No Brasil, mais de 4,5 mil pessoas já estão autorizadas a importar medicamentos feitos a partir da planta
— “Tá certo, Chris, boa sorte para você”, saudou Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e principal acionista do Gávea Investimentos.
“Levantamos US$ 6 bilhões para comprar participações em empresas com alto potencial de valorização. Éramos os maiores do mercado”, lembra Meyn, enquanto analisava cuidadosamente uma flor de maconha recém-colhida de sua fazenda, próxima a Portland, no Oregon.
Em vez do clássico terno azul marinho (ele nunca usou gravatas) e sapatos de couro que costumava vestir em reuniões do mercado financeiro, Meyn usava uma camisa xadrez de manga curta, calça jeans manchada e um boné da sua marca. Parecia mais um caminhoneiro do que um dos principais empresários da cannabis mundial. “Sou mais feliz assim”, admite.
O Gávea deu tão certo que, em 2010, o banco americano JP Morgan comprou o controle da operação com uma condição: queria os Fraga e Meyn à frente dos negócios por pelo menos cinco anos. Foi justamente quando Meyn passou a repensar a vida.
Casado com uma brasileira e pai de três filhos nascidos no Rio de Janeiro, o banqueiro tinha na cannabis sua verdadeira paixão. Não apenas como usuário (experimentou ao 14 anos e nunca mais parou), mas como geradora de negócios.
A semente desse projeto fora plantada quando ainda era estudante de economia na prestigiada Universidade de Stanford. Sua tese de conclusão de curso, entregue em 1989, sustentava que os EUA deveriam relaxar as leis de repressão contra os usuários. Formou-se com honras. Exatos cinco anos após a venda do Gávea, Meyn realizou o lucro e mudou-se com a família para sua terra. Conhecido pelo pensamento liberal e leis progressistas, o Oregon foi um dos primeiros estados americanos a relaxar as leis da cannabis. Somente em 2017, US$ 775 milhões foram injetados na economia local, proveniente desta legalização.
Nacionalmente, a cifra foi de US$ 9,2 bilhões, segundo a Arcview Market Research, principal fonte do setor. A previsão para os próximos dez anos é que o mercado americano de cannabis esteja carburando US$ 47,3 bilhões por ano.
O PIB da erva: A liberação do cultivo para fins medicinais e recreativos nos EUA já injetou US$ 9,2 bilhões na economia do país. Acima, cultivo de cannabis orgânica em Sierra Foothills, na Califórnia (Foto: Jennifer Skog)
Embaixador: Marcio Grieco, um dos brasileiros que se lançaram no mercado de cannabis. (Foto: Keiny Andrade/Folhapress) (Foto: Divulgação)
O estudante de Stanford tinha razão. Nos EUA, Meyn já investiu US$ 5 milhões do próprio bolso. Hoje tem uma fazenda, três dispensários (como são chamadas as lojas que vendem a erva) e uma grande operação de extração de óleo. Até o fim do ano, vai dobrar de tamanho. Além do Oregon, Califórnia, Arizona e Nevada, sua marca (Evolvd) vai fincar o pé no estado de Washington. Em seu tabuleiro canábico, territórios como Índia, Colômbia, Holanda, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul também já foram conquistados. “O que falta agora é o Brasil”, diz.
Meyn já investiu R$ 3 milhões no Brasil, país que ainda veta completamente o plantio da erva. Sua aposta inicial era que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alterasse a regulamentação do plantio em solo brasileiro, liberando-o para fins medicinais e pesquisa acadêmica. Essa é a mudança que muitos investidores e farmacêuticas estão de olho.
“O potencial do mercado brasileiro para medicamentos à base de cannabis pode chegar a US$ 10 bilhões”, avalia Meyn. “Saindo a regulamentação, já tenho investidores dispostos a colocar mais R$ 5 milhões e, em uma segunda etapa, outros R$ 30 milhões”, calcula.
No início do ano, o então presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, deu indícios de que a regulamentação aconteceria até agosto. Estamos em setembro e tudo segue na mesma. Ou quase: o mandato dele acabou e ele não trabalha mais na autarquia.
Apesar de não ter conseguido aprovar a regulamentação, Barbosa diz que o avanço institucional do tema “pode ser muito positivo, pois, provavelmente, reduzirá o preço de produtos como o canabidiol, aumentando o acesso dos pacientes que necessitam de produtos com qualidade”. Já para Cristiano Maronna, secretário executivo da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD), o ambiente político e social no Brasil é muito ruim neste momento. “Desde que Michel Temer assumiu o poder houve um endurecimento sobre o tema”, explica.
Enquanto Barbosa esteve à frente da Anvisa, um grande avanço aconteceu: doentes crônicos, principalmente com epilepsia, passaram a poder importar o canabidiol (CBD) para o Brasil. O CBD é um dos 400 componentes químicos da cannabis que, quando isolado, não tem qualquer ação psicoativa. Em outras palavras, não chapa ninguém. Quando ingerido, reduz dores musculares, espasmos, stress e falta de apetite.
A primeira importação legal de CBD aconteceu através da Hemp Meds Brasil, divisão criada por uma empresa americana para atender à demanda nacional. “Temos mais de 1,5 mil pacientes importando os produtos”, diz Carolina Heinz, vice-presidente da empresa que fica em San Diego, na Califórnia. “Apesar do avanço, ainda é muito caro para a maioria dos brasileiros”, afirma.
Uma caixa, que dura cerca de um mês, custa em média R$ 1,2 mil. A meta da Hemp Meds é produzir o medicamento no Brasil. Para isso, já iniciou a primeira das três fases necessárias de estudos clínicos para registro no país. “Esse processo demora cerca de dois anos e custa US$ 5 milhões”, diz Carolina.
Em maio, 4.617 pessoas já tinham autorização da Anvisa para importar CBD no Brasil. O primeiro passo é conseguir a indicação médica. “Só devemos receitar se o paciente é fármaco-resistente aos medicamentos convencionais”, explica a neurologista infantil Letícia Sampaio.
Médicos que não seguirem essa determinação correm o risco de ter o registro profissional cassado. “Ainda há muito preconceito na classe médica. Acredito que por falta de conhecimento”, revela Letícia, que também é vice-coordenadora do departamento científico da Associação Brasileira de Neurologia (ABN).
Mario Grieco e Geraldo Alckmin têm duas coisas em comum: foram colegas de turma na faculdade de Medicina, em Taubaté (SP), mas quase nunca exerceram a profissão clínica. Assim como o ex-governador de São Paulo, Grieco sempre quis ser presidente – só que de grandes empresas. Presidiu gigantes como a Monsanto e as farmacêuticas Pfizer e Bristol-Myers Squibb no Brasil.
Desde janeiro deste ano, Grieco comanda a Knox Medical Brasil, braço nacional da empresa criada em 2015, na Flórida. “Quero trazer uma fábrica para o Brasil. É um investimento por volta de US$ 20 milhões para começar. Não é pouco. Assim que autorizarem a plantação, a gente começa”, diz.
Grieco, porém, reclama das decisões políticas da Anvisa. “É inacreditável a falta de transparência deles. A Anvisa está sendo totalmente controlada. A definição de uma agência reguladora prevê independência”. A falta de perspectivas na Anvisa criou uma mobilização. “Estamos conversando com todas as empresas que querem trazer cannabis para o Brasil para criar uma associação e termos mais força em Brasília. Hoje trabalhamos de maneira isolada”, finaliza.
Enquanto o imbróglio da regulamentação continua, muitos empresários decidiram cruzar as fronteiras do país para investir no exterior. “O preconceito contra a cannabis também é uma oportunidade de negócios”, explica o sócio de um fundo criado por cinco brasileiros que prefere não se identificar. “Evita dor de cabeça e perseguição”, diz o investidor que já foi CFO de uma das maiores farmacêuticas do Brasil.
Seu fundo, que levantou US$ 3 milhões, já comprou participação em sete empresas nos EUA, Colômbia, Alemanha e Uruguai. “Com pouco capital podemos ser influentes. Somos recebidos por todo mundo”, diz. Neste mercado o que vale é dinheiro vivo, os bancos não abrem linhas de crédito.
Tiago Carneiro cresceu em Belo Horizonte sob a redoma da tradicional família mineira. A missa aos domingos era seguida pelo almoço caprichado. Sobre a mesa, cerveja artesanal produzida pela própria família (seu irmão, José, era o mestre-cervejeiro). Batizada Wäls, a microcervejaria conquistou rapidamente os paladares mais exigentes dentro e fora do Brasil. Em 2014, veio a surpresa: medalha de ouro e prata em duas categorias da World Cup Beer, competição mais importante do setor. No ano seguinte, a Ambev comprou a operação.
Hoje os irmãos moram em San Diego, no sul da Califórnia e criaram uma marca local, chamada Novo Brazil. “Somos a 8ª cervejaria que mais cresceu nos EUA e eleitos a melhor startup do setor em 2017”, comemora Carneiro.
O conhecimento da indústria de bebidas abriu uma janela de oportunidade para o promissor mercado de chás, sucos e infusões com cannabis, totalmente liberado na Califórnia desde o início deste ano. “Em dezembro, lançaremos dois produtos: uma latinha com bebida carbonatada (que vai custar US$ 9) e sachês para chás (cada um por US$ 4,70)”, adianta. “Sempre fui muito preconceituoso contra a maconha. Era pura ignorância”, admite.
Até agora, os irmãos Carneiro, dois outros brasileiros e um americano investiram US$ 3 milhões no projeto.
Em princípio, as bebidas terão apenas CBD. “Quero que minha avó, Dona Rita, possa beber sem qualquer desconforto. Ela disse que me apoia, assim como meu pai e minha mãe”, diz o mineiro. A mesma reação não acontece com a esposa. “Ela diz que não se casou com nenhum maconheiro”, revela. “Uai, mas qual a diferença entre álcool e maconha?” Essa é a barreira que ele e os outros investidores terão de superar.
GQ/GLOBO