Duzentos anos atrás, quando o Brasil declarava sua separação de Portugal e iniciava sua história como país independente, um brasileiro nascia com a expectativa de viver, em média, só até os 25 anos.
O enorme território brasileiro era ocupado por estimados 4,7 milhões de pessoas — menos do que tem hoje a cidade do Rio de Janeiro.
A estimativa era provavelmente conservadora — o primeiro censo oficial só ocorreria em 1872 e não contabilizou a maioria dos povos indígenas, por exemplo.
Mesmo assim, o Brasil da época não estava nem entre os 20 países mais populosos do mundo. E quase toda a sua população era analfabeta.
Hoje, a nação que comemorou no dia 7 de setembro o bicentenário da Independência tem uma população 45 vezes maior e é a sétima mais populosa do mundo, segundo a ONU.
Esse crescimento deve continuar até pelo menos 2050, quando se estima que o número de brasileiros vá alcançar um pico de 231 milhões, 16 milhões a mais do que hoje. Depois, a expectativa é que a população brasileira comece a diminuir.
Essa é uma tendência que se repete em grande parte do mundo, mas que, no Brasil, tem ocorrido em um ritmo particularmente rápido e mais semelhante ao de países asiáticos do que o de europeus.
Salto de longevidade
Essa jornada da população brasileira é descrita pelo demógrafo José Eustáquio Diniz Alves no livro recém-lançado Demografia nos 200 Anos da Independência do Brasil e cenários para o século 21.
“A mudança mais impactante é o aumento da esperança de vida, que em 200 anos multiplicou por três, para os (atuais) 75 anos”, diz Diniz Alves à BBC News Brasil.
Esse salto reflete décadas de avanço no combate à mortalidade infantil e materna e nas condições de saúde e saneamento, apesar das mazelas do Brasil e da pobreza agora em curva ascendente.
“Em 1900, a expectativa de vida era de 29 anos no Brasil e 49 anos nos Estados Unidos (70% mais alta). Em 2019, os números se aproximaram bastante, com 75,9 anos no Brasil e 78,9 anos nos EUA (apenas 4% mais alta)”, escreve Diniz Alves no livro.
E essa expectativa poderia ter sido ainda mais alta se não fossem as perdas de vida causadas pela pandemia.
A população do Brasil na época da Independência
A composição étnica da população também sofreu grandes mudanças nesses 200 anos.
O Brasil é apontado como o país das Américas que mais recebeu africanos escravizados: 4,8 milhões de pessoas ao longo de quase três séculos.
Assim, um território que até 1500 era totalmente indígena começou a mudar, explica Diniz Alves.
Por volta de 1800, duas décadas antes da Independência, as primeiras estimativas indicavam que os indígenas eram apenas 8% da população total, de 3,3 milhões de habitantes. Essas contagens, no entanto, ignoravam muitas comunidades indígenas e são consideradas conservadoras.
Na mesma época, pessoas de origem europeia, mais concentradas nos centros urbanos, representavam 31% e a população de origem africana, fosse livre ou escravizada, era 61% do total.
A porcentagem de europeus aumentaria nas décadas seguintes para quase 40%, com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil e o início de uma migração mais acentuada de europeus de outras nacionalidades nas décadas seguintes — algo que, segundo historiadores, tinha por objetivo “branquear a população” após a abolição da escravidão.
Apesar disso, o censo de 1872, o primeiro da história brasileira, indicou que, dos quase 10 milhões de habitantes do Brasil, pessoas de origem africana continuavam sendo majoritárias: 42,8% da população era de pessoas africanas livres e 15,2%, de escravizadas.
Foi nessa época, também, que o ritmo de crescimento da população brasileira começou a se acelerar até o século 20, explica Diniz Alves.
“As taxas de mortalidade na virada do século começaram a cair, mesmo que modestamente, contribuindo para o maior incremento demográfico”, escreve o demógrafo.
Desse modo, a população brasileira foi tendo progressivos aumentos de tamanho: o censo de 1890, pouco depois da Proclamação da República, contabilizou 14,3 milhões de habitantes.
O grande salto, porém, viria em meados do século 20, explica Diniz Alves.
“O período de maior crescimento demográfico da história brasileira ocorreu nas décadas de 1950 e 1960, com média de 3% ao ano, não em função do afluxo de estrangeiros, mas, sim, por conta da queda das taxas de mortalidade — especialmente infantil — que propiciou grande aumento do crescimento vegetativo em um quadro de taxas de fecundidade ainda em altos patamares.”
Naquela época, as mulheres tinham, em média, 6,3 filhos cada uma. Uma taxa que caiu vertiginosamente até chegar à média de 1,7 atual.
Ritmo de envelhecimento ‘asiático’
A combinação de aumento na expectativa de vida com a queda no número de filhos por mulher resultou numa rápida mudança na estrutura etária do Brasil a partir dos anos 1970, de acordo com o demógrafo. Mais rápida, inclusive do que a de muitos países europeus e dos Estados Unidos.
A França foi o primeiro país em que, segundo Diniz Alves, os idosos viraram 7% da população, ainda em 1870. O índice francês dobrou para 14% em 1980 — mais de um século depois.
Já o Brasil, com uma estrutura demográfica mais jovem, só chegou a 7% de idosos recentemente, em 2012. Mas deve dobrar esse índice em 2031 — apenas 19 anos depois.
Tal ritmo de envelhecimento é visto também em países asiáticos como Japão, Coreia do Sul, Tailândia e China, que também tinham taxas de fecundidade altas até a década de 1960 e desde então vêm reduzindo rapidamente o número médio de filhos por mulher.
“O interessante é que, no caso do Brasil, não houve uma política populacional (como a China, com sua “política do filho único”). A fecundidade caiu por mudanças econômicas e culturais”, diz Diniz Alves à BBC News Brasil.
O Japão foi o país que chegou mais rapidamente à proporção de 14% de idosos na população (em apenas 23 anos, de 7% em 1971 para 14% em 1994) — já que a queda das taxas de fecundidade japonesas ocorreu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e a expectativa de vida ao nascer do país é alta.
Mas ele foi a exceção entre os países desenvolvidos a ter um envelhecimento da população tão rápido. De um modo geral, os países em desenvolvimento tiveram uma transição demográfica mais veloz, segundo diz Diniz Alves.
Mas o que isso significa?
“Eles dispõem de menos tempo para se adaptar à nova realidade demográfica. O Japão e a Coreia do Sul já conseguiram enriquecer antes de envelhecer. A China e a Tailândia já estão a caminho de uma renda per capita alta”, escreve o demógrafo.
Já o Brasil, depois de anos de crise econômica, “possui a renda estagnada e está a caminho de envelhecer antes de enriquecer. Em outras palavras, o Brasil ainda não resolveu os problemas típicos de uma sociedade jovem, como saneamento básico, educação básica, e precisará lidar com os problemas de uma sociedade superenvelhecida até os meados do século 21. (…) Será necessária muita criatividade”.
Em outros países da América Latina também se observa o mesmo fenômeno.
“Não somos uma jabuticaba nesse aspecto. A fecundidade caiu na Costa Rica até um pouco mais rápido do que no Brasil. E, em Cuba, a população deve cair pela metade no restante do século, por causa da baixa fecundidade e de haver mais gente saindo do que entrando no país”, explica.
1º bônus demográfico é janela prestes a se fechar
Segundo as previsões da ONU, o Brasil provavelmente ainda tem algumas décadas no atual primeiro bônus demográfico — ou seja, de um contingente grande de população jovem e economicamente ativa em relação ao grupo etário com mais inativos (como crianças e idosos).
Por volta da década de 2040, o grupo de pessoas de 15 a 64 anos alcançará seu pico e começará a cair.
A partir daí, quem vai crescer proporcionalmente é a faixa de brasileiros com mais de 60 anos.
O bônus demográfico dá a um país a oportunidade de aumentar a produção de bens e serviços.
No entanto, essa janela de oportunidade só ocorre uma vez na história de cada país, e dura entre 50 e 70 anos.
Segundo Diniz Alves, todos os países com altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) conseguiram aproveitar essa janela para aumentar as taxas de riqueza e elevar seu padrão de bem-estar geral, melhorando os níveis educacionais da população e da tecnologia que permite o aumento da produtividade.
O Brasil deve chegar ao final do século 21 com uma proporção maior de pessoas dependentes em relação às que estão em idade produtiva. Isso deve ter um impacto importante na Previdência social, no sistema de saúde e no mercado de trabalho.
O fenômeno será mundial: em 2100, segundo as projeções da ONU, o mundo terá apenas 1,7 adulto de 20 a 59 anos para cada idoso de 60 anos ou mais, na média.
No Brasil, essa taxa deve ser ainda menor, de 1,1 adulto para cada idoso.
De um modo geral, o número de pessoas em cada grupo de idade do Brasil nas últimas décadas foi aumentando e diminuindo em ondas bem marcadas, que determinaram o bônus demográfico (veja no gráfico abaixo).
– O grupo de 0 a 19 anos foi de 51,6% da população brasileira em 1950 para 40,8% em 1999 e deve chegar a 2100 perfazendo apenas 17,6% da população do país.
– As pessoas entre 20 e 39 anos eram 29% da população em 1950, 32,5% em 2019 e serão 19,8% em 2100.
– O grupo de 40 a 59 anos correspondia a 14,5% da população em 1950, e deve chegar a seu pico em 2040, quando corresponderá a 28,5% do total do país. Em 2100, serão 22,6%.
– Já os idosos de 60 anos ou mais, que eram menos de 5% da população em 1950, vão crescer até 2075, quando serão 37,6% da população, ou 79,2 milhões de pessoas.
“A partir de 2076, o grupo de idosos começará a diminuir em termos absolutos para 72,4 milhões de pessoas em 2100. Ainda assim, em termos relativos, será o único grupo que continuará crescendo proporcionalmente, tornando-se 40,1% da população total em 2100”, explica Diniz Alves.
Enquanto isso, o primeiro bônus demográfico, iniciado em 1970, deve se encerrar por volta de 2040, ou talvez um pouco mais cedo.
“A fase em que a demografia oferece um estímulo à economia aproxima-se de seu fim”, diz o demógrafo.
2º e 3º bônus como alternativas para o crescimento
Esse fenômeno demográfico traz consigo a urgência de que o Brasil aproveite ao máximo as décadas restantes de alto contingente de jovens em idade produtiva.
Mas, se o país não conseguir usar essa janela para enriquecer e melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, o que é possível fazer?
Segundo Diniz Alves, existem as possiblidades de um 2º e um 3º bônus, que acontecem de maneira independente das mudanças na estrutura etária da população.
Para conseguir o chamado 2º bônus, seria preciso elevar as taxas de poupança e investimento dos cidadãos para aumentar a produtividade econômica. É, por exemplo, algo que a China fez, desde os anos 1980, quando sua renda per capita era 17 vezes menor do que a do Brasil.
“Com altas taxas de poupança e investimento, a China garantiu um expressivo crescimento econômico nos últimos 40 anos. (…) Com uma renda per capita US$ 22,6 mil em 2022, a China já tem um rendimento médio 25% superior ao brasileiro e mantém taxas de poupança e investimento, respectivamente, acima de 40% do PIB (Produto Interno Bruto) na década de 2020”, escreve o demógrafo.
“O Brasil, ao contrário, não conseguiu superar as baixas taxas de poupança e investimento prevalecentes na década de 1980 (…) e chegou em 2022 com taxa de poupança de somente 17,4% do PIB e taxa de investimento de 18,7% do PIB”, compara.
“Não é de se estranhar que a renda per capita tenha apresentado variação muito pequena nos últimos 42 anos e que esteja estagnada na última década.”
Em casos em que o 1º e o 2º bônus não sejam bem aproveitados, um 3º bônus demográfico envolveria inserir a população idosa no mercado de trabalho, caso haja condições justas e favoráveis para fazê-lo.
O Brasil já tem um contingente crescente de idosos buscando a reinserção profissional, segundo dados de 2019 do Ministério da Economia. Mas, em um contexto de crise econômica, eles por enquanto têm ficado com os postos de trabalho mais precários.
Este texto foi originalmente publicado em BBC News