Tudo começou com uma saída que se tornou estranha. As pessoas riam de mim ou perguntavam se eu — aos 14 anos — estava bêbada. Não estava.
Nos anos seguintes, comecei a notar outras peculiaridades. Minhas mãos começaram a tremer e escrever ficou cada vez mais difícil.
Os médicos não conseguiam me dar nenhuma resposta, muitas vezes insinuavam que eu estava exagerando. Oito anos se passaram até que eu fosse encaminhada para o departamento de neurologia do hospital.
Meus sintomas estavam piorando, mas, apesar disso, não estava preparada para ouvir o que estava por vir.
“Você tem uma condição neurológica muito rara chamada ataxia”, disse o médico.
Este é um termo que engloba um grupo de distúrbios que afetam a coordenação, o equilíbrio e a fala, e cujos sintomas e gravidade variam dependendo do tipo de ataxia em questão.
Uma em cada 50 mil pessoas tem ataxia. O meu é um tipo chamado AOA2, que afeta cerca de 3 em um milhão.
Eu não conseguia entender o que o médico estava me dizendo. Como isso estava acontecendo? Por que eu?
Ainda hoje acordo na esperança de que os últimos 6 anos desde que tive essa conversa foram fruto da minha imaginação, algum sonho estranho que queria me alertar que não temos garantia de nada.
Eu nunca consegui jogar e pegar uma bola, nunca consegui andar de bicicleta e era péssima nos esportes, mas meu viés subconsciente me dizia que isso acontecia porque eu ainda era criança, não porque tinha uma condição neurológica rara.
Às vezes sinto que minha vida é uma bomba-relógio, imprevisível e errática. Não posso prever como vou me sentir a cada dia, se minha fadiga será pior do que no dia anterior ou se minha névoa cerebral vai deixar meus pés mais instáveis.
Mas todos os dias quando acordo e ainda sou capaz de andar, só sinto gratidão. Ter uma doença rara consome tudo, é uma montanha-russa da qual não consigo sair mesmo que queira.
O que é ataxia?
A ataxia é uma condição neurológica que afeta o cerebelo, também conhecido como cérebro pequeno.
Embora pequeno, o cerebelo é muito importante, controlando as funções humanas básicas, como equilíbrio, coordenação, fala e movimento dos olhos.
Os sintomas da ataxia podem se desenvolver em qualquer idade e podem ser causados por vários motivos.
Por exemplo, a ataxia pode ser desenvolvida devido a uma lesão na cabeça, infecções virais, abuso de drogas ou álcool ou como consequência de genes defeituosos herdados dos pais.
Há muitos tipos de ataxia, mas o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (onde nasci) a divide em três categorias gerais:
- Ataxia adquirida, na qual os sintomas se desenvolvem como resultado de trauma, acidente vascular cerebral, esclerose múltipla, tumor cerebral ou outros problemas que danificam o cérebro ou o sistema nervoso;
- Ataxia cerebelar idiopática tardia (ILOCA, na sigla em inglês), na qual o cérebro se torna progressivamente danificado por razões desconhecidas;
- Ataxia hereditária: em que os sintomas se desenvolvem lentamente ao longo do tempo e são causados por defeitos genéticos (a mais comum neste grupo é a de Friedreich).
Os sintomas da ataxia AOA2, que é hereditária e da qual sofro, tendem a aparecer a qualquer momento entre o início e o final da adolescência.
Durante esse período, o equilíbrio e a coordenação começam a se deteriorar. Os pacientes também podem sentir movimentos involuntários e tremores.
Além dos sintomas físicos, há outros invisíveis, mas muito mais tangíveis, como fadiga e nevoeiro mental. Esses sintomas são igualmente graves e podem exacerbar doenças físicas.
Devido à natureza rara da AOA2, não há tanta pesquisa em comparação com outras ataxias mais comuns. Uma cura para AOA2 é meu sonho, mas até agora minhas preces não foram atendidas.
A história de Marina
Em 28 de fevereiro de 2023, foi feito um grande avanço na pesquisa médica: a agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos, FDA (na sigla em inglês), a aprovou o primeiro medicamento para tratar a ataxia de Friedriech, chamado omaveloxolona.
Esta droga atua na resposta celular ao estresse oxidativo, melhorando a função celular e reduzindo a inflamação.
Embora por enquanto seu uso esteja aprovado apenas nos EUA (faltam uma série de etapas até ser liberado em outros países), a notícia trouxe esperança para os pacientes com ataxia de Friedriech e suas famílias.
Marina é minha amiga. Ela vive na Espanha, onde trabalha como médica da família e tem uma bolsa de pesquisa para fazer doutorado na área de neurociência. Ela tem ataxia de Friedriech.
“Meus sintomas começaram depois de usar um colete para escoliose por dois anos”, ela conta.
“Sempre fui muito ágil, mas de repente não era natural eu correr, me abaixar, descer escadas… E não entendia o por quê. Me enganava um pouco dizendo que era consequência de ter usado o colete por tanto tempo e não ter feito muita atividade física.”
“Lembro que me inscrevi na aula de spinning com minha irmã, que sempre foi mais desastrada que eu, e eu não conseguia acompanhar nem ficar em pé na bicicleta, e ela conseguia… lembro que cheguei em casa nesse dia e comecei a chorar”, ela conta.
O diagnóstico de Marina veio quando ela tinha 19 anos, ao consultar um neurologista por recomendação de seu professor de clínica médica, que notou sua falta de reflexos enquanto a ensinava a examiná-los em outras pessoas.
“Embora eu soubesse que o que estava acontecendo comigo não era normal, pensei que a neurologista ia me dar um comprimido, e eu voltaria a ser como era antes, para poder descer correndo as escadas, pular, etc. Mas ela me disse que muito provavelmente seria ataxia de Friedreich. Eu nunca tinha ouvido falar, e quando perguntei o que era, ela me disse: ‘O bom é que não afeta a cabeça'”, lembra Marina.
“Não entendi na hora. Mas quando cheguei na universidade e procurei o termo na internet, fiquei chocada: todos os sintomas que apareciam ali, inclusive problemas cardíacos, eu tinha. Foi um dos piores dias da minha vida”, afirma.
No entanto, Marina é uma pessoa contagiantemente positiva e tem esperança no futuro.
“Logo mudei a maneira de ver isso. Retomei a natação que fazia quando criança, continuei com o atletismo, embora no começo eu quisesse parar, e o diagnóstico me aliviou no sentido de que agora eu podia ter uma explicação para o que estava acontecendo comigo.”
“Tenho piorado nesses anos, e quando havia perdido completamente a esperança de ter uma vida meio normal, aprovaram pela primeira vez um tratamento.”
“E embora ainda vai levar tempo até trazê-lo para a Espanha, e teremos que lutar para que o financiem, é uma grande esperança”, diz Marina.
Doenças raras e luto
Quando me perguntam sobre como é ter uma condição degenerativa, acho que descrever como um processo de luto resume perfeitamente como me sinto.
Perder lentamente a capacidade de fazer as coisas que você fazia naturalmente é devastador.
Cinco anos atrás, eu podia segurar uma xícara de chá com as mãos. Também conseguia escrever, conseguia me levantar sem ser atormentada pela ansiedade e apreensão por medo de cair.
Ter uma doença rara envolve um enorme peso emocional, não é apenas a dor e a frustração de perder partes do seu antigo eu, mas também o luto pelo futuro que você planejou, as esperanças e os sonhos que você já teve.
Viajei por muitos lugares desde o meu diagnóstico, o que me deu confiança e otimismo. Tenho aprendido a me adaptar a esta vida que nunca vi chegar.
No ano passado fui para a República Dominicana, onde pude realizar um sonho que estava na minha lista de desejos: nadar com golfinhos. Neste ano, fui para Cingapura e Tailândia.
Viajar com uma deficiência nem sempre é fácil. As barreiras físicas e sociais costumam ser muitas.
Mas seis anos depois, estou aceitando o fato de que minha doença não define tudo, que ainda há maneiras de aproveitar as coisas, mesmo que seja um pouco diferente do que eu imaginava.
E estou aceitando que vou precisar de ajuda, reconhecendo meu cansaço e, sobretudo, não me sentindo envergonhada quando simplesmente não consigo fazer algo.
- Texto originalmente publicada em BBC News