O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli deixa a presidência da Corte na quinta-feira (10/09), quando assume o cargo o ministro Luiz Fux. Seus dois anos de mandato foram marcados por polêmicas, como o inquérito das Fake News e uma movimentação mais política do comando do Supremo, em que se buscou interlocução constante com o Congresso e o presidente Jair Bolsonaro, apesar dos frequentes ataques à Corte vindos dele e de seus apoiadores.
Na semana passada, em uma espécie de discurso de despedida no Palácio do Planalto, aproveitou, inclusive, “para agradecer ao presidente da República, Jair Bolsonaro, conjuntamente com os ministros de Estado, pelo diálogo e pela cooperação em prol da construção de um país mais justo e que trilhe o caminho do desenvolvimento social, econômico e regional”.
Dias depois, em sua última entrevista a jornalistas, disse não ter visto uma atuação antidemocrática do presidente — que compareceu a diversas manifestações organizadas por seus apoiadores que pediam fechamento do Supremo e do Congresso Nacional. “No relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros de Estado, nunca vi diretamente nenhuma atitude contra a democracia”, elogiou Toffoli.
O saldo dessa postura política é controverso. Para juristas ouvidos pela BBC News Brasil, ao tentar construir uma relação “harmoniosa” (termo do próprio Toffoli) entre os Poderes, o ministro fragilizou a Corte e alimentou desconfianças sobre suas decisões — por exemplo, quando paralisou centenas de investigações no país iniciadas a partir de informações do antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), após pedido do filho mais velho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), alvo de uma apuração do Ministério Público por suposto esquema de desvio de recursos de seu antigo gabinete de deputado estadual.
Com uma liminar, Toffoli interrompeu sozinho as investigações e levou quatro meses para pautar o caso no plenário do STF, quando a suspensão foi finalmente derrubada, demora que levantou especulações de que sua decisão era um aceno ao Planalto em busca de uma melhor relação entre os Poderes.
Professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Estefânia Barboza também considera que a aproximação do presidente de Toffoli com Bolsonaro contribuiu para reduzir a confiança da sociedade na Corte.
“Embora a relação entre os Poderes tenha que ser cordial, me parece que não é dada competência constitucional ao presidente do Supremo de fazer negociações de esfera política, diálogos de bastidor”, afirma.
“A postura de um presidente do STF não tem que ser de embate, mas também não tem que ser de amigo (do presidente). A intensão inicial era interessante, de acalmar os ânimos porque a tensão era grande, mas ele errou na dose. Houve uma falta de visão institucional que fragiliza o Supremo”, acrescentou.
Atuação evitou escalada da crise, pondera presidente da OAB
Para outros, porém, o perfil mais político de Toffoli — antes de ser ministro do STF, assessorou o PT no Congresso e foi advogado-geral da União no governo Luiz Inácio Lula da Silva — foi importante para evitar a escalada da crise institucional em momentos de forte tensão entre a Corte e o Palácio do Planalto.
Essa postura foi anunciada por ele em sua posse no comando do STF, em setembro de 2018, pouco antes da eleição de Bolsonaro, quando propôs um “pacto” entre os Poderes. O objetivo, explicou ao defender a estratégia em sua última entrevista a jornalistas, era retomar o diálogo do Judiciário com o Executivo e o Legislativo, abalado pela Operação Lava Jato — que atingiu em cheio parlamentares, o ex-presidente Michel Temer e, nas palavras de Toffoli, “criminalizou a política”.
Mesmo sem apoiar todas as atitudes de Toffoli, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, diz que ele foi um “elemento agregador” que contribuiu para “não elevar a temperatura em momentos de crise institucional, econômica, política”.
“Tem frases (dele) que eu não concordo, como essa de que a democracia não esteve em risco. Acho um desserviço ao próprio Toffoli, porque esteve em risco sim, e ele teve capacidade político-institucional (para lidar com isso)”, analisa Santa Cruz.
“O resultado é que a democracia está hoje mais sólida do que já esteve, e o Toffoli foi um elemento favorável a isso”, acredita.
Ameaças inéditas
Os juristas ouvidos pela BBC News Brasil concordam que a situação de ameaças ao STF enfrentada durante a presidência de Toffoli representava algo inédito desde a redemocratização (a partir de 1986).
Ainda na campanha presidencial, o deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente, disse que bastaria um “cabo e um soldado” para fechar o Supremo. Já no final de maio deste ano, ao criticar decisões do STF desfavoráveis ao governo, ele afirmou entender “quem tenha uma postura mais moderada, vamos dizer, para não tentar chegar em um momento de ruptura, um momento de cisão ainda maior”, mas ressaltou que na sua visão “não é mais uma opinião de se, mas de quando isso (uma ruptura) vai ocorrer”.
Na ocasião, disse ainda que “altas autoridades” estavam discutindo isso: “A gente discute esse tipo de coisa, porque a gente estuda história, a gente sabe que a história vai apenas se repetindo. Não foi de uma hora para outra que chegou a ditadura na Venezuela”.
Era um momento em que o presidente e seu entorno estavam irritados com decisões do STF, como a liminar do ministro Alexandre de Moraes impedindo a nomeação de um amigo da família Bolsonaro, o delegado Alexandre Ramagem, para direção da Polícia Federal, ou o despacho do decano Celso de Mello encaminhando para análise da Procuradoria-Geral da República o pedido de parlamentares da oposição para que o celular de Bolsonaro fosse apreendido.
Naquele mesmo mês, segundo reportagem da revista Piauí, o presidente Bolsonaro de fato discutiu com ministros militares, como os generais Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), e os ministros juristas, André Mendonça (Justiça) e José Levi (AGU), como “intervir” para derrubar os ministros do STF, sob a justificativa de que o artigo 142 da Constituição permitiria às Forças Armadas destituir a Corte em caso de interferência indevida no Poder Executivo — uma interpretação da Constituição que é repudiada pela maioria dos juristas do país e pelo próprio Supremo.
Para a constitucionalista Eloísa Machado, coordenadora do projeto Supremo em Pauta na FGV Direito São Paulo, Toffoli e o STF “não saíram fortalecidos” do desafio de fazer frente a ameaças como essa, pois o ministro “passou boa parte do seu mandato ponderando e minimizando” as ações do Palácio do Planalto.
Ela crítica, por exemplo, o fato de Toffoli ter aceitado receber Bolsonaro em maio em seu gabinete quando o presidente, sem agendamento prévio, cruzou a pé a Praça dos Três Poderes, acompanhado de empresários, para reclamar de ações restritivas para conter o contágio de coronavírus no país, apesar de o plenário do STF já ter dado àquela altura seu aval para que Estados e municípios adotassem tais medidas.
Momentos como esse contrastaram com a conduta da presidente anterior da Corte, Cármen Lúcia, que evitava ao máximo encontros com o então presidente Michel Temer, a ponto de se retirar do velório do ministro Teori Zavascki, em janeiro de 2017, quando o emedebista chegou à cerimônia.
Em respostas a críticas como essa, Toffoli tem dito que buscou mostrar a Bolsonaro qual era o papel do STF. “O meu diálogo com o presidente Jair Bolsonaro sempre foi franco, sempre foi aberto, sempre foi respeitoso. Tive um diálogo com ele intenso nesse período exatamente no sentido de manter a independência dos Poderes e fazer ele compreender que cabe ao Supremo declarar inconstitucionais determinadas normas ou legislação, porque essa é a nossa função, e a dele é respeitar, e ele respeitou, ao fim e ao cabo”, afirmou o ministro em entrevista a jornalista na sexta-feira (04/09).
Para Eloísa Machado a resposta mais forte do Supremo a Bolsonaro veio apenas a partir da pandemia de coronavírus e foi algo que ocorreu à revelia da vontade de Toffoli, a partir de liminares (decisões individuais) de ministros que precisaram ser levadas rapidamente a plenário devido à urgência do tema.
Foi o caso do julgamento em que o Supremo garantiu aos Estados e municípios o poder de adotar medidas emergenciais contra a pandemia, como fechamento de comércios e de rodovias. Na ocasião, Toffoli também votou nesse sentido, mas ficou contra a proposta do ministro Edson Fachin de que os governos locais poderiam inclusive estabelecer quais seriam as atividades essenciais em suas cidades e Estados que não poderiam ser suspensas mesmo com a crise de coronavírus.
Essa decisão, que ganhou apoio majoritário na Corte, contrariou a tentativa de Bolsonaro de estabelecer como atividades essenciais no país, por exemplo, cultos religiosos e o funcionamento de casas lotéricas.
Inquérito das Fake News ou ‘do fim do mundo’?
Se por uma lado Toffoli assumiu uma postura política conciliadora, de outro, adotou como resposta a ataques diversos ao Supremo o chamado inquérito das Fake News, uma investigação iniciada em março de 2019 sem participação do Ministério Público e cuja condução foi distribuída a Alexandre de Moraes sem sorteio prévio entre os ministros da Corte.
A apuração passou a ser chamada por críticos de “inquérito do fim do mundo” devido ao amplo poder que deu a Moraes de investigar qualquer um que desagradasse ministros do STF.
A falta de delimitação clara sobre quem seria alvo da investigação, levou o partido Rede Sustentabilidade a entrar com uma ação contra o inquérito que chegava a compará-lo ao AI-5, ato institucional adotado em 1968 pelo regime militar que recrudesceu a ditadura no Brasil, com aumento da censura e do assassinato de opositores.
Ainda em 2019, o inquérito das Fake News permitiu a Moraes suspender uma investigação da Receita Federal que havia atingido o ministro Gilmar Mendes e censurar uma reportagem da revista Crusoé revelando acusações contra Toffoli feitas por um delator da Operação Lava Jato. Na ocasião, o ministro Marco Aurélio criticou publicamente o inquérito, enquanto o ministro Edson Fachin solicitou mais de uma vez que Toffoli pautasse a ação da Rede que pedia o fim da investigação.
Ele, porém, só levou a ação ao plenário mais de um ano depois, em junho de 2020, quando a intensificação dos ataques ao Supremo por apoiadores de Bolsonaro provocou uma união dos ministros e uma redução da resistência dentro da Corte ao inquérito — usado no primeiro semestre de 2020 também para determinar a prisão de apoiadores de Bolsonaro, como a ativista Sara Giromini (conhecida como Sara Winter), e a quebra de sigilo de empresários bolsonaristas, como Luciano Hang, dono das lojas Havan.
O julgamento acabou referendando a constitucionalidade do inquérito por dez votos a um (Marco Aurélio foi o único contra), embora tenha fixado alguns limites para a investigação. Apesar disso, a forma como essa apuração foi iniciada e conduzida criou mais uma “vidraça” para o STF receber críticas de abuso e de autoritarismo.
Para Estefânia Barboza, da UFPR, o inquérito foi importante para conter um processo de “erosão da democracia” a partir dos ataques orquestrados contra o Supremo nas redes sociais. Ela diz, no entanto, que teria fortalecido mais o STF se fossem abertos diferentes inquéritos com foco delimitado, que garantissem aos investigados o amplo direito à defesa.
“Poderiam ter feito (essas investigações) de outra maneira. É lógico que isso fragiliza a Corte”, afirma.
Para o constitucionalista Diego Werneck Arguelhes, o inquérito das Fake News é “uma medida de legalidade questionável” e “não deve ser normalizado”, apesar do julgamento do STF ter chancelado a investigação. Ele nota que o inquérito “começou como uma medida extremamente criticada, um fardo para Toffoli”, mas acabou “reconfigurado” como um iniciativa necessária de proteção do Supremo contra ataques autoritários.
“O cenário mudou após um ano e o inquérito talvez tenha sido positivo para Toffoli: se tornou uma das peças mais importantes da política nacional, com grande impacto sobre o que acontece em Brasília, e subitamente ganhou muito mais apoio do que tinha”, nota o professor.
Na sexta-feira (04/09), Toffoli defendeu mais uma vez a abertura da investigação. “Aqueles que estudaram a história do Brasil sabem e têm noção que não foi uma decisão fácil. Foi a decisão mais difícil da minha gestão a abertura do inquérito. Mas ali já vínhamos vivendo algo que vinha ocorrendo em outros países, o início de uma política de ódio plantada por setores que queriam, e querem, destruir instituições, que querem o caos”, justificou.
Fonte: BBC News