Como mulheres que estão atrás das grades recorrem à Justiça para ter direito à amamentação, contato com os filhos e ver crianças crescerem de perto.
Segundo o CNJ, os presídios do país têm 420 mulheres grávidas e 265, lactantes Gláucio Dettmar/Agência CNJ
“O direito de uma mãe, ninguém tem o direito de tirar.” A frase dita por Sônia Silva sai em tom de indignação e tristeza. Com o semblante emocionado, ela conta que é mãe de uma jovem que está na cadeia como presa provisória há um ano e dez meses, aguardando julgamento.
O neto está afastado da mãe, convivendo apenas com os avós paternos. Nos últimos meses, porém, o que mais a aflige é que ele passará por uma cirurgia e, segundo a avó, encontraria na figura da mãe o conforto e o carinho necessários após a operação. “Esse direito deveria ser intransferível”, diz agoniada.
Desirré Ramos também foi separada do filho durante os anos em que esteve na prisão. Usuária de drogas na região da Cracolândia, ela consumiu substâncias ilícitas por 22 anos, acumula 11 prisões e foi sentenciada a seis anos no cárcere por tráfico de drogas. No presídio, teve dois filhos. Um deles, lhe foi tirado aos dois meses. “A droga me levou onde quis e me tirou quase tudo”, diz ela. “Mas o desejo e a chance de poder criar meu filho transformou minha vida”, diz ela.
Na Justiça, Desirré ganhou um habbeas corpus, ou seja, uma garantia constitucional para criar o filho em prisão domiciliar. Em 2012, quando foi beneficiada com a medida, ela uniu forças para recomeçar. Passou, então, a vender brigadeiros no farol com o menino de um ano de idade nos braços. “Era minha última chance de mudar minha vida”, lembra. A condição de semi-liberdade, porém, não foi fácil. “As pessoas não querer você para varrer uma rua, não querem você para picar uma cebola. Em outros momentos, teria desistido mais facilmente”, afirma. Nesse caso, o desejo de exercer a maternidade foi mais forte do que os percalços encontrados.
Hoje, quase sete anos depois de ganhar o habbeas corpus, Desirré cuida do filho de 5 anos, é dona de uma confeitaria em São Paulo e deve começar a faculdade no próximo semestre. “Essa força veio do meu filho. Posso dizer que lavo um banheiro tão bem quanto faço um bolo e essa determinação veio do meu filho.” Desirré foi beneficiada pelo projeto “Mães no Cárcere”, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo”, que busca restabelecer o vínculo familiar e incentivar o contato entre mães presas e seus filhos.
Condições no cárcere
O estado de São Paulo tem, atualmente, 12 mil mulheres presas. Em dez anos, a população carcerária feminina mais que dobrou no estado, um aumento superior ao de homens presos. Para o defensor público do Núcleo de Infância, Thiago Magalhães Machado, uma mãe presa sofre um julgamento muito maior. “Atingem-se diversos direitos, inclusive o rompimento dos laços”, diz.
Bebês são expostos ao ambiente inóspito das penitenciárias
Luiz Silveira/Agência CNJ
Dados mostram que a faixa etária dessas mulheres varia entre 18 e 34 anos, 83% têm filhos e 31% são chefes de família. Mais de 80% dos crimes são relacionados ao tráfico de drogas.
“Esse percentual tem a ver com a exploração do afeto dessas mulheres, elas vivem uma relação de poder com quem as explora por conta de uma cultura patriarcal”, afirma Patrícia Bezerra, psicóloga e vereadora. “Quando essas mulheres vão para o cárcere vivem o abandono por parte dos familiares.” Ao contrário do contexto em que os homens são presos e recebem visitas na cadeia, mulheres, em sua maioria, não recebem. E dentro de casa, o núcleo familiar, segundo especialistas, tende a sofrer fortes impactos. “Nunca é só uma vida atrás das grades”, diz Patrícia.
Egressa do regime fechado, a presa conhecida como Tempestade vive hoje no regime aberto. “As condições que as mulheres passam nas cadeias não chegam nem aos pés do que as pessoas tentam imaginar”, diz. “Lá, tem uns seguidores de Hitler que gostam de espezinhar a gente. Para se ter ideia, em muitas penitenciárias, eles desligam as geladeiras para economizar energia. Temos que comer comida quase estragada. É uma opressão sem fim.”
O projeto
Além de reestabelecer o vínculo familiar, o Mães no Cárcere busca assegurar o direito da mãe e da criança. “O projeto dá atendimento jurídico e atenção aos direitos dessas mulheres”, diz Michele Rosa da Silva, defensora pública de São Paulo. “Fizemos um recorte para dar prioridade aos casos emergenciais, de mulheres grávidas, lactantes, e que não sabem onde estão seus filhos.” Quando a mãe é presa com o filho, segundo a defensora, o Conselho Tutelar é quem se responsabiliza pela criança.
Criança homenagea a mãe presa com um cartaz
As presas preenchem um formulário com informações sobre o processo criminal e a possível localização da criança. No documento, também é questionado se elas concordam ou não sobre quem está com os filhos e se querem receber a visita dos filhos no presídio. “Queremos saber o que a mulher deseja, de fato, porque às vezes a criança está com alguém que não é de sua confiança”, diz Michele. Quem aplica o questionário é a unidade prisional.
Passada a primeira etapa, cada caso, segundo o órgão, é encaminhado a um defensor. Entre os possíveis encaminhamentos para cada situação, estão a prisão domiciliar, o indulto, o direito à amamentação e à extensão do período de adaptação da criança. “A ideia é que a mulher fica o máximo possível com o bebê e a família”, diz a defensora.
O projeto que, em 2017, enviou formulários a 18 unidades prisionais do estado e chegou a 3.074 mães também enfrenta dificuldades para se ampliar. Segundo a defensoria, estão entre os principais obstáculos os endereços desatualizados que as presas indicam como de parentes em liberdade; a distância entre a residência e o presídio, o que dificulta o contato da mãe com o filho; serviços de acolhimento que não levam as crianças para visitar as mães; avós paternos que se negam a visitar a mulher presa pelo julgamento moral; obtenção de documentos; e crianças registradas incorretamente.
Esses problemas, quando não solucionados, segundo a defensoria, podem se agravar quando a mulher obtém, por exemplo, a possibilidade de cumprir a pena em regime aberto. Por outro lado, muitas mulheres recorrem a essa assistência jurídica para ter a chance de transformar suas vidas. Sônia é uma das que aguardam esse dia chegar. “Esse contato beneficiaria não somente a mãe do meu neto, como também a mim e outras tantas avós que sofrem a ver suas filhas com essa dupla pena — privadas de liberdade e do contato com seus filhos.”
R7