O mesmo mundo que vive em compasso de espera por uma vacina contra o novo coronavírus abriga também países onde o percentual de pessoas que concordam que imunizações são importantes pode variar dos 26% na Albânia a 95% no Iraque.
Estes e outros números sobre a confiança em vacinas em 149 países foram publicados nesta quinta-feira (10/9) no periódico científico The Lancet, com base em uma pesquisa com 284 mil adultos sobre a importância, segurança e eficácia das vacinas.
O trabalho lembra que, em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a hesitação sobre as vacinas como uma das dez maiores ameaças para a saúde global.
Ela se reflete no atraso ou recusa à imunização, muitas vezes motivados por boatos e notícias falsas. Esses comportamentos estão associados a surtos recentes de doenças que podem ser prevenidas com vacinas, como sarampo, poliomielite e meningite.
Acompanhando o perfil da América Latina, o país historicamente apresenta níveis bastante altos de confiança nas vacinas na comparação com outras partes do mundo, explica Clarissa Simas, pesquisadora da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, uma das autoras da publicação no Lancet e brasileira. Entretanto, há sinais de que isto pode estar mudando, ela diz — ressaltando, porém, que são necessários mais dados para confirmar o que seria um aumento da desconfiança em vacinas no país.
“Para o Brasil, tivemos dados apenas de 2015 e 2019, então os modelos (matemáticos usados na pesquisa) ficam muito sensíveis (a variações). Não dá pra ter certeza estatística da queda. Mas os resultados sugerem, sim, que há um problema. É um sinal de que precisamos monitorar e coletar mais dados, inclusive qualitativos, sobre a confiança em vacinas no país”, diz Simas, graduada em psicologia na Universidade de Brasília (UnB) e mestre em antropologia médica na Universidade College London.
Ela acredita que no Brasil, particularmente, o acesso gratuito a uma ampla variedade de vacinas, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Programa Nacional de Imunizações (PNI), pode ter contribuído para a construção da confiança ao longo do tempo, que no entanto está agora sob alerta.
“A América Latina, e o Brasil inclusive, foi vista por muito tempo como tendo uma blindagem à desconfiança em vacinas. Mas sabemos que a confiança em vacinas é algo muito volátil, e esse perfil vem mudando”, explica a pesquisadora, que trabalha no Vaccine Confidence Project (“Projeto Confiança em Vacinas”, sigla VCP) na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
“Se os responsáveis não prestarem atenção, isso pode se reverter em queda na cobertura vacinal.”
Problemas com vacina de dengue nas Filipinas e de HPV no Japão
Esta é uma preocupação que se estende a outras partes do mundo.
A pesquisa associa à instabilidade política e ao extremismo religioso a situação de seis países em particular com aumento significativo da parcela de pessoas que discordam fortemente da segurança das vacinas: Azerbaijão (2% em desacordo com a segurança em 2015 versus 17% em 2019); Afeganistão (2-3%); Indonésia (1-3%); Nigéria (1-2%); Paquistão (2-4%) e Sérvia (4-7%).
Também são relatados episódios polêmicos envolvendo vacinas que foram depois sucedidos por queda em vacinações. Foi o que ocorreu nas Filipinas, quando a farmacêutica Sanofi anunciou em 2017 que sua recém-disponibilizada vacina Dengvaxia, contra a dengue, colocava em risco pessoas que não tinham tido contato com o vírus anteriormente.
Isto gerou pânico e revolta na população, levando o projeto VCP a acompanhar a situação mais de perto.
Foi constatado que o país asiático saiu do grupo dos dez países com maior confiança em geral nas vacinas (considerando tanto segurança, importância e eficácia) em 2015 para aparecer na 70ª posição mundial em 2019.
O Japão figura entre os países com a menor confiança em vacinas no mundo, o que, segundo os autores, pode ter sido impulsionado pelo medo da imunização contra o HPV que tomou conta do país em 2013.
Iniciado após relatos não confirmados de reações adversas em crianças, o temor levou o governo a suspender a vacinação, o que é criticado no relatório: “A forma como a crise da vacina contra o HPV foi abordada pelas autoridades de saúde, bem como um surto contínuo de rubéola no Japão, indicam problemas contínuos com o programa de vacinação japonês que precisam ser resolvidos”.
Por outro lado, em alguns países onde a confiança em vacinas tem sido persistentemente baixa, houve melhoras — como na França, onde o percentual de pessoas concordando fortemente com a segurança de vacinas passou de 22% em novembro de 2018 para para 30% em dezembro de 2019.
Clarissa Simas brinca que a confiança e desconfiança em vacinas são “democráticas”, ocorrendo em grupos e lugares com perfis sociais, econômicos e culturais distintos.
Ao mesmo tempo, a pesquisa constatou a partir de dados qualitativos que ser homem ou ter menos anos de escolaridade estão associados com chance menor de vacinação; enquanto a confiança em profissionais de saúde, mais do que na família ou amigos, foi associada à maior chance de vacinação.
Segundo os autores, o estudo publicado no Lancet é o maior de que se tem notícia sobre a confiança em vacinas a nível global, permitindo comparações entre diferentes países e alterações ao longo do tempo.
Fundado há uma década, o projeto Vaccine Confidence Project (VCP) monitora as opiniões e comportamentos do público sobre vacinas — no caso desta pesquisa publicada, usando entrevistas com amostras da população e depois modelos estatísticos. Assinam o artigo no Lancet pesquisadores da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e do Imperial College London, no Reino Unido; Universidade de Washington, nos EUA; e Universidade da Antuérpia, na Bélgica.
Expectativa de vacina contra a covid-19
Diante da pandemia de coronavírus, a pesquisadora lembra que já há grupos antivacinas se mobilizando contra uma eventual imunização para covid-19.
Nos últimos dias, o próprio presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, manifestou ressalvas a vacinas em potencial.
Ele defendeu que pessoas possam escolher se imunizar ou não e afirmou, na terça-feira (8), que “a gente não pode injetar qualquer coisa nas pessoas e muito menos obrigar”.
O relatório publicado no Lancet aponta para a importância da divulgação, por governos, empresas e profissionais de saúde, de informações sobre a segurança das vacinas.
Na atual corrida por uma imunização contra a covid-19, Clarissa Simas destaca a iniciativa de nove diretores de farmacêuticas que publicaram, também na terça-feira, uma carta aberta se comprometendo a solicitar registro de uma vacina a órgãos sanitários apenas “após a demonstração de segurança e eficácia em estudo clínico de fase 3”.
Fonte: BBC News