Todas as redes estaduais conseguiram implementar algum tipo de atividade remota, mas estudantes e professores enfrentam dificuldades para se adaptar à nova realidade.
Dois meses após o início da suspensão das aulas presenciais para conter a transmissão do coronavírus, um levantamento feito pelo G1 em todo o Brasil mostra o retrato da educação em tempos de pandemia.
A reportagem, publicada nesta quinta-feira (21), ouviu estudantes, pais, professores, e consultou os governos locais. Os dados mostram que, embora todas as redes estaduais de ensino tenham adotado alguma forma de educação remota – como plataformas virtuais, sites, aulas pela TV aberta e até uso de redes sociais para transmitir o material de ensino –, ainda há muitas dificuldades a serem vencidas.
Confira abaixo os principais pontos do levantamento:
- Resposta inicial em março: A decisão de suspender as aulas presenciais foi tomada pelas redes de ensino entre 11 e 23 de março. Parte dos estados (15) decretou férias ou recesso escolar para ter tempo de avaliar a situação. Outros (11) e o DF apenas suspenderam as aulas. Não houve resposta coordenada das redes, e cada uma adotou uma forma de repassar o conteúdo;
- Aulas remotas e carga horária: não há padrão sobre o que as aulas remotas vão representar na avaliação escolar: 16 estados planejam considerar as atividades a distancia como carga horáriado ano letivo, equivalendo-as às aulas presenciais; especialistas criticam porque nem todos os alunos têm acesso à internet e a qualidade da aprendizagem não é a mesma das aulas presenciais: “Não sou contrário ao uso de tecnologia, mas não dá para contabilizar como ano letivo. Sou favorável ao uso da tecnologia e das ferramentas de educação a distância para manter o contato com alunos, e de ter instrumentos de equidade, como a distribuição de equipamentos eletrônicos, para todos terem acesso à educação, mas não dá para validar como ‘ano letivo'”, afirma Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
- Falta de acesso ao conteúdo remoto: embora todas as redes tenham adotado soluções para o período de suspensão de aulas presenciais, nem todos os alunos têm acesso a elas, como relata José Miguel Canuto, de 12 anos, estudante de Pernambuco. “Não tive, até agora, nenhuma aula on-line, e o pessoal da escola também não falou nada com a gente sobre alguma atividade fora da escola. A única coisa que eu recebi foi um livro de português, quando minha mãe foi buscar a cesta básica da prefeitura”, disse o estudante.
- Falta de continuidade: Com soluções adotadas às pressas, estudantes relatam que os conteúdos passados nem sempre encontram relação com o que estava sendo ensinado antes da pandemia, como afirma o estudante de SC Guilherme Soares Machado, de 14 anos: “Estou passando por três situações: tem matéria em que o professor criou até um canal no YouTube para melhorar a explicação; com outras, o conteúdo passado não está relacionado com a matéria diretamente; e, em outras, para obter ajuda, tenho que enviar e-mail para o professor, que em alguns casos não é correspondido. Do meu ponto de vista, o ensino público não está preparado para o EAD [ensino à distância]“, afirma;
- Falta de estrutura pedagógica: Há inúmeros relatos pelo país de situações improvisadas para (tentar) transmitir aos alunos o conteúdo das matérias. No RS, educadores de uma escola relatam que enviam as atividades semanais por WhatsApp a duas pessoas da vice-direção – e elas encaminham aos pais e alunos. Se houver dúvidas, o caminho percorrido é o inverso. Em outro caso, um professor relata que foram entregues materiais físicos aos alunos, como apostilas, mas como nem todos conseguiram buscar na escola, a solução foi publicar o conteúdo na página do Facebook.
- Falta de preparo dos professores: não houve tempo de treinar os docentes para a situação atual. “O professor não estava preparado para aquilo tão repentinamente. Alguns tiveram problemas, assistiram vídeos para aprender a dar videoaulas e tudo mais. Mas 40% é a preparação da aula e estudo do professor. Os outros 60%, é feedback do aluno, e aí que fica puxado de saber”, afirma Cristiane Zorzatto, professora de biologia da rede estadual do MS.
- Falta de preparo dos alunos: a educação remota requer maturidade, envolvimento e uma nova dinâmica de estudos que os alunos não estão acostumados. Há alunos que não querem, têm os que participam e têm aqueles que não têm condições nem de ir pegar o material impresso nas escolas, segundo Laura Geane Lopes de Oliveira, gestora de escola. Já Caio Rogério, de 17 anos, morador da Rocinha, reclama da quantidade de conteúdo: “A maior dificuldade que eu estou tendo é que as matérias são excessivas, são gigantes. Quando você vai tirar uma dúvida com o professor, até ele responder, a nossa dúvida já passou. Isso é cansativo, até para os professores”, afirma. Para o professor de artes do Paraná Jean Carlos Franzoi Dernis, falta “alfabetização digital”.
- Desigualdade social escancarada: estudantes não tem acesso a tecnologias que são comuns do dia a dia, como computador pessoal e smartphone. “Eles [alunos] não têm celular da forma como as pessoas pensam – como um celular para cada um. Às vezes, tem um celular compartilhado para cada casa”, afirma a professora do Rio, Renata Rosseo, de 39 anos.
- Preparação para o Enem comprometida: a situação aumenta a ansiedade daquele que estão se preparando para exames seletivos. Sem computador, celular e internet para buscar o conteúdo, o estudante que já foi medalhista das olimpíadas de matemática duas vezes teme pelo futuro: “Sinto que estou andando para trás em relação ao Enem”, afirma Túlio Salvador Morais Novaes, de 19 anos, aluno da rede estadual do RJ;
- Baixa adesão: No estado de SP, apenas 1,6 milhão dos 3,6 milhões de estudantes da rede estadual acessou a plataforma de conteúdo. No Paraná, professores estimam que só 30% dos estudantes estão assistindo às videoaulas e entregando as atividades propostas pelo aplicativo.
- Apoio familiar: a educação remota esbarra na realidade de cada moradia e precisa do apoio familiar, como relata Tassiane Barreto, professora de português de SE: “Cada casa é uma realidade e os pais estão tendo que rebolar para dar conta de tudo também (…) não é o momento de criar paranoias, grandes expectativas. Respeitar os limites de todos: alunos, pais, professores, escola, até porque o objetivo é o mesmo, né? Empatia, acho que seja a palavra que veio para ficar”, afirma.
- Incerteza sobre a retomada: Nenhuma rede estadual de ensino sabe como será a retomada. Questionadas, elas afirmaram não saber se haverá aulas aos sábados para repor possíveis conteúdos ou se pretendem adotar carga horária estendida. Em geral, elas afirmam que avaliam as alternativas.
- Conteúdo perdido e readaptação: a pedagoga Evelise Maria Labatut Portilho, pós-doutora em Educação, afirma que esta não é hora de pensar em perdas de conteúdo, mas, sim, na formação das crianças. Já a pedagoga Ana Paula Mehre avalia que será preciso readaptar currículos escolares após o fim do isolamento. “Vejo que os alunos vão sentir muito esse período, muito conteúdo será perdido, mesmo com o esforço de todos. Vai faltar base para a construção de conteúdos futuros. Alunos de todas as séries serão prejudicados. Depois desse período de pandemia será necessária uma readaptação do currículo, o currículo escolar terá que ser flexibilizado”, afirma. “Se a gente tiver de abrir mão do ano letivo para isso [garantir formação adequada], é o que deveríamos fazer. O ano letivo não deveria ser prioridade”, explica o professor da Universidade Federal do ABC e especialista em educação Fernando Cássio.
Fonte: G1