro Estado para realizar o procedimento, porque os médicos no Espírito Santo se recusaram a realizar o procedimento. Ela sofria abusos sexuais do tio desde os 6 anos, mas não havia contado porque tinha medo das ameaças do estuprador.
A menina ainda precisou enfrentar grupos radicais, que divulgaram sua identidade, pressionaram sua avós para que não autorizasse o procedimento e fizeram protestos em frente ao hospital onde ela realizaria o procedimento. Depois do procedimento, a criança precisou trocar de nome e se mudar.
A portaria do governo foi publicada pouco tempo depois, em meio à batalha ideológica aquecida pelo caso. A nova resolução torna obrigatório que profissionais de saúde avisem a polícia quando atenderem pacientes que peçam para interromper uma gestação resultante de estupro.
Também obriga que a paciente assine uma lista com as possíveis complicações do procedimento — riscos que hoje são informados oralmente — e seja informada da possibilidade de ver o feto em ultrassonografia.
‘Segunda violência’
Pedroso diz que a gravidez resultante de estupro é uma segunda violência para as mulheres, e ver a ultrassonografia para elas pode ser “uma situação comparável à tortura”.
Hoje não há exigência legal de boletim de ocorrência nem alvará judicial para que uma vítima de estupro peça um aborto legal. A mulher passa por uma avaliação com serviço social, psicologia e ginecologia.
E, a partir do momento em que o procedimento dela é aprovado, ela assina um termo de consentimento e o aborto é realizado em cerca de uma semana. Quando a vítima tem entre 16 e 18 anos, os representantes legais assinam juntamente com ela. E quando ela tem menos de 16, os representantes legais assinam por ela.
Na prática, no entanto, em muitos locais as mulheres encontram dificuldades e obstáculos colocados pelos hospitais. “(A portaria) é mais uma tentativa de fazer essa mulher desistir desse abortamento”, diz Pedroso.
Leia abaixo trechos da entrevista da psicóloga à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – Qual é o estado psicológico dessas mulheres chegam ao hospital?
Daniela Pedroso – Elas chegam bastante abaladas do ponto de vista psíquico, principalmente porque essa gestação é vista por elas como uma segunda violência. Essa gestação acaba de uma maneira ou de outra concretizando esse estupro.
Ela tem ali algo que lembra a ela que ela foi estuprada e ela tem uma verdadeira repulsa a esse feto, que ela não consegue muitas vezes nem entender como uma gravidez. Ela entende como algo ruim, porque ela sabe que metade é dela e a outras metade, como elas mesmas dizem, “é de um monstro”.
BBC News Brasil – E como é o estado psicológico da mulher depois do procedimento?
Pedroso – Elas trazem para a gente um sentimento de alívio, de não estar mais carregando o fruto desse estupro. E outro dado que é muito interessante é a retomada de suas vidas. Porque durante esse tempo, a vida delas é pausada, até ela decidir o que vai fazer, até procurar um serviço de saúde, do ponto de vista psíquico também.
A literatura científica mostra para a gente que o dano psíquico é maior se ela não puder interromper a gestação através do abortamento provocado.
BBC News Brasil – Qual vai ser o impacto de tornar obrigatório que os profissionais de saúde informem a polícia em caso de aborto resultante de estupro?
Pedroso – Essa portaria viola a autonomia das mulheres. E mais importante do que ferir os códigos de ética do profissional e o sigilo médico, ela também fere a Constituição Federal brasileira, porque ataca a dignidade da pessoa humana, o direito à intimidade e à saúde.
O impacto não é para a equipe. Se a gente for obrigado por lei a fazer, teremos que fazê-lo. Mas isso inibe a procura da mulher. Porque ela sabendo que o hospital vai levar esse caso para a polícia, pode ser que ela deixe de procurar o hospital. E aí o que você está fazendo? Está empurrando ela pro abortamento ilegal e aumentando o número de mortes maternas.
A portaria impacta diretamente no acesso à mulher ao serviço de saúde. Elas podem deixar de procurar o serviço. Se a mulher quisesse resolver o problema dela na polícia, ela procuraria a polícia.
O risco maior dessa portaria é que muitas vezes as pessoas acham “olha, que bom, os hospitais vão mandar o caso para a polícia. Se vai avisar a polícia, vai diminuir a violência.” Em nenhum lugar está escrito que denunciar para polícia vai fazer com que se busque esse agressor sexual.
Não, não dá para entender essa portaria como um fator protetor. É um efeito regulador das mulheres, de regular a autonomia delas, de vigiar, de controlar.
BBC News Brasil – Muitas mulheres que foram vítimas de estupro não querem procurar a polícia. Por quê?
Pedroso – O sentimento mais forte para essas mulheres é um tripé: é o medo, a vergonha e a culpa. Ela tem medo das ameaças do agressor, sentimento de alguma forma achar que ela poderia ter evitado, mas principalmente pela vergonha. Imagine como é buscar ajuda em um lugar que você não sabe o que você vai encontrar, então imagine numa delegacia, onde muitas vezes as mulheres ainda são questionadas.
Por que as mulheres buscam ajuda depois? Porque elas descobrem que estão grávidas. Isso é um ponto importante: só 10% das vítimas de estupro buscam ajuda imediata. Elas tentam, de alguma maneira, esquecer, deixar isso para trás, até que vem essa gravidez, que elas veem como uma segunda violência. E a partir daí começa toda uma peregrinação para acessar serviços de saúde.
BBC News Brasil – Como você avalia a exigência da nova portaria de que os profissionais de saúde ofereçam para a paciente ver a ultrassonografia?
Pedroso – A gente tem que imaginar que visualizar isso, que é a concretização desse estupro, vai trazer mais um outro dano. É uma situação comparável à tortura. Hoje em dia não se oferece e não se coloca os batimentos para ela escutar.
Se ela quiser, ela vai pedir. Mas é incomum que alguém peça, porque a gente não está falando de uma gestação desejada que a mulher quer acompanhar tudo, na verdade ela quer resolver isso que ela vê como um problema. Então, não faz sentido você oferecer, porque você está lembrando que ela pode ver.
BBC News Brasil – E como você vê a exigência da portaria de a mulher assinar uma lista com as possíveis complicações? É um procedimento arriscado?
Pedroso – É mais uma tentativa (do governo) de fazer essa mulher desistir desse abortamento. Todo procedimento cirúrgico vai ter algum risco, mínimo que seja. Só que, da maneira como é colocado na portaria, é como se fazer um abortamento acima de 14 semanas fosse “resultar em morte”. Talvez seja uma maneira de tentar que ela desista desse procedimento.
Fonte: BBC News