O governo federal tem R$ 1,7 trilhão para gastar em 2022.
Esse é o valor que sobra do orçamento sancionado na última semana pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), de R$ 4,7 trilhões, quando descontadas as despesas com a dívida pública e com o repasse de receitas para Estados e municípios.
É com esse dinheiro que o país compra vacinas, paga aposentadorias pelo INSS, benefícios sociais, sustenta as universidades federais, constrói estradas.
Quem define as prioridades do gasto é o governo federal, autor do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), e o Congresso, que vota o texto e tem a prerrogativa de fazer mudanças nele – tirar recursos de uma área e colocar em outra, por exemplo.
O processo de elaboração do orçamento de 2022 teve uma trajetória tumultuada. O governo passou boa parte do segundo semestre de 2021 negociando com o Congresso a aprovação de uma emenda constitucional que flexibiliza o teto de gastos e adia o pagamento obrigatório de dívidas (no caso, precatórios), uma manobra para que pudesse expandir suas despesas neste ano.
Apesar do espaço fiscal maior, são muitas as áreas que devem enfrentar uma restrição relevante de recursos – em alguns casos, colocando sob risco a prestação de serviços públicos e direitos fundamentais da população, conforme os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Algumas perderam mais recursos, como o Ministério da Saúde, enquanto outras expandiram em relação ao ano passado, caso do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O fundo eleitoral mais do que dobrou em relação a 2018, e vai receber R$ 4,9 bilhões, valor maior que o separado para compra de vacinas, R$ 3,9 bilhões.
Especialistas que acompanham de perto o orçamento analisaram a pedido da reportagem esses e outros destaques do texto sancionado na última semana.
Menos benefícios sociais
Uma das rubricas que encolheram foram as transferências de renda – algo que chama atenção diante dos prognósticos ruins para a economia e para o mercado de trabalho neste ano.
O novo Auxílio Brasil – programa que substituiu o Bolsa Família e foi um dos principais motores por trás dos esforços do governo para aprovação da PEC dos Precatórios – tem verba de R$ 89,064 bilhões.
O volume de recursos representa uma queda de 7% em termos reais em relação a 2021, quando se consideram os R$ 95,378 bilhões empenhados entre pagamentos do auxílio emergencial, Bolsa Família e outros benefícios para a população mais vulnerável, conforme o levantamento feito pelo consultor legislativo no Senado Vinícius Amaral.
O empenho é a segunda fase do gasto público, quando se compromete o uso da despesa autorizada no orçamento.
Com as mudanças trazidas pelo Auxílio Brasil e o fim do Bolsa Família e do auxílio emergencial, menos famílias passam a receber mais.
Isso porque, de um lado, o valor mínimo pago pelo novo programa é maior (R$ 400, ante R$ 89 e R$ 178 do Bolsa Família para aqueles em situação de pobreza e extrema pobreza). O volume de beneficiários, entretanto, hoje em torno de 17,5 milhões, é metade dos 35 milhões que receberam auxílio emergencial no ano passado.
Para ser elegível ao Auxílio Brasil, é preciso estar no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais), que tem critérios mais rigorosos para inclusão de beneficiários.
“A gente está em um momento ainda de fragilidade no mercado de trabalho, com taxas de pobreza alarmantes no país. As transferências de renda são a ação mais imediata [para alívio dos impactos sociais da crise], e elas estão se reduzindo”, pontua Amaral.
Educação básica: corte em investimento e transporte escolar
A educação básica também perdeu espaço. Ela foi um dos alvos dos vetos do presidente Jair Bolsonaro, que cortou R$ 402 milhões da dotação que havia sido aprovada no Congresso.
Do orçamento votado pelo Legislativo, Bolsonaro vetou R$ 3,184 bilhões em despesas em diversas áreas, muitas sociais.
No caso específico da educação básica, o corte afetará, por exemplo, a aquisição de veículos para transporte escolar (R$ 22 milhões) e principalmente as ações de apoio ao desenvolvimento da educação básica, que perdeu R$ 324 milhões.
Para o Ministério da Educação como um todo, o corte foi de R$ 739,8 milhões.
R$ 1 bi a menos para o INSS
O INSS foi outro bastante afetado pelos vetos presidenciais e viu seu orçamento encolher em cerca de R$ 1 bilhão.
Responsável pelo pagamento de aposentadorias, benefícios como o BPC e as licenças médicas de trabalhadores afastados por questões de saúde, o INSS tem hoje uma fila de mais de um milhão de pessoas aguardando análise para liberação de benefícios.
O problema levou o instituto a adotar medidas emergenciais no ano passado, deslocando servidores de outras áreas, por exemplo, para tentar acelerar a análise dos casos pendentes.
O corte de R$ 1 bilhão, contudo, pode inviabilizar que o INSS consiga dar vazão à fila neste ano, avalia Vinícius Amaral – o que poderia se configurar como uma privação de direitos, já que muitas pessoas correm risco de ver atrasadas parcelas de seus benefícios, com consequências dramáticas para quem está esperando, como mostrou reportagem da BBC News Brasil ainda em 2019.
“Isso aumenta as chances de esse veto vir a ser derrubado pelo Congresso”, diz ele, referindo-se à possibilidade que o Legislativo tem de reverter os vetos sancionados pelo presidente. No caso do orçamento deste ano, o prazo para apreciação é até o dia 4 de março – após essa data, a não apreciação tranca a pauta do Legislativo.
20% menos recursos para a Saúde
Uma das áreas que mais viu o orçamento encolher em termos percentuais foi a Saúde: os R$ 153,5 bilhões autorizados para 2022 são cerca de 20% menos do que os R$ 189,6 bilhões autorizados em 2021.
“Parece que o governo está trabalhando mais uma vez com um cenário de fim de pandemia, quando evidentemente é cedo demais para se falar nisso. Estamos em meio a uma nova onda, podemos ter novas ondas neste ano e o orçamento não parece preparado para enfrentar esses riscos”, destaca Amaral.
A professora do curso de administração pública da Fundação Getulio Vargas (EAESP-FGV) Élida Graziane chama atenção para o montante previsto para a compra de vacinas, de R$ 3,9 bilhões. O valor é considerado baixo, inferior até à dotação de 2019, antes do início da pandemia (R$ 5,3 bilhões), e, por isso, pode ser insuficiente para cobrir a necessidade de imunizantes do país neste ano.
Em sua avaliação, esse descasamento deixa clara a falta de planejamento do orçamento, um instrumento que serve justamente para ordenar as prioridades de gastos e definir “o lugar de cada um na fila”.
“Sem planejamento, prevalece o curto prazo, os mais fortes determinam o que vai ser feito”, ela pontua. “É uma disputa voraz por qualquer margem fiscal em ano de eleição”.
Graziane, que também é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo (MPC-SP), enxerga cada vez mais uma falta de “racionalidade” na ordenação das despesas federais, que considera preocupante.
“Eu vejo uma tendência péssima de má qualidade do gasto. É vontade de agentes políticos de inaugurar novas obras, sem o compromisso de lidar, por exemplo, com as obras que já estão paralisadas – o TCU aponta um estoque de 14 mil obras paradas”, exemplifica. “Se fôssemos fazer uma gestão mais racional dos recursos, uma das prioridades deveria ser resguardar recursos para obras que já estavam em andamento e que pudessem ser retomadas. É inconcebível parar obra por falta de garantia de custeio.”
Um episódio emblemático que, para ela, ilustra essa tendência de piora da qualidade do gasto público no Brasil é a questão do Censo.
Apesar de previsto em lei para ser realizado a cada 10 anos, o maior recenseamento populacional do Brasil está três anos atrasado.
No ano passado, foi finalmente incluído na proposta de orçamento para 2022 – o volume de recursos previstos, entretanto, era insuficiente. O PLOA trazia um montante R$ 300 milhões menor do que os técnicos do IBGE calcularam que seria necessário para cobrir os custos.
O instituto entrou em contato com o Ministério da Economia, alertando que o valor era inferior ao que havia sido estimado. A pasta afirmou que não poderia fazer mudanças e sugeriu que o IBGE tentasse negociar com o Congresso ou pleiteasse crédito adicional depois que o orçamento fosse aprovado, conforme nota técnica divulgada pelo instituto.
Um mês depois, graças a uma nova intervenção do Supremo, o ministério teve de mandar a alteração ao texto no Congresso.
Mesmo com a previsão em lei, com a determinação do STF e a pressão federativa (de Estados e municípios), o Censo correu risco de, mais uma vez, não ser realizado. “Acho que isso mostra bem o momento em que a gente se encontra”, ressalta.
Os ‘vencedores’: fundão eleitoral e emendas parlamentares
Em paralelo, uma das rubricas que mais ganhou espaço foi o fundo eleitoral, ao qual foram reservados R$ 4,9 bilhões em recursos públicos. É mais que o dobro do aprovado em 2018 (R$ 1,7 bilhão) e chega a ser maior do que o orçamento do Ministério das Relações Exteriores (R$ 4,6 bilhões) e do Ministério do Meio Ambiente (R$ 3,2 bilhões).
O Meio Ambiente, aliás, vem perdendo espaço no orçamento há alguns anos, com comprometimento de atividades essenciais como a fiscalização ambiental e a prevenção e combate a queimadas. O valor separado para a pasta em 2022 é menor do que o autorizado 4 anos atrás, em 2018 (R$ 3,4 bilhões), em termos nominais, ou seja, mesmo sem levar em conta a inflação acumulada no período.
Outro instrumento que tem crescido são as emendas parlamentares, recursos que são gastos a partir da indicação dos deputados e senadores – que geralmente usam o dinheiro em seus redutos eleitorais para, por exemplo, construir uma ponte ou comprar equipamentos médicos para uma unidade de saúde.
Conforme os dados compilados pelo consultor legislativo Vinícius Amaral a pedido da reportagem, o valor autorizado para ser gasto com os quatro tipos de emendas (individuais, de bancada, de comissões e do relator do orçamento) é de R$ 35,6 bilhões, considerando as emendas com marcação específica no orçamento.
Esse valor é maior que os R$ 33,4 bilhões empenhados em 2021, conforme as informações disponíveis na plataforma Siga Brasil do Senado, e três vezes superior ao registrado em cinco anos atrás, em 2017 (R$ 10,7 bilhões).
Do total previsto para 2022, quase metade (R$ 16,5 bilhões) se refere às emendas de relator, um instrumento que passou a ser usado apenas recentemente, a partir de 2020, e é apontado por especialistas como pouco transparente e criticado por órgãos de controle como Tribunal de Contas da União (TCU).
Como o nome indica, os recursos aplicados a partir dessas emendas são indicados pelo relator-geral do orçamento – não é possível saber qual senador ou deputado é autor da proposta.
Nesse formato, elas podem ser mais facilmente usadas como instrumento político para que o governo negocie apoio para aprovação de medidas de seu interesse – a conhecida política do toma lá dá cá -, com consequente distribuição desigual e por vezes injusta dos recursos. Como a execução dos gastos é menos transparente, essas emendas também estão mais sujeitas a desvios e fraudes.
Graziane ressalta que os problemas em torno das emendas de relator são o capítulo mais recente de uma escalada de tensão entre Executivo e Legislativo que se desenha desde 2015 e que tem como consequência a “erosão dos pilares constitucionais” e a “disputa sangrenta” por dinheiro público.
Naquele ano, em um período tumultuado em que a então presidente Dilma Rousseff perdia capital político, Eduardo Cunha, logo após assumir a presidência da Câmara, colocou em votação a PEC do orçamento impositivo, que tornou obrigatórias as execuções das emendas individuais.
Em 2019, já sob a presidência de Jair Bolsonaro, o Congresso passou outras medidas que ampliavam seus poderes por meio das emendas. Uma delas tornava as emendas de bancada impositivas (EC 100) e outra (EC 105) criava a figura das “transferências especiais”, que permite o repasse de recursos a Estados e municípios sem a necessidade de especificação de como e onde o dinheiro será usado.
Apesar dos problemas, pondera Graziane, a ideia de o Legislativo ter mais influência sobre o orçamento era à priori positiva, uma forma de contraponto a eventuais excessos do Executivo – que poderia privilegiar a alocação de recursos em áreas que beneficiassem aliados, por exemplo.
Até aquele momento, ela acrescenta, as emendas eram distribuídas de forma mais isonômica, ou seja, tanto parlamentares da oposição quanto da base do governo tinham os mesmo direitos aos recursos. “O cacique [do partido] não tinha mais capacidade de emendar o orçamento do que um pequeno deputado. Para a democracia isso é importante”, ela acrescenta.
Em 2020, contudo, diante da perda de capital político, Bolsonaro começa a se aproximar dos partidos do Centrão para tentar assegurar uma base de apoio e abre espaço para as emendas de relator.
“Com a crise da covid em 2020, Bolsonaro entrega o orçamento ao Centrão e ao Arthur Lira [presidente da Câmara]. O Executivo faz um acordo de sobrevivência com o Congresso”, ela pontua.
As emendas explicam em parte, por exemplo, o aumento expressivo do orçamento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em 2022, a pasta conta com R$ 947,6 milhões disponíveis, mais que o dobro do empenhado no ano passado, R$ 445 milhões. Conforme os dados disponíveis no Siop, as emendas respondem por quase 20% do total previsto para este ano, R$ 184,5 milhões.
Fonte: BBC News