O caso da menina de 10 anos que engravidou do próprio tio após ser estuprada por ele ao longo de anos gerou revolta não só pela barbárie do crime, mas também pela reação de parte da sociedade à autorização da Justiça para que ela fizesse um aborto.
A avó da vítima teria sido pressionada por grupos contrários ao aborto para que a neta não interrompesse a gravidez. A militante de extrema direita Sara Giromini divulgou o nome da menina e do hospital onde ela faria o procedimento. Manifestantes foram até o local para protestar e distribuíram acusações de “assassinos”.
Essa mobilização chama ainda mais atenção porque o aborto de uma gestação fruto de um estupro é permitido por uma lei que não é nova ou sequer recente.
Esse tipo de aborto foi descriminalizado há 80 anos, pelo Código Penal de 1940, que promoveu uma reforma das leis que determinam o que é crime no Brasil. Em vigor até hoje, o código inovou ao incluir o aborto por causa de um estupro entre as exceções.
Até então, só não se punia o chamado aborto necessário, para salvar a vida da mulher.
“Mas o aborto para salvar a gestante nem precisava estar entre as exceções, porque, pelo próprio Código Penal, ninguém responde por um crime que comete para proteger um valor maior, agindo contra um valor menor”, diz Mariângela Magalhães Gomes, professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP)
“O aborto em caso de estupro é na verdade a única exceção específica prevista em lei.”
Também foi a última criada no Brasil desde a primeira metade do século passado. Não há registros do motivo que levou a isso ou mesmo um consenso entre especialistas. Mas olhar para a evolução da lei sobre o aborto no Brasil pode ajudar a entender por que essa mudança aconteceu.
Inspiração fascista
O Código Penal de 1940 foi um projeto do governo de Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo. Juristas foram convocados para atualizar a lei de crimes do país e se espelharam em legislações europeias da época, explica Sérgio Salomão Schecaira, professor de Direito Penal da USP.
“A maior influência veio das leis italianas criadas durante o regime fascista de Benito Mussolini, que já previam a exceção do aborto em caso de estupro”, afirma Schecaira.
Embora a legislação contra o aborto na Itália na época, com penas que podiam chegar a mais de 16 anos de prisão, caso a gestante tivesse menos de 18 anos e morresse, fosse bastante dura. “A nossa também é”, diz Schecaira
O Código Penal estabelece penas que variam entre 1 a 3 anos, para a mulher que provoca um aborto em si mesma ou permite que outra pessoa realize o procedimento, e 6 a 20 anos, para quem realizar um aborto em uma gestante que vier a morrer.
A lei prevê duas exceções, se realizadas por um médico: o aborto necessário ou em caso de estupro, com o consentimento da gestante ou, se ela for considerada incapaz, de seu representante legal.
Foi nesta segunda hipótese, criada pelo Código de 1940, que o Ministério Público se baseou para pedir a autorização para o aborto realizado pela menina de 10 anos.
Defesa da honra
Maria Cristina Carmignani, professora de História do Direito da USP, diz que, embora esta legislação, assim como outras no Brasil, tenha se inpirado em leis de outros países, a inclusão da exceção do aborto em caso de estupro no Código Penal está relacionada ao contexto da época.
O aborto é visto hoje por quem o defende como um direito da mulher, que teria assim o controle sobre o próprio corpo e poderia escolher seguir ou não com uma gravidez.
Mas essa visão é recente, fruto de décadas de lutas feministas pelo reconhecimento da igualdade jurídica entre homens e mulheres, que só foi oficialmente estabelecida no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988.
A descriminalização do aborto em caso de estupro em 1940, em uma sociedade que era ainda mais conservadora e patriarcal, teria menos a ver não com a concessão de um direito e mais com uma forma de proteção da honra, diz Carmignani.
“Mas não era exatamente a honra da mulher, que era vista como a filha, irmã ou mulher de um homem. Era para proteger a honra destes homens. Se uma mulher fosse deflorada, isso manchava a honra da família toda.”
A história da legislação sobre o aborto no Brasil aponta na mesma direção.
A evolução da lei no Brasil
O Código Penal de 1940 foi o terceiro criado no Brasil após a independência, em 1822, e é o que está em vigor há mais tempo.
Uma compilação de legislações portuguesas de 1603, as Ordenações Filipinas, regeram as questões civis, morais, criminais, entre outras, até pouco depois da independência.
Elas não tinham nenhum artigo sobre o aborto. Mas a antropóloga Lia Zanotta Machado, professora da Universidade de Brasília (UnB), diz que a prática poderia ser considerada um homicídio. No entanto, para isso, o feto deveria já ter uma “alma”.
“Na época, a Igreja Católica entendia que isso só acontecia depois do terceiro mês de gravidez. Foi somente em 1869 que a Igreja disse que isso ocorre na concepção. Por isso, só os casos de gravidez avançada chegavam à Justiça, e eram muito poucos”, diz Machado.
Ao mesmo tempo, as Ordenações Filipinas determinavam que os quadrilheiros, uma espécie de polícia moral da época, deveriam alertar à Justiça se uma mulher deixasse de estar grávida sem um parto devidamente relatado. Isso poderia ser um sinal de um aborto.
Mas, segundo a historiadora Mary Del Priore, a preocupação não era exatamente com a interrupção da gravidez em si.
“Mais do que atacar o homicídio terrível que privava uma alma inocente do batismo e, portanto, da salvação eterna, caçavam-se os desdobramentos condenáveis nas ligações fora do matrimônio”, escreve Del Priore.
A criminalização da mulher
O aborto só foi expressamente criminalizado no Código Penal seguinte, de 1830, criado no período imperial.
Quem ajudasse uma grávida a abortar, com seu consentimento, poderia ser preso por 1 a 5 anos. Sem a permissão, a pena era duplicada.
A sentença era de 2 a 6 anos para quem fornecesse um meio de fazer um aborto. Um “médico, boticário, cirurgião, ou praticante de tais artes” poderia ficar até o dobro do tempo na prisão.
Mas a mulher que abortava não era considerada uma criminosa. “Isso foi fruto do espírito liberal da época. Não se punia a mulher que fizesse um aborto, porque ela não estava fazendo mal a outra pessoa”, diz Maria Cristina Carmignani.
Isso não significa que não houvesse um debate sobre criminalizar a mulher. “Mas decidiu-se que o Estado não deveria intervir em um caso assim. Cabia à mulher decidir se iria se expor aos perigos de um aborto”, acrescenta.
Isso mudou quando a lei penal brasileira foi mais uma vez reformada, após a proclamação da República, com o Código Penal de 1890.
A nova legislação foi a primeira a prever expressamente uma exceção, a do “aborto necessário, para salvar a gestante de morte inevitável”. Mas também foi a primeira a punir criminalmente a mulher que aborta.
As penas variavam de 6 a 12 meses de prisão (provocar um aborto sem expulsão do feto) e 6 a 24 anos (quando houvesse a morte da mulher). A punição ficava mais branda, de 1 a 5 anos de prisão, se o aborto tivesse ocorrido com a permissão da gestante.
A mulher poderia receber a mesma sentença se abortasse por conta própria. A pena seria reduzida em um terço se ela tivesse feito isso para “ocultar a desonra própria”.
No lugar da honra, o estupro
Mas, no Código Penal seguinte, de 1940, esse atenuante baseado na defesa da honra desapareceu. E foi criada a exceção para o aborto em caso de estupro.
Uma mudança está ligada à outra, afirma Carmignani. “O paradigma da honra vinha perdendo força no campo jurídico e foi retirado.”
Mas a questão do aborto nunca foi colocada de forma absoluta na lei brasileira. Sempre houve exceções e atenuantes.
“Com o desenvolvimento da Ciência e da Medicina, passou a predominar a questão em torno da proteção da vida. Mas ainda era preciso ter no código um atenuante que substituísse a honra, que ressurge sob a ótica da violência”, diz ela.
Mariângela Magalhães Gomes esclarece que, naquela época, o estupro não era visto como uma violência contra a mulher, mas contra sua família.
“Tanto que a lei previa que, se o estuprador depois se casasse com a vítima, ele não era punido, porque havia reparado o dano à honra. Isso vigorou no Brasil até 2005.”
Lia Zanotta afirma que, embora a ideia de honra tenha deixado de constar na lei, os valores morais que a norteavam continuaram nas mentes dos legisladores e da sociedade como um todo.
“O conceito de honra se torna anacrônico em uma época em que passam a prevalecer os direitos individuais, porque a honra nunca foi individualizada, mas familiar. Mas ela reaparece no novo código com outro significado”, diz a antropóloga.
Seria assim que a lei penal no Brasil teria passado a isentar de pena o aborto de uma gravidez gerada pelo ato que abalava a honra familiar, o estupro.
Resistência a mudança
Desde então, nenhuma outra exceção ao crime de aborto foi incluída na lei. Existe, porém, uma terceira situação que hoje é isenta de pena: quando a mulher está grávida de um feto com anencefalia.
Na absoluta maioria dos casos, essa malformação cerebral leva o bebê à morte ainda na gestação ou pouco tempo após nascer. Também é considerada uma gravidez de risco para a mãe.
Mas a descriminalização ocorreu por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2012. Salvo isso, as regras do Código Penal sobre o aborto continuam rigorosamente iguais, e nenhum projeto de lei para alterá-lo prosperou.
“Todas as reformas penais apresentadas — e não foram poucas — que propunham novas regras para o aborto ficaram paradas. Por pragmatismo, passou-se a não tratar do aborto nestas propostas e a discutir temas menos conflituosos para conseguir avançar de alguma forma”, diz Sérgio Salomão Schecaira.
Lia Zanotta diz que a resistência no Congresso ficou mais organizada (e eficiente) a partir de 2005, com a formação de frentes parlamentares contrárias à legalização do aborto.
Essa mobilização, de forte caráter religioso e cristão, consegue arrecadar dinheiro para fazer campanhas e protestos e ter programas de TV, diz a antropóloga, e faz assim uma “doutrinação contra o aborto”.
“Essa resistência organizada se manifestou fortemente agora no caso desta menina de 10 anos, que corria o risco de morrer se continuasse com a gravidez. Esse movimento fala que age em defesa da vida, mas da vida de quem?”
Fonte: BBC News