Atabalhoada, inexperiente e até mal-intencionada. É assim que fiscais ambientais se referem à atuação das Forças Armadas desde que elas desembarcaram na Amazônia para conter o desmatamento, em maio. Embora custe milhões de reais aos cofres públicos, a operação GLO (Garantia da Lei e da Ordem) é ineficiente e atrapalha a atuação do Ibama, segundo fiscais que conversaram com o UOL sob anonimato.
Era uma quinta-feira, 7 de maio, quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) autorizou o envio de tropas para combater focos de incêndio e desmatamento ilegal no Amazonas, Pará, Rondônia, Tocantins, Roraima, Acre, Amapá, Mato Grosso e Maranhão. Foi uma resposta à pressão internacional por causa dos incêndios na região amazônica, os maiores dos últimos anos.
Apesar do reforço militar, no entanto, o que se viu em maio deste ano assustou os ambientalistas. De acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), nunca se desmatou tanto: foram 829,9 km² devastados no mês em que a GLO passou a atuar —um recorde.
Autoritarismo e ineficiência
Os militares tomaram para a si a condução das fiscalizações no momento em que pisaram na floresta. Chamou a atenção dos ambientalistas o equipamento trazido com eles: veículos e helicópteros de grande porte, “uma estrutura muito grande, difícil para manobrar e que chama a atenção dos desmatadores”, contou um fiscal.
Aos poucos, no entanto, os militares passaram a descartar as operações planejadas pelo Ibama —há 30 anos na região— e a retirar o órgão das decisões de inteligência. Desde maio, o instituto está proibido de indicar os alvos e formular as estratégias de campo.
Nos primeiros dias de GLO, os fiscais do Ibama se preparavam para surpreender um grupo de madeireiros em uma terra indígena invadida, quando receberam uma ordem militar: embora o instituto tivesse mapeado a área e descoberto o local exato do maquinário que seria apreendido, os fiscais deveriam desistir daquela operação e se encaminhar para outro lugar.
Carros do Exército comandam fiscalização em uma serraria em Uruará (PA) Imagem: Arquivo Pessoal .
“A equipe foi para o outro local, não foi encontrado nada, enquanto o ponto indicado pelo Ibama não teve atuação”, contou um fiscal. “A nossa impressão é de que as Forças Armadas estão ali para inviabilizar o nosso trabalho.
Ficam rodando a Amazônia e não fazem nada.”.
Em outra operação, o Ibama planejava surpreender outra madeireira chegando de surpresa, apreendendo as árvores derrubadas e destruindo o maquinário.
“A ordem da GLO foi para que montássemos uma barreira na saída da cidade para interceptar algum caminhão com madeira serrada”, contou um fiscal.
“Apreender madeira já cortada não trará resultado algum. É preciso impossibilitar a atividade do madeireiro.”
Em nota, o Ministério da Defesa admite que “não tem experiência em fiscalização ambiental”, mas garante que “não existe, por parte do Ministério da Defesa ou das Forças Armadas, qualquer orientação de proibir ou interferir na ação dos fiscais”.
Mas até a inviabilização da atividade ilegal tem sido dificultada pelos militares. A decisão dos comandantes é para não participar de apreensão em que o maquinário dos criminosos é incendiado.
“O Ibama bota fogo porque ele queima devagar, impossibilitando seu uso no futuro”, conta um fiscal. “Os militares retiram algumas peças, quebram o painel do veículo e fazem disparos com arma de fogo. O prejuízo é pequeno para o infrator, que em pouco tempo conserta o equipamento e volta a utilizar.”
O Exército proibiu o uso de fogo. É uma ordem que eles passaram. Fiscal do Ibama.
Falta experiência
Os fiscais contam como os militares, sem estratégia, afugentam os criminosos utilizando seus equipamentos pesados. “Quando é preciso usar helicóptero, o Ibama faz um sobrevoo baixo e desce para desmantelar a quadrilha.
Os militares sobrevoam alto e não descem. Eles só chamam a atenção dos madeireiros, que retiram seus maquinários e somem”, diz.
Segundo o ministério, esse equipamento permite “que as tropas e fiscais alcancem regiões que dificilmente chegariam de outra forma” por se tratar de “território vasto e isolado”.
Para o fiscal, os desmandos da GLO e sua falta de experiência poderiam ser compensados com o uso da expertise do Ibama, agora descartada.
Vista aérea de serraria desmantelada por operação conjunta do Ibama e GLO Imagem: Arquivo Pessoal
“O Ibama entende o processo de grilagem, mineração ilegal e devastação. O problema é que a GLO tem dificuldade em entender que as decisões são técnicas e não ideológicas”, afirma um fiscal, que conta como os militares desautorizaram o Ibama em frente a um grupo de criminosos.
Durante a autuação na terra indígena Cachoeira Seca, no Pará, os militares diziam que estavam ali a mando do presidente da República e que, a partir daquele momento, os infratores obedeceriam apenas a GLO e não o Ibama.
Gasto pode chegar a R$ R$ 1,7 bi
Além de ineficiente, o uso dos 3.000 homens da tropa é caro: R$ 60 milhões por mês. O gasto chegou a R$ 120 milhões depois que Bolsonaro renovou a permanência dos militares por pelo menos mais um mês, até 11 de julho.
“Com R$ 120 milhões daria para pagar os salários de mais 1.000 fiscais do Ibama por um ano”, calcula Suely Araújo, presidente do órgão no governo Michel Temer.
“Hoje são 700 fiscais e orçamento de R$ 77 milhões para o ano todo.” Responsável pela GLO, o vice-presidente Hamilton Mourão já avisou que pretende manter as tropas até pelo menos o fim do mandato presidencial.
Se o desejo de Mourão se concretizar, o governo gastará R$ 1,7 bilhão pelos 29 meses que restam de governo.
O dinheiro, diz Suely, poderia ser usado na contratação de fiscais para o Ibama, que chegou a ter 1.300 homens em 2013.
“Mas há anos o governo não faz concurso para repor quem se aposenta.”
GLO e fiscais durante autuação na Amazônia Legal Imagem:Arquivo Pessoal
Sobre os gastos, o ministério afirma que as 934 multas aplicadas no período, as “apreensões e inutilizações já representam quase três vezes o valor investido na operação”.
Em uma Ação Civil Pública para avaliar o avanço do desmatamento na pandemia, o Ministério Público Federal avalia que a GLO pode ser importante no combate ao desmatamento neste momento.
Ela sugere que as Forças Armadas criem mecanismos para conferir os resultados já obtidos a fim de melhorar sua atuação com o tempo.
Na ação, o MP pede políticas públicas adicionais e calcula a devastação no mês em que os militares desembarcaram na Amazônia.
“Os dados relativos ao avanço do desmatamento no mês de maio de 2020 confirmam ser necessária uma atuação do Estado Brasileiro que vá além da GLO e que se traduza efetivamente em redução dos ilícitos ambientais, sob pena de estar-se a implementar uma política pública custosa e pouco eficaz. Isso porque, em muitos pontos críticos, o desmatamento durante o mês de maio não cedeu e, ao contrário, até aumentou”, diz a ação.
O desmatamento dos 829,9 km² apenas em maio é o maior número desde que o Inpe passou a monitorar, em agosto de 2015. Apenas nos 11 primeiros dias de junho, 364 km² de mata foram ao chão. Essas áreas somadas equivalem a 80% da cidade de São Paulo, a maior do Brasil.
GLO e fiscais durante autuação na Amazônia Legal Imagem: Arquivo Pessoal
A Defesa contesta a informação do Inpe ao afirmar que “os bons resultados da operação” indicam que as “menores taxas” de desmatamentos ocorreram em novembro de 2019 (quando também atuaram na região) e em “maio de 2020 (12%), período de atuação dos militares”.
Os militares são apenas a força bruta. Eles não têm treinamento. Para esse tipo de operação é necessária sofisticação maior.
Suely Araújo, ex-presidente do Ibama
Para Luiza Lima, porta-voz de Políticas Públicas no Greenpeace, “a militarização da Amazônia é um plano de governo”. “Ele reduziu a participação civil nos conselhos, acabou com o Fundo Amazônia e persegue quem divulga dados oficiais”, afirma. “Agora eles queimam dinheiro público.”.
O pior, no entanto, ainda está por vir, diz um dos fiscais. É que a temporada de queimadas, entre julho e outubro, exigirá que as Forças Armadas aprendam a apagar fogo.
“A gente sabe que a floresta vai queimar e o Exército não estará preparado. Isso só vai acontecer quando o fogo tomar conta da Amazônia.Por enquanto, o que vemos é desorganização. Talvez em 2022 a gente assista a uma operação organizada da GLO.”
Procurada, a vice-presidência não respondeu até o fechamento da reportagem.