No Egito Antigo, os faraós partiam para o outro mundo cercados de potes de mel. O guerreiro cartaginês Aníbal alimentou seu exército com mel e vinagre antes da luta contra Roma. No Antigo Testamento, Israel é descrito como “a terra que corre leite e mel”.
Apesar de esse produto ser consumido pela humanidade há pelo menos 10 mil anos, ele não está entre as principais formas de adoçar as receitas em nosso país: segundo os dados das associações do setor de apicultura, cada brasileiro consome menos de 2,5 colheres de sopa de mel a cada ano.
Para ter ideia, os suíços ingerem 1,5 quilo desse alimento todos os anos — o que representa umas 100 colheres de sopa. Na Alemanha, essa taxa fica em 960 gramas por pessoa a cada 12 meses.
Mesmo em comparação com os nossos vizinhos, o consumo no país fica bem abaixo: os argentinos comem cerca de 285 gramas ao ano, ante menos de 60 gramas no Brasil.
É importante que ressaltar que mesmo com o consumo de mel dos brasileiros estando abaixo da média de outros países, ele ainda assim está acima do limite recomendado para cada pessoa pela Organização Mundial de Saúde (OMS), considerando-se uma dieta de 2 mil calorias por dia (leia mais sobre isso no pé da reportagem).
Mas o que explica essa baixa popularidade do mel no país? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que há vários motivos por trás disso, que vão desde raízes históricas até a frequência das fraudes e as dificuldades de capacitar o setor no país.
Para entender todas essas questões, porém, é preciso dar um passo para trás e conhecer como as abelhas são capazes de produzir algo tão único na natureza.
As jardineiras da floresta
A ecóloga Carolina Matos, diretora técnica do Centro de Agroecologia e Serviços Ambientais da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, conta que as abelhas surgiram junto com as plantas com flores, há cerca de 135 milhões de anos.
“Elas são decisivas para a evolução de muitas espécies vegetais desde o início”, diz.
“Nós temos plantas que dependem necessariamente das abelhas para se reproduzirem. Ou seja: a presença delas no ecossistema é fundamental para a produção de frutos que alimentam os animais e até os seres humanos”, complementa.
Mas essa função de jardinagem também é essencial para as abelhas, pois é justamente nas flores que elas coletam o néctar, a matéria-prima para a produção do mel.
Após fazer a retirada na natureza, esses insetos voltam à colmeia, onde o produto começa a ser preparado. Outras abelhas acrescentam enzimas à mistura, enquanto um terceiro grupo bate as asas com bastante força para retirar o excesso de água da receita.
Algumas espécies ainda realizam uma quarta etapa: a fermentação do produto.
O resultado final de todo esse trabalho é o mel, um alimento riquíssimo em açúcares, especialmente de dois tipos: a glicose e a frutose.
Mas por que elas realizam todo esse trabalho?
“O mel é o alimento e a principal fonte de açúcares e de energia das abelhas”, responde o entomólogo Cristiano Menezes, chefe de Pesquisa & Desenvolvimento da Embrapa Meio Ambiente.
Além do mel, as colmeias também fabricam outros produtos, como o pólen, o própolis e a cera.
“O pólen também serve como alimento para elas. Retirado das flores, ele é a fonte de proteínas da alimentação desses seres”, explica Matos.
“Fazendo uma comparação, o mel é o arroz e o pólen é o feijão das abelhas”, brinca a especialista.
Já a cera serve como a estrutura que forma os favos ou os outros recipientes onde o mel é estocado. O própolis, por sua vez, preenche buracos e funciona como uma espécie de produto de limpeza, para manter sujeiras, bactérias, fungos, vírus e outros agentes infecciosos bem longe da colmeia.
Baixa popularidade no Brasil
Embora o mel seja consumido por seres humanos há milênios, no Brasil ele está longe de ser uma das principais formas de adoçar bebidas e comidas — ou ser visto como uma sobremesa em si.
Além do baixo consumo mencionado no início da reportagem, a própria produtividade do país está aquém do ideal.
Dados compilados pela Associação Brasileira de Estudos das Abelhas (conhecida pelo acrônimo Abelha) revelam que a quantidade de mel gerado por cada colmeia ao longo do ano fica bem abaixo do observado em outros países.
No Brasil, a produtividade é de 15 kg/colmeia/ano. A taxa é inferior ao obtido nos Estados Unidos (30 kg), na Argentina (35 kg), na China (50 kg) e na Austrália (105 kg).
“Isso acontece porque nós não somos profissionais. A apicultura é vista como uma terceira ou quarta atividade para os pequenos produtores rurais”, avalia Daniel Cavalcante, doutor em tecnologia de alimentos pela Universidade Estadual de Campinas e CEO da Baldoni Corp.
“Ou seja, o sujeito cria suínos, tem algumas vacas de onde tira leite para vender às cooperativas e, por acaso, tem umas 30 ou 40 colmeias, das quais ele retira o mel uma vez por ano”, descreve.
Em outras partes do mundo, os apicultores chegam a cuidar de mil colmeias e utilizam técnicas de melhoramento genético para ampliar a quantidade de alimento obtido a cada temporada.
Em números absolutos, a produção de mel no Brasil vem crescendo aos poucos: em 2004, foram 32,3 mil toneladas, número que cresceu para 55,8 mil toneladas em 2021, de acordo com o IBGE.
Mesmo assim, a quantia fica bem abaixo de China (458,1 mil toneladas), Turquia (104,1 mil toneladas), Irã (80 mil toneladas) e Argentina (74,4 mil toneladas), segundo os registros das Nações Unidas.
Cavalcante também aponta outro problema: a maior parte do mel produzido no Brasil é enviado para o exterior — e essa proporção vem aumentando ano após ano.
Em 2016, 61% da produção nacional foi exportada. Essa taxa cresceu para 84% em 2021.
Ou seja: mesmo que os brasileiros resolvessem consumir mais mel a partir de hoje, não haveria uma quantidade suficiente para suprir de imediato esse aumento da demanda.
“O que precisamos é profissionalizar o setor, conhecer melhor os números, treinar os agricultores e planejar o futuro para, no mínimo, dobrar a produtividade e chegar a 100 mil toneladas nos próximos dois ou três anos”, projeta Cavalcante.
Raízes históricas
No livro História da Alimentação no Brasil, o historiador e sociólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1996) faz algumas referências sobre o mel e o papel desse ingrediente na culinária nacional.
Cascudo afirma que o mel era “amado pelas três bocas da etnia brasileira”.
Segundo o pesquisador, “nem os negros e nem os amerabas [indígenas] faziam doces, além da pura degustação da sacarose vegetal e mastigar os favos das colmeias, com cera, abelhas e mel, conjuntos”.
Mas boa parte dessa tradição se enfraqueceu a partir do século 17, quando as plantações de cana de açúcar dominaram o território brasileiro e viraram a principal commodity do país.
“O baixo consumo de mel tem raízes históricas e começa quando os holandeses chegaram ao Brasil e plantaram a cana”, lembra Cavalcante.
Isso garantiu uma alta disponibilidade de açúcar para os brasileiros — e influenciou na confecção dos doces típicos do país, como as conservas e as compotas de frutas tropicais.
Em seus escritos, Cascudo lembra que o excesso de doçura dos pratos brasileiros chamava a atenção de quem vinha do exterior.
“Gilberto Freyre adverte a distinção entre o nosso e o paladar de estrangeiros pouco familiar ao açúcar, que foi produto tropical, encontrando uma inalterável e monótona identidade na doçaria brasileira. O açúcar, escondendo o sabor legítimo do fruto, como se queixava Saint-Hilaire dos mineiros em 1818.”
“A Europa dependia da importação do açúcar da África ou do Brasil, que era muito caro. Com isso, muitos indivíduos de lá dependiam do mel para fazer as receitas”, complementa Cavalcante.
E isso repercute nos hábitos daqui até hoje. Os pesquisadores apontam que, para muitos brasileiros, o mel ainda é encarado mais como um remédio para tosses, dores de garganta e resfriado do que como um ingrediente de receitas culinárias.
“E, apesar de o mel de fato ter algumas propriedades medicinais, ele é um alimento”, contrapõe o entomologista Bruno de Almeida Souza, pesquisador da Embrapa Meio-Norte.
“Por isso, a venda dele é regulamentada pelo Ministério da Agricultura, e não pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa”, acrescenta.
Recipientes para lá de suspeitos
Para completar a lista de motivos para a baixa popularidade, não dá para se esquecer do preço elevado do mel no mercado nacional e da quantidade considerável de fraudes nesse setor.
“Falamos de um dos alimentos mais adulterados do mundo, ao lado do azeite de oliva”, destaca Cavalcante.
E isso acontece pela facilidade de substituir o mel puro por outros ingredientes muito parecidos em termos de sabor, textura e coloração.
Uma das fraudes mais frequentes é o acréscimo de xarope de glicose, obtido a partir da cana de açúcar ou do milho.
Mas os esquemas para enganar o consumidor estão ficando cada vez mais sofisticados, e hoje são encarados pelo setor como um “problema mundial”.
“A Ásia tem uma tradição de falsificação do mel muito intensa e isso tem se agravado. Na Malásia, por exemplo, mais de 70% dos frascos de mel encontrados no mercado tinham algum nível de adulteração”, calcula Menezes.
Embora não exista uma estatística oficial sobre fraudes no Brasil, os pesquisadores observam que aqui essas práticas ainda são mais artesanais — e geralmente acontecem com aqueles produtos vendidos na beira da estrada, em feiras livres ou de porta em porta, em garrafas de vidro fechadas com rolha de cortiça.
“Essas opções têm tudo para apresentar alguma falsificação. Na melhor das hipóteses, aquilo até é mel, mas foi produzido sem os padrões de higiene exigidos e traz pedaços de abelhas e outros insetos mortos”, alerta Sousa.
Mas será que existem maneiras de o consumidor detectar essas adulterações?
A maioria dos testes caseiros divulgados nas redes sociais — como misturar mel com vinagre e outros compostos — não funciona, apontam os pesquisadores.
O único que tem alguma validade envolve o iodo, um produto que pode ser comprado em farmácias.
“Se o indivíduo não tem alergia a iodo, ele pode misturar duas gotinhas dessa substância com um pouco de mel e água. Se o conteúdo mudar de cor e ficar azul ou preto, isso quer dizer que existe amido ali e há uma falsificação”, descreve Matos.
Porém, por mais que funcione, esse teste não é capaz de detectar todas as fraudes possíveis — então pode ser que uma ou outra adulteração passe despercebida.
Os especialistas apontam que o melhor caminho, portanto, é confiar nas instituições de fiscalização e prestar atenção em alguns detalhes que aparecem no rótulo.
“A principal recomendação para ter um mel de qualidade em casa é comprar em grandes redes do varejo de supermercados e farmácias, que costumam ter essa preocupação em oferecer produtos de boa procedência”, orienta Cavalcante.
No rótulo, o principal ponto de atenção é o selo de inspeção, que pode ser federal, estadual ou municipal.
Esses selos informam a abrangência de comercialização do produto.
Um exemplo: o mel que tem o selo de inspeção municipal de Atibaia, em São Paulo, só pode ser vendido nesta cidade.
Já os frascos que trazem o Selo de Inspeção Federal, ou SIF, emitido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, estão liberados para compra em todo o território nacional.
“Vale também prestar atenção na lista de ingredientes e na tabela nutricional — e suspeitar se o rótulo parece mal feito, ou tem algo suspeito e desatualizado”, diz Matos.
Uma informação importante: é normal e esperado que o mel cristalize. Isso não significa que ele estragou ou está impróprio para consumo.
Aliás, quando guardado da forma correta, ele é um dos poucos alimentos que não apodrece. Há registros de produtos desse tipo que foram encontrados em sarcófagos de faraós que, depois de milênios, ainda estavam adequados.
“Se você quiser que o mel volte ao estado normal depois de cristalizar, basta colocá-lo em banho maria com a água a cerca de 40 ºC”, aponta Cavalcante.
A legislação brasileira exige que os fabricantes estabeleçam uma data de validade, que no caso do mel é de dois anos após o envase — desde, claro, que o pote tenha sido guardado corretamente (longe do calor e bem tampado) e o conteúdo não apresente mudanças no gosto ou a formação de bolor.
Oportunidades de crescimento
Para os profissionais que atuam na área, a falta de popularidade do mel entre os brasileiros representa uma oportunidade.
Eles planejam aumentar a produtividade das colmeias nos próximos anos por meio da capacitação dos apicultores e do desenvolvimento de novos modelos de negócio.
Para Cavalcante, a exploração do mel se encaixa perfeitamente no chamado “tripé da sustentabilidade”.
“A apicultura gera renda no campo, ajuda a cuidar da biodiversidade e permite expandir a agricultura”, lista.
“Para ter ideia, manter colmeias perto de plantações de soja aumenta de 12 a 15% a produção desse grão”, acrescenta.
Isso acontece justamente pelo papel das abelhas como “jardineiras” da natureza, ao garantir a reprodução de diversas espécies vegetais.
Menezes concorda e aponta que o mel é uma maneira de gerar renda mantendo a floresta em pé — algo que tem sido cada vez mais discutido no Brasil.
“As abelhas se encaixam como uma luva nessa história. É possível pensar na produção de mel, própolis e outros produtos em áreas preservadas ou restauradas”, acredita.
Ainda no campo das oportunidades, outro aspecto que chama a atenção dos especialistas brasileiros é a exploração das abelhas nativas.
Uma breve explicação: a apicultura é a atividade que extrai o mel a partir das abelhas da Apis mellifera e responde pela absoluta maioria do mercado produtivo.
Mas essa abelha, conhecida no país como africanizada, não é nativa do Brasil, apesar de ser extremamente comum. Trata-se de um híbrido, que se desenvolveu no país a partir do cruzamento acidental de abelhas europeias e africanas.
Existem cerca de 300 outras espécies típicas do país, como é o caso de jataí, mandaçaia, uruçu, guaraipo, manduri, bugia… E elas também produzem mel — mas, ao contrário da Apis mellifera, não possuem ferrão.
A exploração do mel dessas espécies é conhecida como meliponicultura.
Menezes aponta que essa é uma área que começa a ganhar mais espaço no Brasil. “E aqui nós vamos ter méis diferentes, com sabores mais suaves ou intensos”, informa.
“Existem algumas abelhas da Malásia que produzem um mel tão azedo que lembra até o vinagre”, exemplifica.
O pesquisador acredita que, aos poucos, o consumidor vai conhecer e valorizar cada vez mais essas variações.
“É um processo parecido ao que ocorreu com as cervejas. Há algumas décadas, todas as marcas eram parecidas, sem muita diversidade nos sabores”, compara.
“Com o tempo, as pessoas foram se acostumando e aprendendo que existem outros aromas e gostos. Hoje temos várias opções de cervejas no mercado, que atendem a diferentes públicos”, complementa.
Consuma com moderação
Mas será que o mel é mesmo um alimento saudável? Ele pode ser um bom substituto para o açúcar refinado?
Para começo de conversa, as pesquisas mostram que, além de glicose e frutose, o mel carrega uma série de compostos benéficos, como vitaminas, minerais e antioxidantes.
Para a nutricionista Eliana Giuntini, do Centro de Pesquisa em Alimentos da Universidade de São Paulo (USP), a dificuldade está em determinar exatamente a composição deste alimento de uma forma padronizada.
Isso porque há uma diferença nutricional considerável de acordo com a espécie da abelha e da florada da qual ela coleta o néctar.
É comum ver no mercado mel de eucalipto, de laranjeira, de flores silvestres… E cada um terá uma “receita” totalmente distinta.
“A variação é muito grande e a composição do mel é diferente de acordo com o clima, as flores, as abelhas…”, reforça.
A nutricionista também acredita que há uma certa dificuldade em determinar o índice glicêmico do mel. Essa é uma medida que permite estabelecer a rapidez com que os carboidratos aumentam e diminuem o nível de glicose (ou açúcar) no sangue.
Essa informação é valiosa: alimentos com um alto índice glicêmico provocam um aumento da glicose num curto intervalo de tempo.
O cenário se inverte naqueles produtos em que essa medida é considerada baixa.
Isso, por sua vez, interfere em questões como saciedade e fome — ora, se o açúcar no sangue sobe e desce muito rápido, a tendência é que fiquemos com vontade de comer mais vezes ao longo do dia.
“E o índice glicêmico do mel também é diferente de acordo com cada produto, o local, a florada, os compostos bioativos presentes…”, diz.
“Temos distintos tipos de mel com índices glicêmicos considerados altos, médios ou baixos”, completa.
Questionada se é possível determinar qual a melhor escolha entre o mel e o açúcar refinado, Giuntini não tem dúvidas.
“Entre um e outro, eu fico com o mel. Isso porque ele tem minerais e uma série de outras substâncias benéficas”, avalia.
“Mesmo assim, trata-se de um alimento que deve ser consumido com muita moderação”, pondera.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, as fontes de açúcar devem representar 10% das calorias da dieta de um indivíduo saudável.
“Portanto, se considerarmos a média de 2 mil calorias diárias, cerca de 200 calorias podem vir dos açúcares. E isso inclui bebidas adoçadas, doces, mel…”, lista Giuntini.
“Isso representa cerca de 50 gramas no total, ou ao redor de três colheres de sopa de açúcar por dia”, compara.
Os dados oficiais apontam que o brasileiro consome cerca de 80 gramas de açúcar a cada 24 horas — e, portanto, já está além dos limites estabelecidos pelas autoridades em saúde.
O desafio então, não é simplesmente em incluir o mel na alimentação, mas pensar em como ele pode substituir e, de preferência, reduzir a presença de outras fontes de dulçor em comidas e bebidas.
“Um dos grandes problemas da nutrição é o de encarar certos produtos como superalimentos”, lamenta Giuntini.
“Isso não existe e nenhum ingrediente faz milagres. Nem mesmo o mel”, conclui a pesquisadora.
Este texto foi publicado em BBC News