Até mesmo o conservador Estadão fez um duro editorial classificando a intervenção como injustificável em face da ausência de um fato objetivo plausível para aplicá-la
(*)Aldo Fornazieri
Nestas alturas dos acontecimentos todos sabem que a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro é injustificável e que se revestiu de um ato eminentemente político. Injustificável porque o Rio está longe de ser a cidade mais violenta do Brasil, ficando, inclusive, atrás de várias outras capitais. Injustificável, porque durante o Carnaval não houve o propalado surto de violência. Pelo contrário: dos 27 indicadores de violência, 16 caíram em relação ao Carnaval de 2017. O indicador de homicídios, por exemplo, caiu 14,81% e o de roubos teve uma queda de 9,85%. Até mesmo o conservador Estadão fez um duro editorial classificando a intervenção como injustificável em face da ausência de um fato objetivo plausível para aplicá-la. Enquanto isso, os tradicionais representantes da esquerda vacilante, somados à Marina Silva e a Miro Teixeira, a aprovam ou titubeiam na sua condenação.
O governo Temer, a beira do precipício, buscou dois objetivos com a intervenção: o primeiro, criar uma cortina de fumaça em face da não aprovação da reforma da Previdência que o marcaria por um fracasso retumbante, pois essa reforma era o ponto programático central do golpe. O segundo, uma tentativa desesperada de recolocar o governo e Temer no jogo eleitoral, já que todas as pesquisas os colocavam à margem dessa disputa. A intervenção, certamente, produzirá impactos no processo eleitoral, mas não terá força para suspender as eleições, como teme a esquerda medrosa.
O caráter improvisado da intervenção ficou patente na reunião que Temer fez no último sábado, no Rio, com o governador e outras autoridades. Ficou claro que nem Temer e nem o Exército sabem quais as medidas que serão implementadas. Não havia nenhum planejamento para dar força a uma decisão tão grave, que coloca em movimento um aparato de Estado, como é o exército, desviando-o de suas finalidades. A rigor, Temer comete um crime político ao usar instrumentos de Estado para fins pessoais e políticos.
Alguns analistas bem conceituados sugerem que a intervenção consiste numa bolsonarização sem Bolsonaro e que ela terá como efeitos a derrubada de Bolsonaro nas pesquisas, a catapultagem generais duros e legalistas e a criação de uma narrativa sebastianista de salvação pelas Forças Armadas. Tratam-se de análises equivocadas: se Bolsonaro cair, cairá por si mesmo, como é a tendência. Se a intervenção tiver algum sucesso, ele até poderá aproveitar-se disso, pois corre sozinho nessa raia. O Exército, uma das poucas instituições com credibilidade, sabe dos riscos que corre se se prestar à manipulação de um governo sem legitimidade e se enveredar pelo caminho das ações espetaculosas. As Forças Armadas já estão agindo no Rio e nada de muito diferente deverá ocorrer a não ser se os interventores tiverem a coragem de expurgar as polícias. Em resumo: produzir-se-á uma sensação de segurança de curto prazo e os problemas estruturais da violência continuarão existindo.
Guerra contra os pobres
Na América Latina existe uma guerra, não contra a pobreza, mas contra os pobres, notadamente nos países de alta desigualdade, a exemplo de El Salvador, Brasil, México, Venezuela, Colômbia e dai por diante. Todos sabem que violência e pobreza andam juntas. Um relatório da ONU aponta que a região é a mais violenta do mundo. É também a região mais desigual do mundo e com a maior desigualdade urbana do mundo. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 19 são brasileiras e 43 são latino-americanas e o Rio de Janeiro não está entre elas.
Nesta guerra sistemática contra os pobres que é travada no Brasil e na América Latina, a concepção predominante das elites predatórias da região é a de que a riqueza se produz com a manutenção e expansão da pobreza. No Brasil, seis pessoas detêm 50% da riqueza. De acordo com a CEPAL, 30% da população latino-americana ou 175 milhões de pessoas, são pobres sendo que desses, 75 milhões são indigentes. Um dos últimos relatórios da ONU indica que mais 220 milhões ou 38% da população correm risco de se tornarem pobres. É a trágica normalidade da América Latina.
Organizações criminosas de diferentes tipos e o tráfico de drogas se alimentam da pobreza como infantaria de comércio e da guerra, e das classes médias e altas como destinatárias do consumo e propiciadoras dos lucros. Jovens pobres, desempregados, sem cultura, sem lazer e sem esperanças, são presas fáceis do crime organizado. Mas não é só. Vários estudos mostram que a maioria esmagadora dos homicídios ocorre nas regiões pobres, periféricas, constituídas de excluídos. Pouquíssimos desses crimes são elucidados.
Os pobres enfrentam dois tipos de guerras, ambas fratricidas, porque são guerras de pobres contra pobres. A primeira, é patrocinada pelo tráfico e pelas organizações criminosas, que disputam territórios e mercados. A segunda é patrocinada pelo Estado, que usa as polícias, também constituídas de pobres, para reprimir e matar pobres, principalmente jovens. Estudos mais antigos e recentes mostram que o Estado se vale do sistema legal, do sistema judicial, do sistema prisional e do sistema policial para travar a guerra contra os pobres. Além da violência, as cadeias estão repletas de pobres, muitos deles sem julgamento. O sistema judicial julga de forma enviesada contra os pobres, contra os negros, contra os índios e contra as mulheres. Nas periferias, a repressão visa manter as populações confinadas, sob o terror das polícias e do crime, prisioneiras de guetos, inabilitadas à liberdade e ao usufruto da vida. É um sistema brutal de dominação, repressão, perseguição e guerra.
Estudos até mesmo feitos por coronéis da Polícia Militar de São Paulo chamam a atenção acerca do absurdo de como as polícias são treinadas. A sua formação é para matar, para a guerra. As insígnias, os brasões os refrões são todos orientados para a morte e não para proteger a sociedade e garantir direitos. Essa orientação para a guerra vem produzindo o aumento de jovens mortos pelas polícias e de policiais mortos em confrontos. As populações periféricas nutrem medo e descrença nas polícias. Os policiais pobres vivem com medo de seres assassinados, tudo isto mesmo com o fato de muitas polícias, notadamente as polícias militares no Brasil, prestarem relevantes serviços sociais de primeiro atendimento em várias situações de risco. Este sistema criminoso de formação das polícias é de responsabilidade dos governadores, os verdadeiros agentes do uso das polícias contra os pobres e de proteção do patrimônio dos ricos.
Os governos progressistas, em que pesem terem produzido alguns resultados na redução da pobreza, produziram resultados insuficientes. Na área de segurança pública, os resultados foram ainda mais precários. No Brasil, por exemplo, quando se ensaiava um programa mais estruturante através do PRONASCI, o mesmo sofreu uma guilhotinada pelo governo Dilma. Nada o substituiu. Pelo contrário: houve um retrocesso.
A intervenção no Rio é mais uma faceta da guerra contra os pobres, assim como o foram as UPPs. Existe um entrelaçamento entre os interesses do crime organizado e os interesses dos políticos. Os primeiros garantem lucros, financiamento de campanhas e currais eleitorais e os segundos garantem leniência, incompetência e corrupção.
Mesmo tendo sido adotada por um governo claudicante, a intervenção deixou as esquerdas perplexas e desorientadas, numa continuidade de conduta que vem desde o impeachment-golpe, passa pelas reformas trabalhista e da previdência e pela perseguição a Lula. Sem organização nas comunidades periféricas, sem força para mobilizar, mesmo num momento em que a maioria da população rejeita categoricamente o governo, as esquerdas permanecem sem estratégia e sem tática, limitando-se a uma retórica reativa, defensiva e pueril. Caminham para angariar uma nova e devastadora derrota neste fatídico ano em que poderão perder as eleições, sem Lula na disputa.
(*)Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)