Tratamentos que recrutam nossas defesas para enfrentar tumores abrem uma possibilidade real de sobreviver a quadros antes considerados irreversíveis
O começo de uma nova era
Coley logo passou a infundir germes em pacientes. Alguns poucos até melhoraram, porém vários morreram do ataque bacteriano. Sua tática não funcionou, mas deixou um legado: incitar o sistema imune pode ser uma saída para ganhar a luta contra o câncer. Ao longo de mais de 100 anos, os cientistas entenderam como essa doença firma um tratado de paz com as tropas do organismo e conseguiram criar remédios para rasgar esse armistício.
A imunoterapia de hoje gera tanto furor que flexibilizou um tabu entre os médicos: o receio em falar de “cura” nos casos avançados. “Isso talvez mude com a imunoterapia. Em certos cânceres, até 30% dos pacientes tratados parecem estar livres da doença após cinco anos”, nota Fábio Schutz, oncologista do Hospital BP Mirante (SP). “Temos de aguardar, mas é possível que estejamos curando esse pessoal, algo impensável antes.” São muitas as inovações e perspectivas nessa área, já encarada como um novo pilar terapêutico. Para você conhecê-las melhor, temos de lhe apresentar uma menina, Emily Whitehead.
Quem é Emily Whitehead? Em abril de 2012, uma garotinha americana com leucemia linfoblástica aguda – o tipo mais comum de câncer infantil – havia passado sem sucesso pelos tratamentos usuais. Numa última cartada, seus pais a levaram ao Hospital de Crianças da Filadélfia, onde foi testada uma abordagem chamada CAR-T Cells, ou Linfócitos T com Receptores Quiméricos de Antígenos. Parece coisa de ficção científica, mas é imunoterapia de última geração.
Resumindo: os médicos extraíram células de defesa (os linfócitos T) de Emily e mexeram no DNA delas para que desenvolvessem um receptor capaz de identificar células malignas. Esses supersoldados foram reinseridos na garota na esperança de que bombardeassem o inimigo. “Em maio, não havia sinal da enfermidade”, lembra-se Stephan Grupp, médico responsável pelo atendimento.
Emily, então com 7 anos, foi a primeira criança submetida às CAR-T Cells. Passados cinco anos (curiosamente, o período que se costuma esperar antes de declarar a cura de um câncer), a já adolescente esteve numa reunião de conselheiros do Food and Drug Administration (FDA), órgão que regula medicamentos nos Estados Unidos.Lá, ouviu o pedido unânime de aprovação da técnica para crianças e adultos jovens com aquele tipo de leucemia e que passaram por outros tratamentos. No último dia 30 de agosto, as CAR-T Cells que salvaram Emily, da Novartis, foram liberadas em território americano.
Os avanços na história
Na tentativa de fazer o corpo reagir ao câncer, William Coley injeta bactérias em pacientes. Benefício baixo e muitas mortes.
1976
Iniciam os estudos com a bactéria atenuada da tuberculose contra tumor de bexiga. Ainda se usa a técnica.
Anos 1980
Agentes inflamatórios como a interleucina-2, que atiçam o sistema imune, viram tratamento. A toxicidade é bem alta.
Anos 2000
Surgem vacinas terapêuticas, feitas com células expostas a subprodutos tumorais. Poucas, como a para próstata, viram realidade.
2011
O primeiro remédio imunoterápico moderno – o ipilimumabe – é aprovado nos EUA contra melanoma.
2017
A liberação de uma droga contra o câncer que não foca no órgão afetado e a vinda das CAR-T Cells sacodem a oncologia clínica.
Recurso cientificamente comprovado
“Acima dos resultados, o que vemos é a abertura de uma nova porta”, analisa o oncologista Paulo Hoff, diretor-geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. Ora, as CAR-T Cells mais próximas da prática clínica foram desenhadas para mirar a molécula CD19, comum na leucemia. “Mas podemos mexer nos linfócitos para que se liguem a outros alvos, de outros cânceres”, exemplifica o biomédico Martin Bonamino, pesquisador do Instituto Nacional de Câncer.
Não à toa, dezenas de empresas estão testando a plataforma. Algumas até almejam desligar genes que normalmente fazem as CAR-T Cells identificarem quem não é seu hospedeiro original. Por quê? “Isso criaria células sem problemas de compatibilidade, o que viabilizaria um remédio de prateleira feito a partir de doadores”, diz Bonamino.
O método dispensaria o complexo processo logístico de tirar linfócitos da pessoa, levá-los a um centro, trazê-los de volta e reinfundi-los. Aliás, outro lado negativo a ser superado são os efeitos adversos. Confusão mental e convulsão foram reportados. Emily ficou na UTI por semanas em decorrência de uma inflamação exacerbada. Porém, os profissionais estão aprendendo a manejar tais sintomas.
As CAR-T Cells não tiram o brilho da imunoterapia tradicional. “Em menos de uma década, ela foi de teoria promissora a tratamento-padrão para vários tumores”, contextualiza o médico Daniel Hayes, presidente da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, entidade que elegeu esse arsenal como o avanço do ano.
Para entender a sacada por trás dessas medicações, tenha em mente que o câncer nasce de uma célula normal. Esse traidor, portanto, compartilha mecanismos que permitem às unidades sadias não serem alvejadas pela polícia do organismo. Ele mostra aos guardas um RG falso – na forma de moléculas batizadas de ligantes – e passa incólume pela vistoria. “O que a imunoterapia faz é cortar essa senha de acesso para que o sistema imune veja o tumor como bandido”, compara Hoff.
Um exemplo real: o ipilimumabe (da farmacêutica Bristol-Myers Squibb), o primeiro imunoterápico moderno, conecta-se a um receptor das células de defesa conhecido como CTLA-4. Com isso, não deixa alguns daqueles ligantes entrarem em contato com elas para desativá-las. Em vez de atacar o oponente, a imunoterapia solta os cães de guarda. “Falam que nenhuma quimioterapia é tão boa quanto um bom linfócito”, brinca Schutz.
Como é feito o tratamento à base de CAR-T Cells
1. Inimigo sorrateiro
O tumor evolui porque o linfócito T, uma unidade do sistema imune, não consegue se ligar a antígenos (espécie de ancoradouros) presentes na sua superfície.
2. Em treinamento
Os experts começam tirando linfócitos do sangue do paciente. Já no laboratório, inserem genes artificiais que estimulam a expressão de um receptor nas células. Ele é capaz de grudar no antígeno do tumor e ordenar o ataque.
3. Tropa em formação
Ainda na bancada, essa tropa de elite personalizada é multiplicada até chegar a um número suficientemente grande para vencer o adversário.
4. Licença para matar
As CAR-T Cells voltam ao hospital, são reinfundidas no indivíduo e passam a agarrar – e a matar – células tumorais pelo corpo inteiro.
Vitórias contra o câncer
Em um estudo com 834 voluntários publicado no The Lancet, 43% do grupo tratado com o fármaco “antigo” não morreu após dois anos, ante 55% da turma que recebeu a fórmula mais jovem. “O progresso é rápido e está chegando a tumores onde havia pouco a fazer”, atesta o oncologista Jacques Tabacof, coordenador de Hematologia e Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (SP).
No caso do tumor de bexiga que se espalhou pelo corpo, o atezolizumabe (da Roche) é a única arma nova em três décadas. A imunoterapia representou, nessa situação, um ganho médio de seis a oito meses de vida em comparação com a químio – e talvez uma maior chance de cura. Situações parecidas ocorreram em rim e pulmão.
Tanto progresso culminou numa decisão inédita. Em maio, a FDA aprovou um remédio contra o câncer, independentemente do seu local de origem. Calma: não descobrimos um elixir contra todas as versões do mal. Na verdade, o tal pembrolizumabe parece trazer benefícios frente a diferentes nódulos malignos, desde que possuam uma alteração molecular específica.
“É a primeira droga a ser aplicada exclusivamente em função de características moleculares da doença. Ou seja, em cima de biomarcadores”, observa o biólogo Rui Reis, coordenador do Centro de Diagnóstico Molecular do Hospital de Câncer de Barretos, no interior paulista.
Biomarcadores são partículas produzidas pelo tumor e detectáveis com exames. A ciência notou que a presença ou ausência delas ajuda a determinar o sucesso do tratamento. Uma concentração elevada do ligante PDL-1, por exemplo, sugere que o atezolizumabe e o pembrolizumabe vão funcionar bem.
Ora, o primeiro medicamento bloqueia diretamente o PDL-1 e o segundo trava o receptor do linfócito que seria corrompido por ele. “Alguém com um câncer de pulmão que expressa PDL-1 tende a se dar melhor do que outro com a doença no mesmo órgão, mas sem esse traço. Não adianta sair dando imunoterapia para todo mundo”, raciocina o oncologista Marcelo Sousa Cruz, da Universidade Northwestern (EUA). Cerca de 30% dos tumores pulmonares avançados geram PDL-1 aos montes. O médico Fábio Schutz recentemente pediu o teste para dois pacientes: “Ambos vieram negativos, o que nos fez optar pela químio. Foi frustrante”.
Sorrateiro, o câncer não depende de uma única via de escape dos fiscais do corpo. São muitos os recursos que ele emprega para driblar nossas linhas de defesa. Daí porque uma das abordagens terapêuticas mais promissoras atualmente consiste em combinar imunoterápicos. A Bristol Myers-Squibb inaugurou essa estratégia com a aliança entre ipilimumabe e nivolumabe.
Enquanto o primeiro foca naquele receptor CTLA-4 do linfócito, o segundo atua no que interage com o PDL-1 – a proposta é deixar o criminoso sem saída. Em melanomas que invadiram outros órgãos, eles reduzem o risco de morte em 45%. A título de comparação, esse índice cai para 37% com o ipilimumabe isolado. A dupla já tem aval para ser utilizada nos Estados Unidos e na Europa. A expectativa é que esteja disponível por aqui em 2018.
A onda das combinações flexibilizou ainda mais os pilares clássicos de tratamentos contra tumores. Há testes de drogas imunoterápicas com químio, ou com terapia-alvo, ou após a cirurgia… “Temos inclusive pesquisas observando a ação delas em conjunto com as CAR-T Cells”, acrescenta Bonamino.
Essa tendência chegou a aproximar algumas farmacêuticas, que via de regra competem entre si. A Pfizer, para citar um episódio de peso, financiou experimentos de um princípio ativo seu com outro da MSD. O maior desafio, do ponto de vista clínico, é superar as reações adversas, que costumam se acumular conforme o coquetel antitumoral ganha componentes adicionais.
“A imunoterapia oferece vantagens sob diversos aspectos”, comenta o oncologista Stephen Stefani, do Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre. Em algumas situações, agrega tempo de vida ou mesmo uma maior chance de cura. Em outras, oferece bem menos reações adversas, que variam de inflamações na pele a hipotireoidismo. “Porém, ela ainda está atrelada a um preço altíssimo, que dificulta tremendamente o acesso”, pondera o médico.
A tática para fazer o corpo desbancar o câncer
1.Identidade fraudada
O tumor libera proteínas, ou ligantes, que se encaixam em receptores dos linfócitos T e impedem que eles iniciem um ataque.
2.Engodo revelado
Os imunoterápicos bloqueiam os ligantes da doença ou o receptor das células de defesa. Sem essa conversa, o sistema imune parte para a ofensiva.
3. Falsidade ideológica
Acontece que, na vida real, o câncer pode jorrar muitos ligantes diferentes, como o PDL-1 e o CD80. O intuito é desativar os vigias do corpo por várias vias.
4. Fiscalização insuficiente
Logo, um único remédio, atuando em só um ligante ou receptor, às vezes não é suficiente, pois o câncer tapeia nossas tropas por outros caminhos.
5.Atuação integrada
A tendência é testar combinações de imunoterápicos, que obstruem dois ou mais ligantes ou receptores ao mesmo tempo. Aí o bicho pega.
A revolução dos biomarcadores
O laboratório dos patologistas – os responsáveis por definir o perfil de cada câncer a partir de biópsias – hoje é cheio de aparelhos de última geração, que até sequenciam o genoma do tumor. A ideia é captar biomarcadores (substâncias fabricadas pela doença) que definem agressividade, resposta a medicações… “Sem essa avaliação, a imunoterapia perde boa parte de sua eficácia”, destaca Clóvis Klock, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia.
Toxicidade financeira
Acompanhe: conforme esses remédios forem mais aplicados em diferentes contextos, o custo total das fontes pagadoras deve subir. Se nada acontecer, as operadoras alavancarão seus preços para arcar com as despesas. Diante disso, menos gente vai conseguir bancar o seguro e cairá no Sistema Único de Saúde (SUS), onde não existem imunoterápicos à disposição.
Pois é: por ora, a protagonista da reportagem é uma realidade só aos 20% de brasileiros com plano de saúde. “Temos de respeitar o direito ao lucro. Contudo, também devemos compreender que medicamentos para males graves não são um produto qualquer”, dispara Hoff. “Espero que a concorrência gerada pelo surgimento de novos fármacos contribua para a queda dos preços.”
Stefani aponta três caminhos bastante debatidos no mundo para ampliar o acesso. Um é incluir mais gente em protocolos de pesquisa, onde terapias caras são oferecidas de graça. Outro envolve fomentar os remédios biossimilares. Não se trata de genéricos, porque eles não são idênticos aos originais dada a complexidade dos imunoterápicos, feitos a partir de organismos vivos.
A última saída é exigir valores menos salgados a países em desenvolvimento que se comprometam a realizar uma compra em lotes. Seria bom se as soluções para resolver esse impasse despertassem tanto interesse quanto as inovações que alicerçam a imunoterapia. Do contrário, décadas de avanço vão mudar pouco a resistência em cima da palavra “cura”.