Quase dois milhões de pessoas correm risco de passar fome, falta de vitaminas provoca surto de doença de pele e estudantes ainda assistem aulas em tendas.
Há um ano, Moçambique tenta se recuperar lentamente da passagem do poderoso ciclone Idai, que destruiu 90% da cidade portuária da Beira, capital da província de Sofala e segunda maior do país. Poucas semanas depois, Kenneth devastou Cabo Delgado com ventos de mais de 240 km/h.
A recuperação do país avança lentamente: quase dois milhões de pessoas correm risco de passar fome, a falta de vitaminas provoca surto de doença de pele e estudantes ainda assistem aulas em tendas.
Mais 1,8 milhão de pessoas foram afetadas: mais de 600 morreram e 1,6 mil ficaram feridas em Moçambique. Muitos corpos não foram recuperados.
Além das dramáticas consequências dos dois ciclones, o país enfrenta ainda chuvas irregulares, inundações e um sério conflito armado. Para piorar, a falta de recursos está comprometendo o prosseguimento dos programas de ajuda.
“A recuperação de Moçambique acontece a conta-gotas. Estamos nesta luta e ainda há muito a fazer. As necessidades são enormes e os recursos são limitados. Quase dois milhões de pessoas correm risco de passar fome”, afirmou ao G1 Espinola Caribe, que atua pelo Programa Mundial de Alimentos da ONU em Beira.
Com tantos desafios, Moçambique está longe de estar preparado para a nova temporada de ciclones que se aproxima.
Mais inundações
Os ciclones atingiram Moçambique às véspera da época de colheita. Em Sofala, após a passagem do Idai, as fortes chuvas deixaram inundados mais de 7 mil quilômetros quadrados de plantações – uma área equivale a mais de quatro vezes o tamanho do município de São Paulo.
O Programa Mundial de Alimentos da ONU avalia que 300 mil pessoas ligadas à agricultura de subsistência foram afetadas pelos ciclones. Então, foram distribuídas de ferramentas e sementes para que os agricultores pudessem retomar o cultivo de culturas de subsistência, como milho e feijão.
“Uma parte delas conseguiu plantar milho, arroz, amendoim, abacaxis. Trabalharam muito. Só que, infelizmente, inundações destruíram muitas plantações das províncias do centro, entre elas Sofala”, conta Espínola Caribe.
A chuva deixou mais de 10 mil hectares inundados apenas em Sofala, afetando 14,3 mil famílias. “Os mais atingidos são aqueles que cultivaram em zonas mais baixas, que são mais ricas para atividades agrícola. A maioria perdeu tudo o que plantou”, lamenta.
Como cerca de 150 mil moçambicanos, Filipe Gove, de 68 anos, passou a viver em um campo de reassentamento para as vítimas do Idai. Além de perder a sua casa, toda sua colheita e toda a sua criação, ele perdeu a nora e dois netos. Os corpos de seus parentes nunca foram recuperados.
Agravação da má nutrição crônica
A dificuldade de produzir seus próprios alimentos agrava ainda mais um velho problema que Moçambique enfrenta: a má nutrição crônica, que atinge 43% das crianças com menos de 5 anos – a taxa mais alta na África Meridional.
Além dos problemas de desenvolvimento relacionados com a desnutrição, as crianças sem uma dieta equilibrada têm apresentado déficit de vitamina B3, que provoca a descamação da pele.
“Fica parecendo uma queimadura. Essas crianças não ingerem tudo o que necessitam. Elas precisam urgente de uma dieta mais variada”, afirma Caribe.
Nas províncias atingidas pelo Idai, a situação é ainda pior. “Entre maio e dezembro de 2019, aproximadamente 4 mil casos só nos distritos mais afetados pelo Idai.”
Em caráter emergencial, a ONU fornece comida para mais de 39 mil crianças de 81 escolas primárias. No entanto, por falta de recursos, o programa que estava previsto para terminar em abril será encerrado ainda este mês.
Escolas destruídas
Na Escola Secundária de Estoril, no bairro Macuti, na Beira, pelo menos dois alunos passaram mal durante as aulas por causa da fome.
“Em novembro uma criança desmaiou em pleno exame. Fomos investigar e descobrimos que ela tinha saído de casa sem comer. A pressão da prova associada à fome provocaram o mal-estar. Já tivemos pelo menos dois casos semelhantes”, conta o diretor da escola, Ermínio Mário Herculano.
Como não se trata de uma escola primária, ela não conta com ajuda para alimentação do governo.
A escola está entre as 1,1 mil que sofreram danos com os ventos de 170 km/h que atingiram a província de Sofala na noite de 14 de março de 2019. Estima-se que mais de 2,7 mil salas de aula ficaram destruídas em Sofala.
Na Escola Secundária de Estoril, 19 salas ficaram sem telhado. Desde então, seus 4,7 mil alunos com mais de 13 anos assistem às aulas de maneira improvisada.
Apenas três salas foram recobertas com telhas que restaram em bom estado. As outras 16 estão funcionando em tendas doadas por parceiros.
Herculano conta que as tendas são pequenas. Os 90 alunos de cada sala que precisam se ajeitar como podem nos turnos da manhã e da tarde, quando o problema é ainda mais grave por causa do calor.
“Em alguns casos, ficam até três em uma mesma carteira. No horário do intervalo, eles não têm para onde ir. Por isso, a gente orienta a ficar dentro da tenda mesmo. Os alunos reclamam muito do calor, ficam transpirando”, conta o diretor.
Os computadores ficaram todos destruídos com o Idai e ainda não foram repostos. A biblioteca, que funcionava no quarto do segurança, também ficou destelhada. O pequeno cômodo de 4 metros quadrados foi recoberto com telhas recuperadas, mas nem de longe está equipada como deveria.
“Não tenho previsão de quando a nossa escola será reparada. A nossa maior preocupação”, afirmou.
Conflito em Cabo Delgado
O Programa Mundial de Alimentos da ONU estima que 170 mil pessoas precisam de assistência alimentar só na província Cabo Delgado, no norte do país. Além das consequências do Kenneth, a região enfrenta um violento conflito desde outubro de 2017.
Muçulmanos de várias origens frequentadores de mesquitas consideradas radicalizadas deram início a uma série de ataques sangrentos. Pelo menos 350 mortes foram registradas até fevereiro, em matéria do jornal português “Diário de Notícias”.
O Estado Islâmico chegou a reivindicar alguns deles, como costuma fazer em vários países, mesmo que não tenha apresentado provas de que a ação tenha sido financiada pelo grupo. Especialistas, no entanto, consideram pouco provável que eles estejam no território.
“O conflito começou há mais ou menos 3 anos. Só que no fim do ano passado e no começo desse ano atingiu proporções inimagináveis. Pessoas são queimadas, degoladas. O nível de violência é assustador e força as pessoas a fugir para zonas mais seguras”, afirma Caribe.
Apenas as pessoas que estão nos reassentamentos estão recebendo ajuda alimentar, mas a ONU estima que cerca de 550 mil precisariam receber algum tipo de auxílio.
“A comunidade internacional tem que estar consciente da gravidade e da urgência do problema de insegurança alimentar em Moçambique, porque as necessidades são enormes. Não podemos perder as nossas conquistas. Se a ajuda acabar, a situação vai piorar, por isso, fazemos um apelo aos doadores”, afirma Caribe.
Fonte: G1