Suspeitas de interferência e censura na produção da prova, denúncias de assédio moral contra servidores e evidências de que o número de pobres inscritos caiu drasticamente marcam a edição de 2021 do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), a principal porta de entrada no ensino superior brasileiro.
As polêmicas foram ativamente alimentadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao longo da última semana, em particular quando disse que “o Enem começa a ter a cara do governo” — forçando o ministro da Educação a ter que se explicar perante o Congresso.
A preocupação com uma possível interferência do Poder Executivo no Enem foi denunciada ao programa da TV Globo Fantástico, no último domingo (15/11), por um grupo de servidores do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão encarregado da execução do Enem.
Sob anonimato, os servidores ouvidos pelo Fantástico se queixaram de intimidação e censura na preparação da prova, o que foi negado pelo governo.
Na segunda-feira, Jair Bolsonaro afirmou que as provas do Enem vão ocorrer “na mais absoluta tranquilidade” e acrescentou: “o que eu considero muito também (é que) começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem, ninguém precisa ficar preocupado com as questões absurdas do passado”.
Mais tarde, questionado pelos jornalistas, o presidente afirmou que não viu as questões do Enem: “Não vi, não vejo, não tenho conhecimento”.
Por normas do próprio Inep, as provas do Enem são feitas sob sigilo e não podem ser vistas por pessoas de fora do comitê que as elabora.
Na quarta-feira, à Comissão de Educação da Câmara, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que o Enem “tem a cara do governo, sim, (mas) no sentido de competência, honestidade e seriedade”.
No mesmo dia, perante o Senado, o presidente do Inep, Danilo Dupas, afirmou que nem ele nem o ministro Ribeiro tiveram acesso às provas, declarou que estas mantêm seu crivo técnico e que “não há qualquer risco” ao Enem 2021.
Observadores veem com preocupação que as circunstâncias acabem fazendo jovens carentes a desanimarem de prestar as provas, aumentando a “elitização” do ensino superior no país.
Entenda a seguir, em detalhes, as principais polêmicas envolvendo o Enem 2021:
Enem com ‘a cara do governo’ Bolsonaro
A declaração inicial de Jair Bolsonaro, de que as questões do Enem “começam a ter a cara do governo”, despertou preocupações quanto a possíveis interferências do Poder Executivo no conteúdo da prova.
Desde 2018, ainda como presidente eleito, Bolsonaro se queixa do Enem. “Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem (2019), porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Não vai ter isso daí”, disse o presidente naquele ano, em referência a uma questão da prova que abordava expressões relacionadas a gays e travestis.
Na sua atual viagem ao Catar, nesta semana, o presidente disse que o Enem faz “ativismo político e comportamental”.
No último domingo, o Fantástico revelou que, segundo servidores do Inep, durante a etapa final da elaboração da prova do Enem, em setembro, um policial federal teria burlado o forte esquema de segurança do local onde a prova é preparada, o que foi interpretado como uma tentativa de “intimidar servidores”.
Além disso, um “dirigente designado” pelo presidente do Inep, Danilo Dupas, também teria entrado no ambiente seguro do Enem, lido as provas e exigido a exclusão de “mais de duas dezenas de questões” — questões essas que tratavam da história recente do Brasil e, portanto, poderiam desagradar Jair Bolsonaro.
Isso gerou a suspeita de censura e a preocupação com a qualidade da prova, que precisa ter um equilíbrio entre questões de diferentes graus de dificuldade para poder avaliar os alunos com eficiência e permitir que universidades usem o exame como meio de admissão em seus vestibulares.
Os denunciantes disseram ao Fantástico que, apesar de tudo isso, conseguiu-se manter a eficácia e o equilíbrio do Enem 2021, “à custa da saúde mental de vários colegas servidores”.
Tanto Milton Ribeiro quanto Danilo Dupas negaram na última quarta-feira ter havido interferência na elaboração das provas.
“As provas foram montadas pela equipe técnica seguindo a metodologia que vem sendo adotada, a Teoria de Resposta ao Item (TRI). A prova possui um conjunto de questões de diversos níveis de dificuldade que são calibradas para garantir um certo nível de prova. É comum, portanto, que durante a montagem da prova tenha itens que são colocados e itens que são retirados justamente para garantir o nivelamento das provas”, disse Dupas, segundo a Agência Senado.
Ribeiro disse que o policial federal que visitou o Inep em setembro o fez para vistoriar a segurança da sala reservada à produção do Enem.
Naa quinta-feira (18/11), ao mesmo tempo, a revista Piauí publicou reportagem sobre um documento interno do Inep de 2019, indicando que 66 questões foram censuradas do Enem daquele ano, por aparentes motivos ideológicos.
A segurança e o sigilo das provas do Enem são regidos por portarias do próprio Inep, determinando que apenas uma pequena parte da equipe do órgão e de uma gráfica contratada tenham acesso ao exame, dentro de ambientes restritos e sob alta segurança, para evitar o vazamento de questões. “Todos os servidores e colaboradores com acesso aos itens (da prova) assinam termos de sigilo e confidencialidade”, segundo o Inep.
O ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro explica à BBC News Brasil que tradicionalmente zelava-se pela “zero intromissão” do Poder Executivo no Enem, “porque o fundamental é preservar sua pureza” – ou seja, impedir que haja interferências no conteúdo e que terceiros potencialmente se beneficiem de saber o teor das provas com antecedência.
Debandada e denúncias de assédio moral no Inep
A crise no Inep é de conhecimento público desde o início de novembro, quando mais de 30 servidores do órgão pediram exoneração coletiva, alegando “fragilidade técnica e administrativa” da atual gestão do órgão e acusando-a de assédio moral e institucional.
Sob anonimato, com medo de represálias, servidores têm se queixado de” intimidação” por parte da cúpula do Inep e de um “clima de desconfiança” instaurado no órgão.
Alexandre Retamal, dirigente da Associação de Servidores do Inep (Assinep), afirma à BBC News Brasil que as denúncias de assédio moral envolvem todas as áreas do Inep (não apenas a do Enem) e estão sendo reunidas para serem entregues até sexta-feira (19/11) ao Congresso, Tribunal de Contas da União e Controladoria-Geral da União.
Retamal diz que essas denúncias não incluem a apresentada ao Fantástico.
O servidor afirma ainda que não se trata de um “movimento sindical ou ideológico” – rebatendo a fala de Milton Ribeiro e Danilo Dupas, que disseram que a exoneração em massa se devia a questões trabalhistas ou administrativas-, mas sim de uma insatisfação “generalizada” com a gestão do Inep.
Em nota de esclarecimento publicada em 8 de novembro, o Ministério da Educação afirmou que os pedidos de exoneração não afetam o Enem.
“As provas do exame já estão prontas, armazenadas em sigilo e o Inep está monitorando a situação para garantir a normalidade de sua execução”, disse a nota. “Cabe esclarecer que os servidores colocaram à disposição os cargos em comissão ou funções comissionadas das quais são titulares, mas que continuam à disposição para exercer as atribuições dos cargos até o momento da publicação do ato no Diário Oficial da União (DOU).”
O problema, explica o ex-ministro Janine Ribeiro, é que o desmonte do órgão pode afetar a complexa execução do Enem, uma vez que cabe à equipe técnica do Inep “resolver problemas de última hora” – por exemplo, se as provas eventualmente não chegarem a tempo a uma determinada localidade.
Ou seja, a ausência de um corpo técnico especializado deixa a “situação mais precária”, em particular nos dias de realização das provas.
“O exame requer uma logística apurada, que está agora danificada”, diz. Dito isso, ele conclama os estudantes inscritos a não perderem o ânimo (veja mais abaixo).
Na noite desta quarta-feira, o Senado aprovou um pedido por uma auditoria do Tribunal de Contas da União no Inep. A autora do requerimento, senadora Leila Barros (Cidadania-DF), citou no pedido a “provável deterioração da capacidade operacional” do órgão, diante de “crises sucessivas que motivaram trocas de gestores e reduções no seu orçamento”.
O Senado também criou um grupo de trabalho para apurar a crise interna do Inep.
Enem mais ‘branco’ e elitizado
Mesmo antes da crise atual no Inep, o Enem 2021 já era visto com preocupação por observadores da educação, pelo baixo número de participantes.
Foram incialmente apenas 3,1 milhões de estudantes inscritos no Enem 2021, o número mais baixo desde 2005. A prova já chegou a ter 8,7 milhões de participantes.
Em agosto, o ministro Milton Ribeiro defendeu que o ensino superior brasileiro “seja para poucos, no sentido de ser útil à sociedade”.
Mas quem está deixando de participar desta edição do Enem em maior volume são justamente os estudantes mais pobres, explica à BBC News Brasil Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp, entidade que representa as mantenedoras do ensino superior no Brasil.
A equipe estatística do Semesp analisou, em agosto, os dados do Enem 2021 e identificou que houve uma redução de 77,4% no número de inscritos com renda familiar de até três salários mínimos. O número de pretos e pardos caiu para níveis de 2010, gerando o temor de um Enem muito “mais branco” e menos diversificado etnicamente.
“Inicialmente se falou que era a pandemia que estava afastando os jovens do Enem, mas estamos falando de 3 milhões de estudantes que deixaram de se inscrever” se levada em conta a média de 6 milhões de inscritos em anos recentes, pondera Capelato.
Para entender melhor essa ausência, é preciso lembrar que, por norma do próprio Ministério da Educação, os estudantes de baixa renda e de escolas públicas têm direito a isenção na taxa de R$ 85 de inscrição no Enem. Mas essa isenção só é dada a candidatos que não tenham faltado à edição anterior do exame (ou que tenham apresentado justificativa para a falta).
O problema é que, no Enem 2020, por conta da pandemia, muitos participantes faltaram à prova, com medo da covid-19. A abstenção do Enem 2020 foi de 55,5%, a maior da história — cerca de 3 milhões de participantes não compareceram. E, por consequência, esses 3 milhões de pessoas perderam o direito à isenção na inscrição do Enem 2021.
O Ministério da Educação inicialmente não abriu exceção por causa da pandemia, mantendo o veto à isenção desses participantes. Mas, em setembro, foi forçado a reabrir as inscrições a esse grupo, por determinação do Supremo Tribunal Federal.
Só que isso não foi suficiente: segundo dados levantados pelo Semesp, a decisão do STF levou a um incremento de 280,1 mil novos isentos inscritos no Enem — na prática, nem 10% dos 3 milhões de faltantes em 2020 que haviam perdido inicialmente o direito à isenção na taxa.
Na avaliação de Capelato, o Inep reabriu as inscrições por um período muito curto e não deu suficiente publicidade a essa reabertura, o que pode ter feito com que muitos estudantes carentes sequer tenham tido conhecimento sobre a decisão do STF ou tempo hábil para tentar a inscrição com isenção.
“Estamos perdendo essa conquista de (aumento na) participação dos grupos minoritários no Enem”, avalia Capelato. “Deveria ser um processo de democratização do acesso ao ensino superior, (mas) quem mais precisa da prova para conseguir se candidatar a universidades públicas está sendo tirado (fora). É a elitização total do ensino superior.”
A popularização do acesso ao ensino superior não é uma bandeira do atual governo. Em agosto, o ministro Milton Ribeiro afirmou que “a universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade” e fez uma defesa dos cursos técnicos como “vedetes” do futuro.
Nesse contexto, o ex-ministro Janine Ribeiro ressalta à reportagem que qualquer estudante que cursou o ensino médio em escolas públicas continua a ter direito, por lei, a 50% das vagas em universidades públicas oferecidas pelo Sistema de Seleção Unificada federal, o Sisu.
“Essas denúncias recentes sobre o Inep têm sido importantes, mas infelizmente contribuem para que alunos do ensino público desistam do Enem, desanimem da prova”, avalia o ex-ministro. “Este pode ser o pior Enem da história, mas, apesar dos inúmeros erros (do governo), o Sisu ainda garante metade das vagas para escolas públicas. Então, não desistam de prestar a prova.”
Fonte: BBC News