O coronavírus mudou a rotina das pessoas no mundo todo, mas, para os profissionais da saúde, os impactos são ainda maiores. Na linda de frente da pandemia, muitos estão se contaminando e colocando não só suas vidas, mas de todos da família em risco para salvar quem eles ao menos conhecem.
Um boletim divulgado esta semana pelo Comitê Gestor de Crises do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) mostrou que 75 enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem morreram devido ao Covid-19. O número já é maior do que casos vistos entre os profissionais da área na Itália (35) e na Espanha (quatro), que estão entre os países mais acometidos pelo coronavírus. Isso sem contabilizar os dados de outros profissionais da saúde, como médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, técnicos de radiologia e tantos outros que trabalham em hospitais e clínicas e que estão lutando nesta pandemia.
Por isso, a partir de hoje, em uma homenagem a esses profissionais, CRESCER lança o especial #MãesnaSaúde para contar história de guerreiras que estão no front, na luta diária para salvar vidas, enquanto muitas vezes cuidam dos seus filhos a distância.
Geórgia Alcântara Alencar Melo, 35 anos, é enfermeira, trabalha com hemodiálise e atende pacientes em hospitais de toda a rede pública municipal de Fortaleza, no Ceará. Mas ela também é mãe de duas meninas — uma de 2 e outra de 9 anos. O marido é médico e também trabalha na área da saúde — o que deixa a família ainda mais preocupada. Em entrevista à CRESCER, Geórgia contou como tem sido sua rotina desde a chegada do vírus, seus medos e angústias.
“Desde o início da pandemia, fico impressionada cada vez que uma pessoa comenta que não tem nada para fazer. Para mim, tem sido exatamente o contrário. Nunca trabalhei tanto na minha vida, pois muitos pacientes que contraem Covid-19, acabam desenvolvendo disfunção renal — mesmo aqueles que não tinham nenhuma alteração renal anterior, passam a necessitar de diálise. Então, o número de procedimentos aumentou muito, apesar de a quantidade de funcionários permanecer a mesma. Apenas um atendimento de diálise dura 4 horas. Então, passo 4 horas ao lado de um paciente com Covid dentro de uma sala fechada. Isso me preocupa muito. Antes de entrar no quarto, preciso vestir avental, máscara, luvas, touca e protetor ocular, que parece um capacete. A gente brinca no trabalho que parecemos astronautas! Para chegarmos próximos a um paciente, precisamos estar paramentados, e a cada atendimento, é preciso trocar toda a roupa. A porta também precisa estar fechada. Como não há ventilador, ar condicionado ou ventilação — já que atendo a rede pública — o calor incomoda muito. Derretemos dentro da roupa, mas esse não é o único problema. Psicologicamente, também é muito difícil. A gente precisa se preparar mentalmente antes de cada turno de trabalho, pois sabemos que aquelas pessoas precisam da gente.
A maioria dos pacientes (cerca de 85%) já está intubado. Isso porque, geralmente, a descompensação renal vem após a respiratória — a não ser aqueles que já possuem problemas renais crônicos e pegou o Covid posteriormente. Então, costumo receber os pacientes sempre muito debilitados. Buscamos fazer o melhor atendimento possível, mas sabemos que, por conta da precariedade da quantidade de EPI’s na rede pública, por vezes, é necessário limitar a frequência com que se entra no leito do paciente. Afinal, cada entrada significa uma nova vestimenta. O que percebo também é que como as portas precisam estar fechadas, muitas vezes os pacientes graves acabam indo a óbito e só se percebe depois, pois é impossível ter alguém no quarto por 24 horas. No nosso grupo são vinte técnicas. Cinco delas já se contaminaram, mas, Graças a Deus, todas estão recuperadas. Por outro lado, é impossível não sentir medo das consequências que esse vírus pode trazer. Aqui em Fortaleza, do lado de fora das UPAS, foram montados espaços para a colocação de corpos, já que os necrotérios não estão dando conta. Então, você está vendo aquilo o tempo todo. São carros de funerária chegando e saindo a todo momento enquanto você trabalha.
Já em casa, é um verdadeiro ritual, assim como no hospital. Já separei três mudas de roupa e só uso elas para trabalhar. Saio de casa com o celular já embalado no plástico filme, o cabelo amarrado e com touca. Antes de descer do carro, no hospital, já coloco a máscara e uma primeira luva, que é como se fosse a minha pele. Fico com ela durante todo o tempo que permaneço no trabalho e, quando preciso fazer um procedimento, coloco outra luva em cima daquela. Ao lado do paciente, uso toda a paramentação adequada e, antes de ir embora, tomo banho, troco toda a roupa e coloco uma nova luva. Depois de abrir a maçaneta do carro, descarto a luva e coloco outra. Quando chego na garagem de casa, higienizo todo o carro, caso minhas filhas precisem entrar nele. Ao entrar pela porta de casa, fico completamente nua. Coloco toda a minha roupa dentro de uma bacia com desinfetante e deixo de molho. Antes das minhas filhas se aproximarem, vou correndo para o banheiro tomar banho. Uso papel higiênico, que deixo do lado fora, para abrir a maçaneta. Esfrego bem o meu rosto, que é o local que fica mais exposto e certamente entra em contato com o vírus. Lavo pedacinho por pedacinho do meu corpo. Uso a toalha apenas uma vez e já coloco para lavar. Passo cotonete no ouvido e faço lavagem nasal. Todo esse ritual, do momento em que chego em casa até poder abraçar minhas filhas, demora 2 horas, todos os dias.
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Eu desafio qualquer pessoa da área da saúde a dizer que está bem mentalmente, porque não é fácil. Não é fácil ver as pessoas se arriscando na rua, enquanto estamos dando tudo o que podemos, porque sabemos que elas serão nossos futuros pacientes. Mas, o que me segura é a certeza de que Deus nunca abandona. Minhas filhas estão em casa, sem aula. A mais nova, inclusive, não vai retornar. A gente entende que o melhor a fazer por ela, nesse momento, é não expô-la até o final do ano. Quanto a mais velha, ainda não decidimos. Tenho uma pessoa que me ajuda em casa, ainda bem, pois, preciso trabalhar. Eu acho que o futuro depende muito e exclusivamente de cada um de nós. As pessoas precisam se sensibilizar e permanecer em casa, seguindo todas as recomendações. Mas, infelizmente, acho que elas só vão começar a ter noção da real necessidade quando verem pessoas próximas infectadas. E como será o meu Dia das Mães? Vai ser fortalecendo minha ‘igreja doméstica’, ao lado de minha duas filhas e de meu marido, em casa.”
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FONTE: REVISTA CRESCER