Atenção: essa reportagem contém detalhes que podem ser perturbadores.
Foi durante a última consulta de rotina do pré-natal, com 39 semanas de gestação, que a autônoma Karine Gehlen, de 29 anos, foi informada pelo médico que os batimentos cardíacos da sua bebê estavam muito abaixo do normal. Para exames mais detalhados e até mesmo com a possibilidade de ter que adiantar o parto, Karine foi orientada a ir até o hospital.
Saindo do consultório médico, a autônoma foi até o pronto-atendimento do hospital público de Toledo (PR), cidade onde mora. Chegando lá, a surpresa: sua bebê teve uma parada cardíaca e morreu.
“Fizemos um eletrocardiograma e um ultrassom e não escutávamos mais o coraçãozinho dela, ele já não estava mais batendo. Nesse momento meu coração acelerou, comecei a ficar desesperada e o médico simplesmente me olhou e falou: ela está morta. Eu não sabia o que tinha acontecido com a minha bebê. Sugeri que fizéssemos uma cesárea para tentarmos reanimá-la, mas ele disse que nada mais adiantaria”, relembra.
Sem saber exatamente o que havia acontecido para resultar em um aborto já no fim da gestação, apenas duas horas após ter ouvido os batimentos cardíacos do bebê, Karine ficou internada por quase 10 horas até passar por uma cesariana para a retirada do bebê.
“Me colocaram em uma sala isolada porque eu estava em total desespero e me sedaram para que eu pudesse me acalmar. Jamais uma situação assim tinha acontecido na família e todos começaram a ir para o hospital desesperados, sem saber exatamente o que estava acontecendo”, acrescenta a autônoma.
Foi durante as horas de espera para passar pela cesariana que uma médica explicou à Karine que ela possuía eritroblastose fetal, popularmente conhecida como incompatibilidade sanguínea, e isso havia feito com que sua bebê tivesse anemia profunda, resultando em parada cardiorrespiratória.
Ela conta que sua médica explicou que havia uma diferença no RH do sangue do pai e da mãe, e que essa diferença fez com que o seu corpo ‘atacasse’ o corpo da bebê.
“Mas foi muito difícil entender tudo aquilo, porque eu nunca havia ouvido falar sobre o problema, então como aquilo podia ter acontecido?”, recorda Karine.
Após a cesárea, Karine ficou internada por mais cinco dias, não podendo acompanhar o enterro da filha.
Estudando sobre o assunto
Inconformada com a perda da sua bebê já tão próximo ao nascimento, tendo que superar o luto de voltar para casa sem ela e encarar o quartinho pronto e todas as roupinhas arrumadas, Karine decidiu entender melhor o que havia acontecido dias antes e sozinha buscar respostas para todas as suas dúvidas.
A autônoma já era mãe de um menino, na época com 5 anos, e nunca tinha ouvida falar sobre incompatibilidade sanguínea e o que isso poderia ocasionar ao bebê. Sua primeira gestação havia decorrido tranquilamente, sem intercorrência e seu bebê foi entregue em seus braços saudável.
Cheia de dúvidas, ela passou a pesquisar sobre o assunto, buscar explicações e soluções — já que o sonho de ter mais um bebê permanecia.
“Eu comecei a ler sobre o assunto, sobre a composição sanguínea, porque ela acontece e como as diferenças podiam afetar uma gestação. Mandei e-mail para vários médicos de diversos hospitais do país para tirar dúvidas e tentei ao máximo me munir de informação correta para que quando eu engravidasse novamente eu conseguisse entender o que os médicos falassem e também saber questioná-los”, conta a autônoma.
Sonho de ter mais filhos
Exatamente um ano após a perda da filha, Karine recebeu a confirmação de sua gravidez: ela estava esperando mais uma menina.
“Engravidar novamente foi uma decisão difícil porque eu queria muito, mas a tentativa poderia dar certo como também poderia não dar e eu perderia mais um bebê”, diz.
Devido à incompatibilidade sanguínea entre mãe e bebê, Karine teve intercorrências na gestação logo na vigésima primeira semana de gestação e passou a ser atendida em um hospital em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, já que em sua cidade não havia todo o suporte que mãe e filha precisavam.
Para que a bebê não tivesse anemia e corresse risco de morte, foram necessárias transfusões sanguíneas, ainda dentro do útero. As transfusões aconteceram entre a vigésima primeira semana de gestação e a trigésima terceira.
“Foram feitas seis transfusões sanguíneas para ela sobreviver e o parto foi com 34 semanas de gestação. Devido aos riscos que ela ainda corria, foi necessário que ela permanecesse por 50 dias na UTI e só depois disso ela pode vir para casa”, recorda a autônoma.
Durante um ano, Karine precisou acompanhar de perto a saúde da bebê, já que havia risco de anemia que pudesse atrapalhar o seu desenvolvimento. Todos os meses a menina era submetida a exame de sangue.
“Após o nascimento, o bebê ainda tem muito do sangue da mãe, por isso a gente precisava acompanhar para ver como estava a questão da incompatibilidade sanguínea. Foi cerca de seis meses para que o corpinho dela absorvesse todo o meu sangue incompatível e ela ficasse apenas com o dela”, explica a mãe.
Três anos depois do nascimento da segunda filha veio a surpresa e Karine descobriu uma nova gestação — dessa vez sem programar. Também diagnosticada com incompatibilidade sanguínea, todo o processo de transfusões sanguíneas e acompanhamento médico intenso foram necessários. Quatro transfusões sanguíneas intrauterinas foram feitas.
A bebê nasceu no dia 2 de dezembro. Assim como a irmã, ela também vai precisar ficar por algumas semanas na UTI.
Alerta no TikTok
Para alertar outras mulheres sobre a eritroblastose fetal, Karine usa o TikTok e divide suas experiências e aprendizados sobre o assunto. Ela contabiliza mais de 1 milhão de visualizações em seus relatos.
“Como eu nunca tinha ouvido sobre o problema, eu decidi falar sobre o tema para ver se tinham mais mulheres enfrentando a mesma situação que a minha. Para minha surpresa começaram a aparecer diversas mulheres com o mesmo problema e desistiram de engravidar porque achavam que não era possível ter outro filho ou não tinham coragem de arriscar. Fico feliz em poder difundir o assunto porque dá para a gente conhecer ele antes de enfrentar uma situação dessa de perda”, finaliza.
O que é eritroblastose fetal
Eritroblastose fetal é uma doença que se caracteriza pela destruição das hemácias do feto ou recém-nascido pela ação de anticorpos da mãe. Ela acontece devido à incompatibilidade dos grupos sanguíneos da mãe e do bebê, estando relacionada à incompatibilidade do fator Rh (mãe possui a proteína sanguínea Rh- e o pai Rh+ podem gerar uma criança com Rh+).
“A doença pode causar anemia fetal hemolítica, insuficiência cardíaca fetal, hidropisia e óbito fetal. A longo prazo, a anemia fetal está relacionada com paralisia cerebral, surdez e retardo no desenvolvimento do bebê”, explica o médico Alberto Borges Peixoto, membro da Comissão de Medicina Fetal da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
Segundo especialistas, a incompatibilidade sanguínea não causa aborto no início da gestação, ela se manifesta, normalmente, após a vigésima semana. O risco vai aumentando conforme a idade gestacional e com o número de gestações.
“Uma das maneiras de controlar essa anemia é através da transfusão sanguínea intrauterina até o momento em que o bebê tenha idade gestacional e o parto possa ser feito e a doença possa continuar sendo tratada fora do útero”, acrescenta a médica Rosiane Mattar, coordenadora cientifica da Sogesp (Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo).
Já quando o bebê nasce ele pode apresentar ainda icterícia — pele e mucosas amareladas. Essa coloração é devido ao acúmulo de bilirrubina, resultado da degradação da hemoglobina com uma imaturidade hepática do recém-nascido.
Como fazer o diagnóstico?
Toda mulher deve saber qual seu fator RH e o do seu parceiro antes de engravidar para saber se é possível que ela tenha a eritroblastose fetal.
Caso ela seja negativa e o parceiro positivo, pode haver a incompatibilidade fetal com o bebê. Nesses casos é indicado fazer a pesquisa de anticorpos anti-Rh através do teste de Coombs indireto. Esse exame deve ser repetido todos os meses durante a gestação para verificar a existência de anticorpos anti-Rh.
Caso haja a incompatibilidade sanguínea entre mãe e bebê, a mulher precisa tomar gamaglobulina anti-Rh — concentrado de anticorpos que combate os antígenos Rh. Como os anticorpos da imunoglobulina destroem as células Rh do feto, a mãe não produzirá anticorpos anti-Rh. Desse modo, eritroblastose fetal não será desenvolvida.
Este texto foi publicado em BBC News