Quando muitos viam o Uruguai ainda como exceção da pandemia na América Latina, com o contágio pelo coronavírus aparentemente controlado, o médico Julio Medina lançou uma advertência.
“Inexoravelmente vamos perder nosso privilégio. Devemos restringir nossa mobilidade e interação física para desacelerar a propagação do vírus”, escreveu em 29 de novembro, em sua conta no Twitter, o professor de doenças infecciosas da Universidad de la República (Udelar).
Menos de quatro meses depois, a situação do país havia dado uma guinada na pior direção.
O Uruguai ultrapassou o Brasil no domingo e se tornou o país latino-americano com maior número de novos casos de covid-19 a cada milhão de habitantes, conforme os dados da média móvel em 7 dias disponível na plataforma Our World In Data.
O indicador chegou a 335,66, contra 314,5 no Brasil. O Chile, que também enfrenta uma curva ascendente de casos da doença, tem 266,77 diagnósticos a cada milhão de habitantes.
Ainda que as posições no ranking possam oscilar de um dia para o outro, a evolução da situação no Uruguai tem preocupado especialistas.
No domingo, o país atingiu volume recorde de novos casos, casos ativos e de pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) desde o início da pandemia, um ano atrás.
Como uma média de 33,51 casos a cada 100 mil habitantes em uma semana, está na chamada zona vermelha de risco, conforme os parâmetros estabelecidos pela Universidade Harvard (a partir de 25 casos).
“Estamos no pior momento da pandemia no nosso país, as próximas semanas serão muito difíceis”, diz Medina em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
A que se deve a piora?
‘Reféns do próprio sucesso’
O Uruguai ainda tem desempenho melhor que vizinhos em alguns indicadores da pandemia. Com menos de 3,5 milhões de habitantes, o país contabilizava até segunda-feira (15/3) 712 mortes por covid-19, de acordo com a base de dados da Universidade Johns Hopkins.
A taxa de letalidade, de cerca de 1%, é uma das mais baixas na América Latina e menor do que a observada em nações com populações similares, como Costa Rica, Panamá e Paraguai, segundo o portal Our World in Data.
O país também tem um volume relativamente baixo de mortes a cada um milhão de habitantes, outra métrica usada para comparar regiões e países.
Apesar de ter sido um dos últimos países da região a receber vacinas contra a doença, em fins de fevereiro, tornou-se o segundo país latino-americano com maior volume de doses administradas a cada 100 pessoas (5,9), atrás do Chile (34,5).
Até o momento, o sistema de saúde uruguaio não se viu sob pressão em meio à crise sanitária.
O Uruguai vinha chamando atenção pela estratégia particular diante da pandemia, sem confinamento obrigatório.
O presidente Luis Lacalle definiu a abordagem como uma “liberdade responsável”: pediu à população que permanecesse em casa, mas evitou controles mais severos, com fiscalização por policiais e forças de segurança, usados em outros países.
Como os uruguaios vinham seguindo as recomendações e o vírus estava sob controle, a partir de abril de 2020 o governo passou a retomar gradualmente as atividades até então interrompidas pela pandemia, como construção, comércio, restaurante e aulas presenciais.
A primeira onda de contágio, contudo, tomou fôlego próximo ao fim do ano e, segundo especialistas, segue causando problemas neste início de ano.
Parte da explicação para o quadro é atribuída ao comportamento da população, que tem interagido mais desde as férias de verão, no fim do ano.
“Às vezes se fica refém do próprio êxito: as coisas estavam indo bem, as pessoas relaxaram – isso explica uma boa parte do que está acontecendo”, pontua Medina.
A piora, ele acrescenta, também se deve à disseminação da variante do coronavírus identificada em janeiro no Brasil – batizada de P1 e mais transmissível -, que acabou entrando no Uruguai pela fronteira terrestre entre os países.
Ainda que o governo tenha estabelecido um fechamento parcial de fronteiras, o isolamento é algo difícil de se alcançar nas cidades-limite, em que apenas uma rua marca onde um país termina e onde o outro começa.
“Estamos convencidos de que ela (a P1) deve estar no país, só não conseguimos demonstrar ainda”, ressalta o infectologista.
Caso a suspeita se confirme, “isso quer dizer que as medidas que vínhamos usando para conter a pandemia deixa de ser tão eficiente, e passa a ser necessário algo mais estrito”.
A lebre e a tartaruga
O governo uruguaio reúne nesta terça (16/3) seu Conselho de Ministros para analisar a situação.
Por ora, já decidiu pedir ao Legislativo que estenda as restrições impostas à reunião de pessoas com o intuito de evitar aglomerações, conforme noticiou a imprensa local.
Até a semana passada, o presidente Lacalle se opunha à adoção de medidas mais restritivas, como a circulação de automóveis.
Em fevereiro, o Grupo Asesor Científico Honorario (Gach), formado por especialistas e do qual Medina faz parte, que tem assessorado o governo sobre a pandemia, recomendou limitar as reuniões sociais e as atividades não essenciais.
Nesta segunda, diferentes especialistas exigiram publicamente mais medidas.
“Ao contrário do que diz a fábula da corrida entre a lebre e a tartaruga, aqui ela não vai dormir sozinha. É agora que temos que nocauteá-la, diminuindo sua mobilidade com novas medidas e, assim, alcançar o objetivo”, ilustrou em um tuíte Gonzalo Moratorio, virologista do Instituto Pasteur de Montevidéu.
O nefrologista Oscar Noboa afirmou na mesma rede que “cada minuto sem medidas acarreta custos altíssimos para os pacientes e aqueles que tiveram contato com eles”.
“A realidade não nos permite mais ser otimistas. É uma corrida entre o aumento de casos e o ritmo de vacinação. Neste mês (entre agora e meados de abril) são disputadas [algo como] as finais. É preciso adotar medidas duras, embora não se goste delas”, tuitou Oscar Ventura, professor da Universidade de Química de Udelar.
O Uruguai também adotou um esquema de vacinação particular, sem focar nos idosos, como em outros países.
A decisão se deu pelo fato de o país ter recebido as primeiras vacinas do laboratório chinês Sinovac, que, conforme os especialistas locais, careciam de ensaios clínicos em pessoas com mais de 60 anos para determinar sua eficácia neste grupo.
Em países como o Brasil, a decisão de se utilizar o imunizante nos idosos mesmo sem estudos amplos sobre o nível de proteção em idosos se deu pelo potencial demonstrado em evitar internações e casos mais graves de covid-19 entre pessoas do grupo, que está entre os mais vulneráveis ante a doença.
Na segunda, o governo anunciou que começará a vacinar pessoas entre 50 e 70 anos, mas ainda não se sabe quando começará a imunizar com doses de outros laboratórios a população que tem entre 70 e 75 anos.
Medina avalia, contudo, que mesmo com um índice mais elevado de vacinação neste momento o Uruguai continuaria atravessando um momento difícil.
“Isso não vai nos ajudar nessa fase de aceleração da epidemia”, alerta. “Vai nos ajudar mais tarde.”
Fonte: BBC