Polícia americana pretende mapear redes de relacionamento entre pessoas com tattoos parecidas. Projeto reacende debate sobre liberdades individuais
Foi por meio do Freedom of Information Act (a Lei de Acesso à Informação americana) que a organização EFF (Eletric Frontier Foundation) descobriu que o FBI já desenvolveu estudos para criar dispositivos móveis que reconheçam tatuagens. A intenção é formar um banco de dados com imagens tatuadas que revelem crenças ou interesses semelhantes e, com isto, identificar pessoas e mapear as redes de relacionamento.
“Soubemos em 2015 que o FBI estava recolhendo fotos das tatuagens de detentos sem sua autorização e trabalhando em conjunto com o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia e grupos estrangeiros para analisar como dispositivos poderiam ser usados para identificar e relacionar pessoas”, relata Dave Maass, pesquisador investigativo na EFF, cujo objetivo é proteger os direitos de liberdade de expressão no contexto digital.
Em entrevista ao R7, Maass revela que o alvo das pesquisas eram os tatuados que compartilhavam crenças comuns, com ênfase em imagens religiosas.
Pelo reconhecimento eletrônico das figuras, seria possível, também, relacionar suspeitos a grupos criminosos.
“Uma tatuagem pode dizer muito sobre as crenças e preferências de uma pessoa, e é aí que mora a nossa preocupação com as liberdades civis”, afirma Maass.
“As forças de segurança podem interpretar uma tatuagem de forma errada e incluir aquele indivíduo em um banco de dados sobre uma gangue ou deduzir que ele siga alguma religião em particular.”
Paulo Lara, assessor de projetos no programa de Direitos Digitais do braço brasileiro da Artigo 19 — organização internacional que promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação — engrossa o coro.
“As tatuagens são dados sensíveis, que representam informações mais subjetiva sobre cada um. Como forma de arte em um corpo, elas são também uma maneira de as pessoas se expressarem — e não devem se tornar um problema para quem tem uma expressão corporal específica”, diz Lara.
“Utilizar determinadas características para fins de identificação, classificação e hierarquização em massa pode, eventualmente, implicar o uso de uma série de informações que não estão relacionados às investigações criminais.”
Reconhecimento facial
A EFF continua tentando descobrir, com o auxílio do Freedom of Information Act, quais os desdobramentos e a situação atual dos estudos do FBI envolvendo tatuagens.
“Queremos uma lista das 19 companhias e institutos de pesquisa estrangeiros que receberam cópias das tatuagens dos detentos”, endossa Maass.
O debate acerca do tema, entretanto, não se encerra nas tatuagens — e entra na controversa seara do uso das tecnologias biométricas pelo governo.
As técnicas incluem o reconhecimento facial, de íris ou impressões digitais e são projetadas para estabelecer a identidade de suspeitos ou vítimas pelas forças de segurança.
Jarrod Ramos, preso em Maryland
Anne Arundel Police/Handout via REUTERS /29.06.2018
O reconhecimento facial foi útil, por exemplo, para identificar o suspeito de abrir fogo contra a sede do jornal Capital Gazette na cidade de Annapolis, em Maryland, no último 28 de junho.
Jarrod Ramos, que foi preso no local do crime, se recusou a cooperar com a polícia e havia destruído as próprias digitais. Seu rosto, entretanto, constava no banco de imagens do estado — cujo sistema usa algoritmos para comparar as características faciais de um suspeito com pelo menos sete milhões de fotos de carteiras de habilitação emitidas em Maryland.
Desconfiança das ONGs
Apesar do desfecho bem-sucedido neste caso, as técnicas de reconhecimento facial são vistas com desconfiança por organizações civis.
Paulo Lara, da Artigo19, ressalta que o uso indiscriminado desse tipo de tecnologia — nos Estados Unidos e em outros países — pode trazer sérios riscos às liberdades individuais.
“A gente costuma achar, no senso mais comum, que a vigilância em massa traz segurança. Isso não é verdade. Sistemas biométricos não garantem a segurança das informações e são passíveis de fraude. A gente tem a ideia de que cedemos nossas liberdades individuais em função de uma segurança geral, mas devemos considerar que algoritmos e bases de dados também são passíveis de serem driblados”, ressalta.
O especialista reforça, inclusive, que a ideia de que os sistemas são neutros e não incorrem em erros deve ser encarada com ressalvas.
“Essa inteligência artificial também vai aprendendo com os usos que os humanos impõem sobre elas. A investigação automatizada pode cometer erros, pode ser enganada e também pode sofrer interferência de ações humanas. Não é possível simplesmente acreditar que um sistema totalmente automatizado e regulado por ações algorítmicas não vai cometer erros.”
Lei Geral de Proteção de Dados
No Brasil, o presidente Michel Temer sancionou na terça-feira (14) a chamada LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que regulamenta o uso, a proteção e a transferência de dados pessoais tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada no ambiente da internet.
“A proteção aos dados pessoais precisa estar muito bem definida e clara para que nós possamos discutir esses limites de utilização das tecnologias de reconhecimento facial, por exemplo”, afirma Lara.
Segundo informações divulgadas no site do Senado, “o texto garante maior controle dos cidadãos sobre suas informações pessoais, exigindo consentimento explícito para coleta e uso dos dados e obriga a oferta de opções para o usuário visualizar, corrigir e excluir esses dados”. A nova legislação deve entrar em vigor em 18 meses.
Paulo Lara completa que “qualquer tipo de limitação aos direitos humanos deve estar disposta na lei de maneira clara, precisa e com flexibilidade para revisões de tempos em tempos”.
“A finalidade precisa ser legítima para que essas medidas só possam ser impostas por autoridades específicas que tenham responsabilidade de cuidar da legalidade dessas funções. E a necessidade da coleta de dados precisa ficar clara e a utilização dos dados tem que obedecer princípios de legalidade, legitimidade e adequação à lei”, completa o especialista.
R7