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Coronavírus: A polêmica do relatório britânico citado por Bolsonaro como se confinamento fosse responsável por mais mortes

Contrário às medidas de isolamento social e ao “lockdown” para conter a disseminação do coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro recorreu a uma reportagem do jornal britânico “Daily Mail” para criticá-los.

No domingo (09/08), um dia depois de o Brasil ter superado 100 mil mortos pelo coronavírus, Bolsonaro publicou no Facebook uma reportagem do tabloide conservador e popular no Reino Unido que dizia o seguinte: segundo um relatório do governo, o “lockdown”, ou confinamento, teria matado duas pessoas para cada três que morreram de covid-19 entre 23 de março e 1 de maio.

“No Brasil, mesmo ainda sem dados oficiais, os números não seriam muito diferentes”, escreveu o presidente. “Lamentamos cada morte, seja qual for a sua causa, como a dos 3 bravos policiais militares executados em São Paulo”, acrescentou Bolsonaro.

Só que a interpretação do Daily Mail em relação ao relatório do governo é extremamente contestada por especialistas no Reino Unido, e ignora um dado importante do documento: caso não tivesse havido medidas (como o lockdown) para impedir a disseminação do coronavírus, 500 mil pessoas teriam morrido.

Além disso, segundo especialistas, a reportagem confunde “mortes causadas pelo confinamento” com “mortes indiretas causadas pela pandemia e seu impacto no sistema de saúde” – duas coisas bastante distintas.

Mortes por covid-19

No Reino Unido, mais de 46 mil pessoas morreram por causa da covid-19, doença causada pelo coronavírus.

São quase 70 mortos por 100 mil habitantes, uma dos piores taxas da Europa. Além disso, o país tem o maior percentual de crescimento de mortes em excesso em comparação com anos passados na região.

“Ainda não sabemos qual foi o impacto do confinamento, mas uma coisa que podemos garantir é que teria sido muito pior sem o confinamento. A mortalidade do Reino Unido teria sido muito mais alta do que é”, diz a BBC News Brasil o estatístico britânico David Spiegelhalter, da Universidade de Cambridge.

A reportagem do Daily Mail toma como base cálculos oficiais do governo, apresentados em um relatório divulgado na sexta (07/08) passada.

Segundo o relatório, entre 23 de março e 1 de maio deste ano, 25 mil pessoas morreram vítimas da covid-19, 6 mil morreram vítimas de outras causas porque não receberam atendimento médico e 10 mil pessoas morreram em asilos depois de receberem alta no hospital.

O relatório também calcula 2,5 mil mortes a menos por causa de mudança de hábitos das pessoas durante a pandemia (mais exercícios físicos, menos acidentes de trânsito, entre outros).

Coronavírus
Direito de imagemGETTY IMAGES Image captionBrasil ultrapassou a marca de 100 mil mortos

Covid não diagnosticada

Mortes em excesso são mortes acima das médias históricas. Esse número tem sido usado para calcular o real impacto da pandemia em cada país. A maior parte dessas mortes são de pessoas diagnosticadas com covid-19. Outra parte são de mortes que podem ter sido causadas direta ou indiretamente pela pandemia.

Mas o número de mortes em excesso do relatório é contestado por especialistas. Muitos acreditam que um grande número de mortes não atribuídas à covid-19 na verdade foram causadas pelo coronavírus, só não registradas assim.

“Grande parte dessas 10 mil mortes em asilos que não foram registradas como causadas pela covid-19 provavelmente de fato foram causadas, sim, pelo vírus”, diz Spiegelhalter.

O próprio governo, que foi bastante criticado sobre como tratou os casos de coronavírus em asilos, já admitiu que muitas das mortes “não-covid” nesses espaços para idosos podem ter sido casos de covid-19 não diagnosticada.

Charles Tallack, diretor assistente da Health Foundation, uma entidade filantrópica focada nos serviços de saúde do Reino Unido, compara com números da Nova Zelândia.

“Lá também onde houve uma redução do uso dos serviços de saúde, como no Reino Unido, mas eles não tiveram mortes em excesso além das mortes por coronavírus. Há um problema sobre como isso é registrado”, afirma.

Segundo o economista John Muellbauer, professor da Universidade de Oxford e coautor de um estudo que compara mortes em excesso em diferentes países europeus, “mortes atribuídas à covid-19 no Reino Unido representam cerca de 80% do total de mortes excedentes”.

“Na Espanha, foi menos de 60% e, no Brasil, esse número deve ser ainda menor. Mas acreditamos que muitas mortes causadas de fato pela covid-19 não foram registradas assim”, disse Muellbauer.

Boris Johnson
Image captionGoverno Boris Johnson foi criticado por adotar confinamento tarde demais e por omissão em relação aos asilos, onde grande parte das mortes ocorreram

Não é por causa do confinamento

De qualquer forma, Gabriel Scally, professor visitante de saúde pública da Universidade de Bristol, explica a diferença entre esses dois tipos de morte em excesso causadas durante a pandemia.

Um tipo, diz ele, são as mortes causadas diretamente pelo vírus. O segundo tipo são mortes causadas direta ou indiretamente pela pandemia. “Quando a pandemia não é controlada no início, ela afeta os serviços de saúde e a vida das pessoas, que deixam de ir para o médico porque têm medo de contrair o vírus. Isso pode levar à morte, diz. “Mas não tem a ver com o confinamento, tem a ver com a covid-19.”

“O confinamento não matou essas pessoas. O coronavírus matou”, afirma. “É um pouco como as escolas terem fechado e a educação dos alunos ter sido afetada. A causa disso não é as escolas fecharem, é o vírus. Se não fosse pela existência do vírus, nada disso teria acontecido.”

Para Spiegelhalter, “as mortes não registradas por covid não são efeito direto do confinamento, mas causadas porque as pessoas não acessaram serviços de saúde”. “Isso não tem a ver com o confinamento.”

“Vamos assumir que os números estejam certos”, diz Tallack. “Não dá para concluir que o lockdown matou mais pessoas. Porque se não houvesse lockdown, o número seria muito maior. E as pessoas teriam o mesmo medo de ir para os hospitals ou procurar ajuda médica, por medo de contrair o coronavírus.”

Além disso, diz ele, sem o lockdown, os hospitais poderiam ter excedido sua capacidade de atendimento, impedindo de fato o tratamento de outras doenças de muitos pacientes.

Sir Patrick Vallance, Boris Johnson e Prof Chris Whitty
Direito de imagemREUTERS Image captionReino Unido tem uma das maiores taxas de morte por 100 mil habitantes

Timing, rastreamento, serviço de saúde e comunicação

Ao menos quatro elementos deixaram de ser considerados na interpretação do Daily Mail, avaliam especialistas, e os quatro têm a ver com a forma como o confinamento foi feito, e não com o confinamento em si.

“O ‘timing’ do confinamento é crucial, e não se houve confinamento ou não”, diz Muellbauer.

O governo Boris Johnson, no Reino Unido, foi bastante criticado por ter adotado um confinamento considerado tardio. Um confinamento feito com maior antecedência teria poupado mais vidas, impedido a maior circulação do vírus e permitido que a vida das pessoas voltasse ao normal mais rapidamente, alegam especialistas.

Muellbauer compara os números do Reino Unido com os da Alemanha, que teve apenas 5% de mortes em excesso em relação ao número de mortes esperadas. Um dos elementos que colocam a Alemanha à frente do Reino Unido, que teve 55% mortes em excesso, foi um confinamento mais cedo.

Além disso, ressalta, o país impôs testagem em massa e rastreamento de contatos, algo que o Reino Unido não fez de imediato e até hoje o sistema de rastreamento do país é considerado falho e insuficiente por muitos.

E o serviço de saúde da Alemanha era mais robusto: o país aumentou o estoque de equipamentos de proteção para profissionais de saúde antes do que em outros países, tinha três vezes mais leitos de hospital que o Reino Unido e muito mais ventiladores.

“Se profissionais de saúde são protegidos com eficácia, uma menor parte deles fica doente, afetando a capacidade de atendimento do sistema de saúde, e menos pacientes são infectados”, afirma Muellbauer.

“As pessoas também ficam com menos medo de contrair o vírus dos profissionais de saúde quando vão procurar hospitais por outras condições”, diz ele.

Scally concorda: o medo das pessoas de contraírem coronavírus nos hospitais se justifica quando se leva em conta que no Reino Unido houve uma crise de falta de equipamentos de proteção para profissionais de saúde, muitos também acabaram sendo vítimas do coronavírus.

Comunicação ruim

Por fim, os especialistas apontam que, essencialmente, o problema pode ter sido mais de comunicação do que o do confinamento em si.

“Devemos buscar fazer as pessoas se sentirem mais confiantes de tomar a decisão de ir ao hospital caso precisem. Nosso sistema de saúde não foi completamente fechado”, diz Tallack. “A questão é sobre comunicação, não sobre confinamento ou não confinamento.”

Scally concorda. “As pessoas têm que medir os riscos. Se você sofre um infarto, é lógico que precisa ir para o hospital, porque a chance de morrer de infarto provavelmente é maior do que a de contrair covid-19. Não tem uma solução fácil”, diz.

“Mas pode ter a ver com problemas de comunicação. É preciso deixar mais claro que as pessoas podem se comunicar com seu médico ou os serviços de emergência para verificar qual é a melhor saída para sua situação”, diz Scally.

Para o oncologista Ajay Aggarwal, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, o problema do excesso de mortes causadas pelo confinamento também pode ter mais a ver com a forma como o confinamento foi feito.

Aggarwal estudou o impacto da resposta à crise da covid-19 no diagnóstico de câncer na Inglaterra, e chegou à conclusão de que 3.500 pessoas poderão morrer nos próximos cinco anos vítimas de câncer de mama, pulmão, intestino ou de esôfago por demora para serem diagnosticados.

“Talvez não tenhamos considerado muito os efeitos indiretos quando comunicamos o lockdown ou quando decidimos a maneira como ele seria feito”, diz.

“Talvez pudéssemos ter chegado a um equilíbrio para tentar mitigar os efeitos indiretos do lockdown, tentando mudar nossa abordagem e informado as pessoas sobre os riscos reais um pouco mais cedo”, acrescenta ele.

Falar sobre a mortalidade, saúde e os riscos reais é um “debate público bastante difícil”, observa.

Se você tem sintomas de algo que pode ser uma doença grave e pode correr o risco de contrair coronavírus no hospital, vale a pena ir checar isso? “Talvez sim”, diz Aggarwal, porque em muitos casos o risco de contrair a covid-19 teria sido menor do que o risco de morte por falta de diagnóstico ou tratamento.

No Reino Unido, a mensagem principal do governo era: “fique em casa, salve vidas, proteja o NHS (sistema de saúde universal britânico)”.

“É uma mensagem forte. As pessoas ainda estão escutando isso, e reverter isso é muito difícil. Se você interromper todos os exames de rotina, haverá problemas, e isso será relacionado às medidas de confinamento, porque você mudou todo o sistema de saúde propositalmente.”

Tudo isso, diz ele, tem a ver, é claro, com as capacidades dos sistemas de saúde de cada país e com a capacidade de adotar outras medidas que podem ajudar a combater a disseminação do coronavírus.

Para muitos especialistas, o Reino Unido falhou em adotar o rastreamento de contatos de pessoas infectadas por coronavírus, medida que talvez tivesse amenizado o confinamento que foi preciso impor.

No Brasil, a maior parte das regiões tampouco adotou um sistema assim.

Scally concorda: “O governo britânico não pode ficar fora dessa. Se tivessem agido com mais rapidez, feito o lockdown antes, ou usado o sistema de rastreamento de contatos, o vírus teria sido controlado mais cedo.”

 

 

 

Fonte: BBC News

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