A atitude do presidente Jair Bolsonaro de expor uma criança fardada e portando a réplica de uma arma em um ato político na semana passada “significa um retrocesso de vinte anos” nos direitos das crianças, disse à BBC News Brasil o uruguaio Luis Ernesto Pedernera, membro do Comitê de Direitos das Crianças das Nações Unidas (ONU) e ex-presidente do órgão entre maio de 2019 e maio de 2021.
O marco a que ele se refere é o ano de 2002, quando entrou em vigor um protocolo da Convenção de Direitos das Crianças sobre envolvimento de crianças em conflitos armados. O Brasil é signatário tanto da convenção quanto do protocolo, tratados internacionais em que o país se comprometeu com a promoção da dignidade das crianças e com políticas para evitar o recrutamento de menores em guerras e outros conflitos violentos.
“É extremamente sensível difundir imagens ou promover atitudes que retrocedem muitos anos… O protocolo facultativo entrou em vigor em 2002, e mostrar uma imagem dessa significa um retrocesso de quase vinte anos”, criticou, em referência à fotografia de Bolsonaro com a criança.
No dia 30 de setembro, o presidente colocou sentado ao seu lado um menino de seis anos fardado e portando a réplica de uma arma durante cerimônia em Belo Horizonte de lançamento da pedra fundamental do Centro Nacional de Vacinas. Chegou a erguer o garoto sobre os ombros e cumprimentou seus pais como exemplo de “civilidade, patriotismo e respeito”.
Para Pedernera, a atitude do presidente na verdade “não ajuda a promover uma cultura de respeito aos direitos humanos, fundamentalmente de não violência e paz”, conforme os princípios da convenção e do protocolo ratificados pelo Brasil.
Ele lembra que em 2015, ano da última avaliação do comitê sobre como o país estava avançando na implementação desses tratados, o Brasil foi elogiado por suas políticas de desarmamento. Na sua visão, a atitude do presidente brasileiro agora vai na direção contrária desses avanços. O governo Bolsonaro tem também adotado uma série de medidas administrativas para facilitar e estimular o acesso a armas.
Uma nova avaliação sobre como o Brasil tem implementado a Convenção de Direitos das Crianças está em andamento neste momento.
“É importante que os chefes de Estado deem uma mensagem de que as principais vítimas das guerras são as crianças. E não é se deve utilizar as crianças para reafirmar uma imagem de que a guerra é algo bom para elas”, disse também.
Na terça-feira (05/10), o Comitê de Direitos das Crianças das Nações Unidas repudiou a atitude de Bolsonaro em um comunicado oficial, após questionamentos da imprensa brasileira. Segundo o ex-presidente do órgão, esse tipo de manifestação é algo raro.
“Ponderamos muito as manifestações públicas mediante comunicados desse estilo porque tampouco queremos nos converter em um órgão que apenas divulga comunicados de imprensa. Mas, diante de feitos que comovem a opinião pública, como o da fotografia (da criança armada com Bolsonaro), o comitê deve aclarar (o descumprimento dos tratados), e fundamentalmente porque Brasil é um Estado que ratificou a convenção”, explicou o uruguaio.
“O comitê, em seu exame (da aplicação da convenção) nos Estados, tem 30 anos de existência e viu o que significa os conflitos armados na vida das crianças. Destruição de famílias, de lares, de escolas”, disse ainda.
ONU cobrou punição a Bolsonaro
Na sua manifestação oficial, o comitê disse que “condena nos termos mais veementes o uso de crianças pelo presidente Bolsonaro, vestidas com traje militar e segurando o que parece ser uma arma de fogo, para promover sua agenda política”.
O comunicado lembrou ainda que “a participação de crianças nas hostilidades é explicitamente proibida” nos tratados assinado pelo Brasil e que “isso inclui o uso de crianças em quaisquer atividades relacionadas a conflitos e a produção e disseminação de imagens de crianças envolvidas em hostilidades reais ou simuladas”.
O órgão diz ainda que “tais práticas devem ser proibidas e criminalizadas, e aqueles que envolvem crianças nas hostilidades devem ser investigados, processados e sancionados”.
À BBC News Brasil, Pedernera explicou que a adesão do Brasil aos tratados internacionais não dá poderes à ONU para punir Bolsonaro. Para o comitê, isso deve ser feito pelas instituições brasileiras competentes.
No entanto, apenas a Procuradoria-Geral da República (PGR) pode investigar e processar o presidente e hoje o órgão é comandado por Augusto Aras, visto como aliado de Bolsonaro. Em outro episódio envolvendo menores, a PGR defendeu o arquivamento de uma notícia-crime apresentada por PT e PSOL contra o presidente após ele ter retirado a máscara de crianças em atos políticos.
Não foi a primeira vez, inclusive, que Bolsonaro expôs uma criança armada e fardada. O mesmo já havia ocorrido em julho de 2019, em um evento que ele participou da Polícia Militar de São Paulo.
Questionado sobre os desafios para impedir que Bolsonaro repita essas atitudes, Pedernera defendeu a importância de o Brasil criar um órgão independente de avaliação da implementação da Convenção de Direitos das Crianças e do protocolo sobre conflitos armados. Essa recomendação foi feita ao país na avaliação de 2015, mas não avançou.
“Não posso dizer que seja a solução para o problema, mas nos países que criaram esses mecanismos de monitoramento esses problemas tendem a se reduzir”, disse.
“O Brasil deu um passo importante ratificando o protocolo, mas ratificá-lo implica em termos institucionais no desenvolvimento de legislação, políticas e instrumentos que aprofundem a aplicação do protocolo e acompanhem sua implementação”, acrescentou.
A BBC News Brasil questionou a Secretaria de Comunicação da Presidência da República sobre as críticas do comitê a Bolsonaro mas não obteve retorno.
Fonte: BBC News