Conheça a história da Rosineide e da Débora, que tiveram que andar na contramão do preconceito para utilizar os benefícios da cannabis medicinal
Débora Almeida da Silva tem 10 anos e é autista. Ela foi adotada pela Rosineide Almeida da Silva, hoje com 54 anos, quando tinha apenas dois meses de vida. A mãe conta que na época da adoção, não sabia que a filha era especial, e quando descobriu, mal sabia o que era autismo.
Quando Débora era menor, tinha que ficar em casa o tempo todo, pois os vizinhos tinham medo dela com seus filhos, pois a menina era muito agitada e agressiva.
“Os pais logo colocavam seus filhos para dentro quando viam a minha filha, ou me avisaram para que ela entrasse” ressalta Rosineide.
Até a própria família se afastou “Não ia a festas, a família não queria nem que a gente visitasse, ficamos excluídas.” Ressalta Risoneide.
Mãe solteira, negra e periférica, o sonho dela era dar uma qualidade de vida melhor para a filha.
O Transtorno de Espectro Autista (TEA) é um transtorno neurológico que causa déficit na comunicação social, que pode envolver dificuldades com a socialização, conversa e comunicação não verbal.
Também gera um déficit no comportamento, como movimentos repetitivos e interesses restritivos. Na maioria das vezes, autistas que têm certa deficiência intelectual, podem não ter comportamentos repetitivos e vice versa.
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) uma em cada 160 crianças têm TEA. Não há um número oficial de pessoas autistas no Brasil, mas a estimativa é que sejam cerca de 2 milhões. No entanto, uma lei foi sancionada no ano passado para que pessoas com o transtorno sejam contabilizadas pelo IBGE já em 2020.
O óleo de CBD
Débora vivia dopada de remédios, mas não adiantava muito. Rosineide conta que ela só dormia com um medicamento chamado Risperidona, que causa inúmeros efeitos colaterais, que podem ir até a problemas de visão a osteoporose.
Também tinha várias convulsões diárias, que deixava a mãe desesperada. Foi quando começou a participar de grupos e associações de autismo, que descobriu o óleo de canabidiol (CBD). Ela passou a conhecer depoimentos de várias outras mães que mostraram uma melhora progressiva nas suas crianças.
“Uma mãe postou (em um dos grupos sobre autismo) que estava vendendo o óleo, e eu fiquei louca, logo liguei para ela. Eu não entendia nada do que era CBD, ou o que era THC, eu simplesmente queria testar o óleo na minha filha.” Ressalta Rosineide.
O uso da cannabis para o tratamento de autismo começou depois que foi comprovado a eficácia do óleo para tratar epilepsia refratária. Embora sejam síndromes diferentes, cerca de 30% dos autistas também apresentam epilepsia.
As pesquisas são recentes, ainda não foi comprovado a eficácia da cannabis para autismo, mas diversas mães relatam uma diminuição significativa nos sintomas, auxiliando também na diminuição dos remédios.
Resultados rápidos e satisfatórios
Foi o caso da Débora. Rosineide conta que no primeiro dia que deu o óleo de canabidiol para a filha, logo não precisou dar o Risperidona para dormir. “Eu não dei o remédio justamente porque ela dormiu, coisa que não fazia sem ele” ressalta.
Hoje, Débora é mais calma, o cognitivo dela melhorou e ela aprendeu até a ler e escrever. A mãe relata que as convulsões também diminuíram significativamente, agora raramente a menina tem crises. “Apesar da maioria das pessoas discordar de mim, mas eu sempre apostei no óleo, vi o resultado e não ia desistir” conclui.
Plantando o próprio remédio
Rosineide relata que conseguir o óleo não era fácil, sempre tinha algum problema. Por ser ilegal no Brasil, muitos fornecedores tiravam proveito e cobravam valores sempre diferentes e cada vez mais caro. Sem contar que não era possível saber se teria remédios no próximo mês, pois o fornecedor não garantia.
“Fora que você não sabe como foi plantado, se levou agrotóxico, se tem mofo, pesticida, não sabe a porcentagem de THC e CBD. A gente arrisca a dar uma coisa para o nosso filho sem saber o que tem realmente ali dentro. A gente compra no escuro.” Desabafa.
A mãe passou por várias associações de cannabis medicinal, onde aprendeu muito sobre a planta, os tipos, as cepas e até as técnicas de cultivo e extração. Foi em uma das entidades que ela conheceu algumas mulheres que passavam pelo mesmo problema para comprar cannabis.
O grupo de mães começou a se encontrar com frequência, principalmente depois de todas saírem da associação por conta de algumas divergências. Foi em um dos encontros que tiveram a ideia de plantar. Elas já sabiam como fazer, então por que não?
As mulheres, que juntas formaram o coletivo Mães Independentes, plantaram cannabis de forma ilegal até o começo desse ano (2020), quando cada uma obteve o salvo-conduto, que autoriza judicialmente o plantio de cannabis para fins medicinais.
Juntas, fizeram uma vaquinha e compraram todas as ferramentas para fazer o cultivo e a extração. As mães também contam com a ajuda da Dra Virgínia Carvalho, que faz a análise do óleo para elas. A farmacêutica faz parte da associação FarmaCannabis, que auxilia pessoas que cultivam a erva.
Atualmente, pelo menos sete mil pessoas utilizam a cannabis medicinal para tratar alguma doença, e o número só cresce. O único produto à base de canabidiol (CBD) custa mais de dois mil reais, por isso, muitos buscam na justiça o custeamento do remédio pelo governo ou o direito de cultivar.
Em 2018 foram 4.236 pedidos para o plantio no Brasil para 34 especialidades diferentes. Recentemente, o estado do Rio de Janeiro autorizou o cultivo de cannabis por associações, a fim de estimular as pesquisas e também ajudar famílias com informação e tratamento.
Rosineide conta que não se arrepende de ter plantado ilegalmente, Hoje, ela faz o próprio remédio da filha. “Pela saúde dos nossos filhos, decidimos viver na ilegalidade, plantar e arriscar” complementa.
Lidando com o preconceito
A mãe conta que nunca escondeu para ninguém que dava cannabis para a filha. Falou para os médicos, para a família, para os vizinhos, e até na igreja que frequenta, sem se importar com os olhares que recebia.
“Eu também tinha preconceitos, aos 54 anos não me imaginava plantar maconha. Se alguém me dissesse, eu não acreditaria que hoje estaria plantando maconha para a minha filha. E estou aqui, defensora e ativista da cannabis.”
Rosineide lembra que quase foi expulsa de uma ONG por causa disso. Ela levava a Débora para fazer fisioterapia todas as semanas, e as outras mães vendo o avanço progressivo da menina, queriam saber o que ela dava para a filha. Quando a presidente da organização soube que Rosineide falava sobre maconha, a proibiu de citar a erva na ONG, até tentava a assustar, dizendo que ela iria ser presa por causa disso.
O neurologista da sua filha também a repreendia quando falava sobre cannabis. “Ele dizia: ‘não diga esse nome na frente da menina, maconha, não fale esse nome!’ Mas como se este é o nome popular? Se fosse outra planta eu dava para a minha filha, mas foi a maconha, e eu vou defender isso” complementa.
Para os religiosos, a sua resposta é: se Deus criou todas as coisas, ele também criou a cannabis, portanto, ela não é uma droga maldita.
Perseguição e Racismo
“Eu sou negra, pobre, periférica, mãe solo e aí que o preconceito é maior (…)O preconceito tem cor e endereço e todo negro é visto como usuário e traficante. O branco pode fumar à vontade, no seu apartamento, no seu condomínio e ninguém diz nada, mas o negro é perseguido.” Conclui.
Um levantamento feito em 2017, mostrou que negros são mais condenados por tráfico que brancos. Os dados mostram ainda uma diferença na quantidade, onde negros geralmente são pegos com uma porção menor que pessoas brancas.
Consequentemente, são também os que mais morrem. No Rio de Janeiro, por exemplo, 88% dos jovens mortos por policiais em 2019 eram pardos ou negros, segundo Instituto de Segurança Pública (ISP). O que faz pensar sobre o perigo de uma pessoa negra ter um pé de maconha em seu quintal, mesmo para o uso medicinal.
FONTE :
Tainara Cavalcante
Jornalista e produtora de conteúdo no Cannalize. Amante de literatura, fotografia e conteúdo de qualidade.