Para uma instituição milenar como a Igreja Católica, 17 anos não são muito tempo. Pois em 3 de junho de 2003, o Vaticano publicou um documento chamado “Considerações Sobre os Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões Entre Pessoas Homossexuais.”
Eis a conclusão: “A Igreja ensina que o respeito para com as pessoas homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais. O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimônio, significaria, não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimônio comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade.”
O texto, aprovado pelo então papa João Paulo 2º (1920-2005), foi assinado pelo homem que ocupava o cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal alemão Joseph Ratzinger — dois anos depois ele sucederia João Paulo 2º, assumiria o nome de Bento 16; dez anos depois, ele renunciaria e abriria espaço para a eleição do argentino Jorge Bergoglio, o atual papa Francisco.
Na última quarta-feira (21), foi com certo espanto, não pouca polêmica e um sentimento de acolhimento por parte de muitos excluídos que o mundo reagiu a algumas frases do documentário Francesco, do cineasta americano de origem russa Evgeny Afineevsky, lançado em festival na Itália. Em um trecho de 20 segundos do filme, Francisco diz, em espanhol:
“Os homossexuais têm direito a estar em família, são filhos de Deus. Não se pode expulsar uma pessoa de sua família ou tornar a vida impossível para ela. O que temos que fazer é uma lei de convivência civil, para serem protegidos legalmente.
Ao usar a expressão “lei convivência civil”, muito possivelmente o sumo pontífice estava se referindo a modelos de legislação de união estável — pois na legislação da Argentina, o termo é literalmente “união convivencial”. De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, o papa demonstrou cautela em não equiparar a união dos homossexuais a dos heterossexuais.
“Precisamos comparar o que foi divulgado ao que ele realmente quis dizer no vídeo, gravado em espanhol. Na tradução em inglês da declaração, aparece ‘civil union law’, sendo que na verdade, em espanhol, ele diz: ‘fazer leis de convivência civil para que estas pessoas sejam cobertas legalmente’. Na legislação brasileira, por exemplo, existe essa distinção entre união civil e convivência ou união estável”, afirma a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
“Pode ser que ele tenha tratado do tema de maneira mais abrangente, não focando propriamente no aval ao quesito união civil, como foi divulgado. Ou talvez tenha evitado usar o termo união civil, que pode ser facilmente nivelado a casamento, justamente para não correr o risco de ferir os princípios da instituição que governa.”
“Francisco não faz uma classificação jurídica clara”, acrescenta ela. “Só pede que essas pessoas sejam protegidas e amparadas pela lei. Isso é o mais importante. A doutrina católica rejeita qualquer tentativa de igualar o contrato formal entre pessoas do mesmo sexo ao casamento entre homem e mulher.”
Mas entre a frase publicada por Ratzinger e a dita por Bergoglio, evidentemente, há uma mudança clara.
Conforme ressalta o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, “desde os tempos de Argentina”, o hoje papa já defendia que a Igreja “fosse mais aberta a união civil de pessoas do mesmo sexo”.
“Ele fala em um caminho do meio entre não reconhecer nada e entre aceitar um casamento. Entende a necessidade de que essas pessoas tenham direitos legais reconhecidos, ou seja, herança, compartilhamento do plano de saúde, enfim, tudo o que está ligado a uma união estável”, diz, à BBC News Brasil. “Mas o matrimônio ele segue afirmando que deve ser constituído entre um homem e uma mulher para, conforme a Igreja, o bem dos cônjuges e a geração de filhos, essas são as duas principais finalidades do casamento.”
Outros documentos
Em outubro de 1986, já prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger publicou uma carta com orientações aos bispos do mundo sobre o “atendimento pastoral das pessoas homossexuais”. No documento, ele trata a homossexualidade — chamada por ele de homossexualismo — como um “problema (…) cada vez mais objeto de debate público”.
“A teologia da criação, presente no livro do Gênesis, fornece o ponto de vista fundamental para a adequada compreensão dos problemas suscitados pelo homossexualismo. Na sua infinita sabedoria e em seu amor onipotente, Deus chama à existência toda a criação, como reflexo da sua bondade”, diz o texto. “Cria o homem à sua imagem e semelhança, como varão e mulher. Por isto mesmo, os seres humanos são criaturas de Deus chamadas a refletir, na complementariedade dos sexos, a unidade interna do Criador. Eles realizam esta função, de modo singular, quando, mediante a recíproca doação esponsal, cooperam com Deus na transmissão da vida.”
Ratzinger afirma que “optar por uma atividade sexual com uma pessoa do mesmo sexo equivale a anular o rico simbolismo e o significado, para não falar dos fins, do desígnio do Criador a respeito da realidade sexual”. “A atividade homossexual não exprime uma união complementar, capaz de transmitir a vida e, portanto, contradiz a vocação a uma existência vivida naquela forma de autodoação que, segundo o Evangelho, é a essência mesma da vida cristã. Não quer dizer que as pessoas homossexuais não sejam frequentemente generosas e não se doem, mas quando se entregam a uma atividade homossexual, elas reforçam dentro delas mesmas uma inclinação sexual desordenada, caracterizada em si mesma pela autocomplacência”, prossegue.
“Como acontece com qualquer outra desordem moral, a atividade homossexual impede a autorrealização e a felicidade porque contrária à sabedoria criadora de Deus. Refutando as doutrinas errôneas acerca do homossexualismo, a Igreja não limita, antes pelo contrário, defende a liberdade e a dignidade da pessoa, compreendidas de um modo realista e autêntico”, afirma o documento.
O então prefeito da Congregação orienta que os ministros da Igreja se esforcem para que os homossexuais não se “desencaminhem” sob argumentos de normalização social e critica correntes católicas que, já naquela época, procuravam acolher essas pessoas.
“Tenta-se reunir sob a égide do catolicismo pessoas homossexuais que não têm a mínima intenção de abandonar o seu comportamento homossexual”, escreve ele, afirmando que “a prática do homossexualismo” estaria “ameaçando seriamente a vida e o bem-estar de grande número de pessoas”.
Em conversa com a BBC News Brasil, o coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto atenta que “a legalização do casamento homossexual em vários países, particularmente entre as décadas de 1990 e 2000, tornou a questão ainda mais difícil” para o Vaticano.
“A questão da necessidade de acolher aos homossexuais, mas mantendo o ensinamento do matrimônio entre homem e mulher, já vem desde o pontificado de São João Paulo 2º”, afirma. “Ele já insistia que o casamento e a constituição da família aconteciam entre um homem e uma mulher, mas que não poderia haver qualquer discriminação contra a pessoa do homossexual. Pelo contrário, deveria haver uma preocupação explícita da comunidade cristã em acolher aos homossexuais.”
Neste contexto, muitos bispos — entre eles o argentino Bergoglio — eram partidários ao reconhecimento de uma união civil homoafetiva, desde que não fosse equiparada ao matrimônio entre homem e mulher. Ribeiro Neto, entretanto, acredita que o que está em jogo não é teologia, mas sim uma questão político-cultural sobre as interpretações do matrimônio.
Na oração do Angelus de 9 de julho de 2000, o então papa João Paulo 2º dedicou-se brevemente ao tema. Citou o “Catecismo da Igreja Católica”, destacando que os “atos de homossexualidade são contrários à lei natural”. “Um número não desprezível de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais. Eles não escolhem a sua condição de homossexuais; essa condição constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza”, leu ele, recomendando em seguida para que todos evitassem discriminá-los injustamente.
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé entre 1968 e 1981, o cardeal croata Franjo Šeper (1905-1981) publicou em 1975, sob o papado de Paulo 6º (1897-1978), “A Pessoa Humana: Declaração Sobre Alguns Pontos de Ética Sexual”. A questão dos homossexuais é abordada nos quatro capítulos do item 8 do documento.
Šeper apresenta-os em dois grupos. Aqueles “cuja tendência provém de uma educação falseada, de uma falta de evolução sexual normal, de um hábito contraído, de maus exemplos ou de outras causas análogas” são abordados como de comportamento transitório “ou pelo menos não incurável”.
Os demais, segundo o documento, seriam os “outros homossexuais que são tais definitivamente, por força de uma espécie de instinto inato ou de uma constituição patológica considerada incurável”.
Para este grupo, o cardeal afirma que “alguns concluem que a sua tendência é de tal maneira natural que deve ser considerada como justificante, para eles, das relações homossexuais numa sincera comunhão de vida e de amor análoga ao matrimônio, na medida que eles se sintam incapazes de suportar uma vida solitária”.
O cardeal pede acolhimento pastoral aos homossexuais e que sua “culpabilidade” seja julgada “com prudência”. Mas, encerra o capítulo com a condenação católica, lembrando que nada lhes pode “conceder uma justificativa moral”.
“Segundo a ordem moral objetiva, as relações homossexuais são atos destituídos da sua regra essencial e indispensável. Elas são condenadas na Sagrada Escritura como graves depravações e apresentadas aí também como uma consequência triste de uma rejeição de Deus”, pontua.
“Este juízo exarado na Escritura Sagrada não permite, porém, concluir que todos aqueles que sofrem de tal anomalia são por isso pessoalmente responsáveis; mas atesta que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados e que eles não podem, em hipótese nenhuma, receber qualquer aprovação.”
Outro documento a abordar a questão foi o “Família, Matrimônio e ‘Uniões de Fato'”, assinado pelo então presidente do Conselho Pontifício para a Família, o cardeal colombiano Alfonso López Trujillo (1935-2008), em julho de 2000.
Logo na introdução, o texto critica as “certas teorias” de ideologia de gênero. “Deste modo, qualquer atitude sexual resultaria como justificável, inclusive a homossexualidade, e a sociedade é que deveria mudar para incluir, junto ao masculino e ao feminino, outros gêneros, no modo de configurar a vida social”, pondera Trujillo.
O texto critica os movimentos jurídicos ao redor do mundo de equiparação das uniões estáveis ao matrimônio e frisa que, no caso primeiro, havia inclusive o reconhecimento às uniões homossexuais. “É preciso recordar aos parlamentares a sua grave responsabilidade de opor-se a isto, posto que os legisladores, e em especial os parlamentares católicos, não poderiam cooperar com o seu voto para este tipo de legislação, porque contrária ao bem comum e à verdade do homem, e, portanto, verdadeiramente iníqua”, ressalta.
Um item do documento é chamado de “Maior gravidade da equiparação do matrimônio às relações homossexuais”. “A verdade sobre o amor conjugal permite compreender também as graves consequências sociais da institucionalização da relação homossexual: torna-se patente quão incongruente é a pretensão de atribuir uma realidade conjugal à união entre pessoas do mesmo sexo. Opõe-se a isto, antes de mais nada, a impossibilidade objetiva de fazer frutificar o matrimônio mediante a transmissão da vida, segundo o projeto inscrito por Deus na própria estrutura do ser humano”, defende.
“Igualmente, se opõe a isto a ausência dos pressupostos para a complementaridade interpessoal querida pelo Criador, tanto no plano físico biológico como no eminentemente psicológico entre o homem e a mulher. O matrimônio não pode ser reduzido a uma condição semelhante a de uma relação homossexual; isto é contrário ao sentido comum.”
“No caso das relações homossexuais que reivindicam ser consideradas união de fato, as consequências morais e jurídicas alcançam uma especial relevância”, escreve. “As uniões de fato entre homossexuais além disso constituem uma deplorável distorção do que deveria ser a comunhão de amor e vida entre um homem com uma mulher, que se empenham ao dom recíproco de si e se abrem à geração da vida. Todavia é muito mais grave a pretensão de equiparar tais uniões ao ‘matrimônio legal’, como promovem algumas iniciativas recentes. E se isto ainda não bastasse pretende-se tornar legal a adoção de crianças no contexto das relações homossexuais aliando-se a tudo um elemento de grande periculosidade.”
“Não pode constituir uma verdadeira família o vínculo entre dois homens ou entre duas mulheres, e muito menos se pode atribuir a essa união o direito de adotar crianças sem família”, sentencia o documento. “Recordar a transcendência social da verdade sobre o amor conjugal e, por conseguinte, o grave erro que seria o reconhecimento ou inclusive a equiparação do matrimônio às relações homossexuais não supõe discriminar de modo algum estas pessoas. É o próprio bem comum da sociedade a exigir que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial com base na família que se viria deste modo prejudicada.”
No Sínodo dos Bispos realizado em outubro de 2005, já no papado de Bento 16, o cardeal Trujillo manifestou-se preocupado com uma “coerência eucarística dos políticos e legisladores”. Em um dos trechos, disse que eram “bem conhecidas as posições ambíguas de legisladores acerca do divórcio, das uniões de fato, as quais ao menos implicitamente constituiriam uma alternativa ao matrimônio, embora tais uniões sejam simplesmente uma ‘ficção jurídica’, ‘moeda falsa posta em circulação'”. E prosseguiu: “pior ainda quando se trata de ‘casais’ do mesmo sexo [aspas da transcrição oficial do Vaticano]”.
E Francisco?
Não foram poucas as vezes em que papa Francisco demonstrou no mínimo uma empatia ao se referir aos LGBT. Na volta de sua primeira viagem internacional como sumo pontífice, respondendo a jornalistas no voo do Brasil à Itália, ele disse que “se uma pessoa é gay e procura Jesus, e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”. “O catecismo diz que não se deve marginalizar essas pessoas, devem ser integradas à sociedade. Devemos ser irmãos”, acrescentou.
“Está clara a sua preocupação com os homossexuais, desde o início do pontificado. Francisco quer promover a dignidade dessas pessoas pois. De acordo com sua visão religiosa, eles ‘são filhos de Deus’ e merecem o devido respeito, como qualquer outra pessoa”, afirma a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Mas Francisco é enfático ao defender que o matrimônio, como sacramento, só pode ser contraído por heterossexuais. “Casamento só existe entre homem e mulher”, afirmou o papa, em entrevista concedida em 2017 ao sociólogo francês Dominique Wolton. Na exortação apostólica “Amoris Laetitia”, documento publicado em 2015, o papa enfatizou que “não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”.
Em 2018, a sigla LGBT foi usada pela primeira vez em um documento oficial da Igreja — no caso, o “Instrumentum Laboris” que serviu para nortear as discussões da Assembleia do Sínodo dos Bispos ocorrida naquele ano. Uma mudança e tanto para uma instituição que sempre se dirigiu a tais populações como “pessoas com tendências homossexuais”.
Medeiros acredita que a frase de Francisco no documentário deve ser vista como mais um avanço. “O pontífice toca em um tema que é tabu para a Igreja, isso não se pode negar”, comenta ela. “O foco do papa é o ser humano, a promoção de sua dignidade. Ele pede claramente que essas pessoas tenham acesso às garantias, aos benefícios sociais previstos em lei, como qualquer cidadão.”
Para o vaticanista Domingues, a novidade do posicionamento de Francisco está na menção à família. “Ele coloca o ‘fazer parte de uma família’. Não fala em ‘formar família’, mas fala em ‘fazer parte de uma família’. Isso é novo. Nunca esta questão tinha sido falada dessa forma por um papa antes”, analisa.
“Comparando com os últimos papas, o que se vê é uma mudança de linguagem a respeito da questão dos homossexuais. Hoje há uma abordagem mais pastoral e não se fala sobre a homossexualidade como algo intrinsecamente ruim”, complementa Domingues. “Francisco muda a abordagem, muda o olhar. Não muda o ensinamento em si nem o conteúdo, mas muda a ênfase. Ele olha para a realidade e se propõe a ir ao encontro das pessoas.”
Fonte: BBC News