O Brasil ultrapassou oficialmente a marca de 150 mil mortos pela covid-19 neste sábado (10/10), segundo o Ministério da Saúde. Mas, nas estimativas de especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, esse número já havia sido alcançado semanas atrás.
Eles assinalam que o país enfrentou, desde o início da pandemia, uma intensa subnotificação de casos e mortes por Sars-Cov-2, nome oficial do coronavírus.
A primeira morte confirmada pela doença é um exemplo das dificuldades relacionadas às notificações do vírus no país. A vítima, uma mulher de 57 anos, morreu em São Paulo em 12 de março, um dia após ser internada.
No entanto, somente mais de três meses depois, em 28 de junho, foi descoberto que ela havia sido vítima da covid-19. A informação, segundo a pasta, foi revista após exames laboratoriais. Até então, a morte de um homem em 16 de março, também em São Paulo, era considerada a primeira no país.
Assim como esse caso, milhares de pessoas também podem ter morrido em decorrência da covid-19 nos últimos meses, mas seus óbitos foram registrados por outros motivos, dizem especialistas.
Entre os indícios de subnotificações estão o aumento de mortes por causas respiratórias e a baixa testagem no país no início da pandemia.
Uma das expectativas é de que os números sejam atualizados futuramente, para que seja possível compreender a dimensão da pior pandemia da história recente — que já matou em todo o mundo, segundo dados oficiais, mais de 1 milhão de pessoas.
Mais de 150 mil mortes no Brasil
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que não há dúvidas de que o Brasil já ultrapassou a marca das 150 mil mortes por covid-19, ao menos desde o fim do mês passado.
“Com certeza já passamos dessa marca há algumas semanas. Um dos motivos, por exemplo, é o atraso de notificação. Em regiões mais afastadas, pode demorar mais de uma semana para que essas notificações cheguem ao Ministério da Saúde”, explica o epidemiologista Márcio Sommer Bittencourt, pesquisador do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da Universidade de São Paulo (USP).
Os números encaminhados ao Governo Federal são levantados pelas Secretarias Estaduais de Saúde, que por sua vez dependem dos registros de casos e mortes divulgados pelos seus municípios.
Mas o atraso nas notificações de diversos cantos do país é somente um dos diferentes motivos por trás das dificuldades referentes aos dados de covid-19 no Brasil.
Bittencourt assim como outros especialistas ouvidos pela reportagem, relata que muitos pacientes com a covid-19 podem ter sido diagnosticados com outras enfermidades, principalmente no começo da pandemia.
“Se um paciente for internado no domingo e o médico achar que é pneumonia, o atestado de óbito dele estará como pneumonia. Ainda que possa ser covid-19, se não fizer o teste ou não apontar a suspeita, isso não vai ser informado nas notificações oficiais sobre o coronavírus”, declara Bittencourt.
No início da pandemia, acreditam os especialistas, era mais comum que médicos descartassem a possibilidade de covid-19. Com o avanço do coronavírus pelo país, isso diminuiu.
Síndrome Respiratória Aguda Grave
“Desde o início da pandemia, houve muito mais mortes por problemas respiratórios e pneumonia em São Paulo, por exemplo, que em comparação a anos anteriores. Não podemos garantir que seja apenas covid-19, mas é uma situação incomum e justamente na cidade em que houve os primeiros registros oficiais do vírus”, comenta Bittencourt.
Dados do último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde mostram que óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) não especificada totalizaram 57.292 até 3 de outubro.
Segundo dados do Boletim InfoGripe, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mais de 99% dos óbitos de SRAG com “resultado laboratorial positivo para algum vírus respiratório” são causados pelo novo coronavírus.
Domingos Alves, responsável pelo Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, afirma que uma das dificuldades para a notificação dos casos e mortes é o fato de o governo federal ter distribuído milhares de testes rápidos, “que têm baixa efetividade quando comparados com os testes moleculares (RT-PCR)”.
“Há uma baixa confiabilidade principalmente no quesito falsos negativos”, explica Alves.
’18 milhões de infectados’
Projeções da equipe liderada por Alves mostram que o total de infectados no Brasil já teria superado 18 milhões, quase quatro vezes o número oficial de 5 milhões.
As estimativas foram calculadas a partir de uma modelagem reversa, baseada no número oficial de óbitos do Brasil e na taxa de mortalidade da Coreia do Sul, ajustada para a pirâmide etária brasileira e para o tempo de internação médio entre a confirmação do caso e o óbito, de dez dias.
A Coreia do Sul foi usada como parâmetro porque é um dos países que mais têm conseguido fazer testes em massa. Sendo assim, sua taxa de mortalidade seria “mais confiável”, ou seja, mais próxima da realidade.
Já em relação aos mortos, Alves calcula que o número de óbitos no Brasil já tenha ultrapassado os “200 mil”.
Parte da explicação, segundo ele, se deve à “Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) não especificada”.
De acordo com o Ministério da Saúde, o termo aplica-se a “casos de SG ou de SRAG para os quais não houve identificação de nenhum outro agente etiológico OU que não foi possível coletar/processar amostra clínica para diagnóstico laboratorial, OU que não foi possível confirmar por critério clínico-epidemiológico, clínico-imagem ou clínico”.
Alves supõe que a maior parte desses casos tende a ser de covid-19, mas que, por motivos diversos, incluindo falta de testagem adequada, não foi identificado como provocado pelo vírus.
Mudanças de critérios
Nos primeiros meses da pandemia, os casos de covid-19 eram confirmados somente por meio de exames laboratoriais.
No fim de junho, porém, o Ministério da Saúde definiu que também devem ser considerados como casos de coronavírus aqueles de pacientes com síndrome gripal ou SRAG que tenham tido contato próximo ou domiciliar com alguém que teve a covid-19, confirmada em teste laboratorial.
Pacientes com determinadas alterações em tomografias, que podem ser associadas aos danos causados pelo coronavírus, também passaram a ser considerados casos da doença.
As novas definições, segundo o Ministério da Saúde, foram criadas com o objetivo de facilitar o diagnóstico da covid-19 e diminuir a transmissão do vírus.
Por meio das novas definições, muitas regiões podem investigar casos ou mortes por coronavírus em meses anteriores.
Após as alterações dos critérios, Manaus (AM) reclassificou 345 mortes, ocorridas entre abril e maio, como covid-19. Uma das primeiras cidades gravemente afetadas pelo vírus no país, a capital fez uma força-tarefa que identificou mortes pelo Sars-Cov-2 por meio de análise de antigas tomografias de pulmões ou por critério clínico epidemiológico — quando o paciente teve contato com alguém infectado pelo vírus.
O sanitarista Christovam Barcellos, da Fiocruz, comenta que a limitação do diagnóstico da covid-19 a exames laboratoriais, no início da pandemia, impediu a descoberta de muitos casos da doença no Brasil.
“O sistema de saúde brasileiro é gigantesco. Então, a gente imagina que muita gente não teve acesso ao exame e, por isso, muitos casos de covid-19 não foram diagnosticados corretamente”, diz o sanitarista.
Barcellos comenta que apesar dos novos critérios, o diagnóstico da covid-19 continua difícil em muitos lugares, principalmente em regiões mais afastadas ou mais pobres. “As pessoas precisam buscar um laboratório para fazer o exame de sorologia ou um serviço médico com bons equipamentos para fazer um exame de imagem de boa qualidade. Infelizmente, nem todos os lugares do Brasil têm isso”, diz.
O sanitarista ressalta que populações rurais ou de periferias de grandes cidades costumam enfrentar mais dificuldades para serem diagnosticadas com a doença causada pelo coronavírus, por terem menor acesso a atendimento médico em meio à pandemia.
“Nos casos de morte, essas populações rurais ou mais pobres em geral sofrem ainda mais. O que a gente constatou é que muitas pessoas morreram sem assistência médica em casa, sem qualquer serviço de emergência”, diz o especialista. “Essas pessoas que morreram em suas residências provavelmente não foram diagnosticadas com a covid-19, porque os corpos podem ter sido levados diretamente ao serviço de verificação de óbito, sem passar por exames laboratoriais.”
Um dos Estados mais afetados logo no início da pandemia, o Amazonas teve o maior crescimento de mortes em casa: aumento de 149% em relação ao mesmo período do ano passado no período de 16 de março a 30 de abril, uma das fases mais agudas da pandemia na região, segundo o Portal da Transparência do Registro Civil.
Também entre meados de março e o fim de abril, os números de mortes em casa cresceram em média 10,4% no país, conforme os dados dos cartórios.
“Muita gente pode ter morrido nessas regiões mais pobres e, oficialmente, os problemas respiratórios podem ter sido considerados a causa. Mas poderiam ser casos de covid”, declara Barcellos.
Projeções
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que se os Estados brasileiros reavaliarem casos antigos será possível, daqui a alguns meses ou anos, ter uma melhor dimensão das vítimas da covid-19 no país.
Professor titular de Clínica Médica da Universidade de São Paulo (USP), o epidemiologista Paulo Lotufo ressalta que inúmeros países tiveram dificuldades para notificações de casos de Sars-Cov-2, principalmente por se tratar de um vírus até então desconhecido.
“O coronavírus não preparou laboratórios e médicos. O que existiu foi um esforço imenso para fazer o melhor possível em todo o mundo”, diz Lotufo. “Isso ainda contando com governos jogando contra, como o do Brasil”, completa o médico, em referência à conduta do presidente Jair Bolsonaro, que por diversas vezes minimizou a covid-19 e as mortes causadas por ela.
Para Lotufo, os dados sobre a covid-19 no Brasil, desde o início da pandemia, devem ficar mais claros ao longo do tempo. “Quando falamos de mortos, o sistema ainda é incompleto, porque o sistema de mortalidade no Brasil existe há muito tempo para doenças crônicas, não para uma epidemia”, declara o especialista à BBC News Brasil.
“Sabemos que não vamos descobrir todos (os óbitos por covid-19 que não foram notificados), até porque vários não têm a documentação necessária. Mas vamos ampliar bastante os números de casos descobertos. Aos poucos, vamos juntando as informações de vários dados (para chegar a números da pandemia)”, acrescenta o epidemiologista.
Os pesquisadores avaliam que as subnotificações reduziram ao longo dos meses da pandemia, por meio de informações adquiridas sobre o vírus e com os novos critérios de definição sobre casos da doença. “Apesar de estarmos melhorando, nunca vamos conseguir chegar a 100% de notificação dos casos”, opina o epidemiologista Márcio Sommer Bittencourt.
“Há várias coisas que impedem que todos os casos sejam descobertos, como possíveis falhas no material colhido nos exames e limitações de equipamentos em municípios do interior (como em casos de aparelhos para tomografias)”, ressalta Bittencourt.
Em relação aos registros oficiais de 150 mil mortes em decorrência da covid-19, os especialistas consideram o fato como um importante alerta sobre as consequências da doença. “Esses grandes números são coisas simbólicas. Se temos 150 mil ou 160 mil mortos, as tragédias são grandes do mesmo jeito. O impacto de saúde é muito grande”, declara Bittencourt.
Nas últimas semanas, dados oficiais têm indicado que, no geral, a curva de novos casos e óbitos no Brasil vem caindo – ainda que cada Estado ou região apresente realidades diferentes.
Mas Alves, do LIS, destaca que os números brasileiros ainda são preocupantes. “A sensação é que a epidemia já acabou no Brasil, ainda que nossos números, seja de casos confirmados ou de mortos, continuem em um patamar elevado – e muito acima do de países que estão reimplantando medidas de restrição neste momento”, declara.
“Enquanto parte do mundo discute a retomada do lockdown ou já chegou a confinar parte de sua população por causa da segunda onda, aqui estamos falando de flexibilização”, acrescenta Alves.
Fonte: BBC News