Em 2017, afro-americanos totalizaram 26% dos mortos por policiais
Não foram poucas as vezes em que imagens chocantes de cidadãos negros sendo agredidos pela polícia americana inundaram os sites de notícias e redes sociais. Por trás das cenas de brutalidade, as estatísticas são ainda mais alarmantes: um afrodescendente nos Estados Unidos sofre três vezes mais riscos de ser morto por agentes policiais do que um branco.
Em 2017, os negros totalizaram 26% dos mortos até o mês de novembro por policiais no país, embora representem apenas 13% da população. Os dados são da organização Mapping Police Violence (Mapeando a Violência Policial), que documenta caso a caso desde 2014.
Segundo Brian Kwoba, professor no Departamento de História da Universidade de Memphis, no Tennessee, os episódios de violência policial são apenas uma pequena parcela do difícil cotidiano vivido pelos afrodescendentes nos EUA após séculos de racismo, escravidão e opressão às minorias.
— No sistema em que vivemos nos Estados Unidos, no Brasil e em diversas partes do continente americano, a escravidão fez parte de uma estrutura política e social que não se modificou. É claro que os meios como o racismo se manifesta mudaram, mas a estrutura permanece a mesma, e punir os indivíduos negros que divergem dela ou que simplesmente estão vivendo suas vidas é um jeito de mantê-la. Oprimir os afro-americanos — não só com violência física, mas também psicológica e econômica — diante de uma plateia é também um jeito de perpetuar essa lógica.
Em 1991, as imagens do taxista negro Rodney Glen King sendo espancado por um grupo de policiais em Los Angeles rodaram o mundo e marcaram o jornalismo e a luta contra os abusos das autoridades pela década que se seguiu. Com uma câmera na mão, uma testemunha que assistia às cenas de violência do outro lado da rua registrou as imagens. King havia sido detido por dirigir em alta velocidade e o tratamento desproporcional que recebeu por parte dos agentes incendiou os debates sobre racismo no país e provocou caos nas ruas da cidade californiana — ainda mais depois que, no ano seguinte, os profissionais envolvidos na cena foram absolvidos de qualquer acusação por um júri formado por dez brancos, um negro e um asiático.
A absolvição gerou uma onda de protestos e violentos tumultos — que ficaram conhecidos como os distúrbios de Los Angeles em 1992. “Este foi o primeiro caso a ser amplamente divulgado. Eu acho que antes de Rodney King, os episódios de violência policial contra negros nos EUA eram vistos, pela maioria das pessoas, como incidentes isolados. Mudou a nossa percepção sobre a frequência com que essa violência ocorre”, afirma o escritor Ryan Gattis, que publicou o livro Todos Envolvidos (Intrínseca, 2016; All Involved, no título em inglês) inspirado pelo episódio.
A maior consciência acerca do tema, entretanto, não foi suficiente para que os policiais deixassem de sair impunes deste tipo de situação. Em 2015, por exemplo, 99% dos agentes envolvidos em abordagens que resultaram na morte de civis — de todas as etnias — não foram condenados, segundo o Mapping the Violence (veja infográfico). Para Gattis, são diversos os fatores que contribuem para que a polícia escape das punições.
— Em primeiro lugar, a união policial é tão poderosa nos EUA que eles conseguem reunir evidências que comprovem sua inocência em um tempo menor do que um cidadão americano comum. Outro ponto é que os promotores de Justiça aqui têm de trabalhar e conviver com policiais todos os dias — eles obtêm casos com ajuda de policiais, provas com ajuda de policiais e depoimentos com ajuda de policiais —, e essa convivência influencia em suas decisões. Mesmo nos casos que envolvem um júri popular, o júri é predisposto a acreditar nos policiais — os jurados enxergam o uniforme, enxergam a função que a polícia tem de proteger os cidadãos.
A professora Juliana Serzedello Crespim Lopes, mestre em História Social pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora na área de identidades políticas e raciais, fala especificamente da absolvição de policiais envolvidos em casos de violência contra negros — e aponta o papel das teorias racistas do século 19 neste contexto.
— Naquele tempo, alguns pensadores que defendiam que as pessoas negras seriam mais propensas ao crime. Isso articula a organização de muitos Estados — a ideia de que a pessoa negra teria maior tendência ao crime, ao alcoolismo, ao vício, à violência. O problema é que, embora essas teorias já não tenham mais respaldo científico, elas ainda estão presentes nas relações sociais. Então, elas influenciam não somente a formação das polícias, como também a formação de advogados, juízes, promotores, desembargadores e assim por diante. Desta forma, o discurso de que a população negra tende ao crime continua como uma prática social fora de época.
Vinte e três anos após o espancamento de King, a brutalidade policial contra os negros custou a vida do jovem Michael Brown. Ele tinha dezoito anos de idade quando levou um tiro do agente Darren Wilson, que suspeitava de seu envolvimento em um assalto. Gravadas pelo celular de um pedestre na cidade de Ferguson, no Missouri, as imagens do corpo do adolescente negro ensanguentado levaram à explosão do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), organização que se manifesta contra todas as formas de racismo contra os negros.
Pela primeira vez na história dos EUA, os protestos não ficaram restritos a um grupo e se espalharam por todas as grandes cidades do país, conforme explica Nikki Jones, professora no Departamento de Estudos Afro-americanos na Universidade de Berkeley, na Califórnia. O caso em Ferguson e a repercussão vista após o assassinato de Michael Brown, assim como as imagens da forma como a polícia respondeu à ocorrência, tudo isso chocou os Estados Unidos. Nesse contexto, o desabrochar do movimento Black Lives Matter e o modo como vários protestos se espalharam em todo o país, de forma descentralizada, ganharam dimensões inéditas. Eu acho que o que mais chocou as pessoas foi a conduta tipicamente militar com que a polícia atuou neste caso — um procedimento que seria inimaginável em uma sociedade livre.
Apurações posteriores mostraram que Michael Brown não participara de nenhum roubo e o FBI — polícia federal americana — passou a investigar Wilson por violação de direitos civis, mas suspendeu as investigações em 2015 alegando falta de provas. Assim como Brown, cerca de 30% dos negros mortos pela polícia no mesmo ano sequer possuíam uma arma no momento em que foram abordados, segundo o Mapping the Violence. Entre os brancos na mesma situação, apenas 21% estavam desarmados (texto continua depois da arte).
Após o boom do Black Lives Matter, foram observados alguns avanços importantes no que diz respeito ao uso da força policial nos EUA. Um deles, lembra Nikki, foi a adoção das bodycams — câmeras que ficam presas ao corpo — para os agentes de certos departamentos policiais no país. Os aparelhos filmam as ações e oferecem evidências caso alguma abordagem seja questionada pelas autoridades. Além disso, algumas das corporações passaram a rever as próprias diretrizes, banindo os métodos de estrangulamento e priorizando o diálogo antes do uso da força. Brian Kwoba ressalta, entretanto, que o caminho até que as mortes acabem ainda é longo.
— Há uma mensagem importante a ser entendida a partir do Black Lives Matter. Não é simplesmente a demanda óbvia de quem participa dos protestos. É o fato de que, subjetivamente, quando alguém precisa reivindicar que as vidas negras importam, é porque na prática elas não têm importado. Se importassem, o movimento não teria de existir. Quando alguém grita que as vidas dos negros importam, inconscientemente nós admitimos que a sociedade falhou e declarou que elas não têm importância.
Entre os especialistas ouvidos pelo R7, é consenso que a divulgação massiva de imagens de negros sendo violentados por policiais pode surtir efeitos contraditórios entre os observadores. “Em um dos lados, existe uma maior atenção e uma maior repercussão em relação a esses episódios que são parte de um problema maior. As pessoas se envolvem mais, especialmente as jovens, com ativismo e movimentos de justiça social para acabar com as mortes. Por outro lado, a grande circulação dessas imagens e histórias nas redes sociais pode nos dessensibilizar e criar uma espécie de espetáculo”, pondera Kwoba. De acordo com o professor, um dos grandes problemas de transformar cada um dos vídeos em um espetáculo é a maneira como a própria comunidade negra absorve as cenas.
Em recente pesquisa da Associated Press em parceria com a Universidade de Chicago, 80% dos afro-americanos afirmaram que os agentes policiais continuam sendo muito rápidos ao usar a força nas abordagens. Pelo menos 50% dos negros relataram tratamentos injustos por parte dos policiais e endossaram que essas experiências mudaram a forma como eles encaram as aplicações da lei.
— Às vezes, esses casos traumatizam, porque são um lembrete de que as vidas dos negros não importam. Em certo ponto, nós — os afro-americanos — começamos nos questionar e, às vezes, internalizar os estereótipos negativos e descontar em nós mesmos. Quando você vê comunidades de negros encarando conflitos internos, casos de violência doméstica, violência entre gangues, tudo isso é um reflexo do jeito como somos tratados pela sociedade. Por essa razão, pode não ser saudável que haja um consumo tão massivo e repetitivo de vídeos e imagens que retratem a brutalidade policial contra nós (texto continua depois da arte).
Ryan Gattis engrossa o coro e explica como o avanço tecnológico desde o caso Rodney King, em 1991, influenciou a percepção das pessoas. O autor lembra que o espancamento de King foi gravado por um cidadão que tinha uma filmadora de mão — o que era uma exceção à época.
— Nos anos 80 e 90, era quase impossível assistir na televisão a uma cena real de violência tão brutal. E ainda que você assistisse, você nunca veria alguém morrendo. Atualmente, você pode abrir o Youtube e ver quantas pessoas quiser morrendo. Com os smartphones, todos têm uma câmera de vídeo em seus bolsos. Você pode entrar no Facebook e ter Philando Castile perdendo a vida depois de ser baleado por um policial diante de seus olhos. Infelizmente, a grande quantidade de imagens desse tipo a que temos acesso hoje nos torna, de certa forma, insensíveis a elas. Me preocupa que as pessoas parem de se impressionar em algum momento.
Já Nikki Jones — que, além de dar aulas em Berkeley, desenvolve pesquisas sobre os registros em vídeo de encontros entre policiais e civis — analisa a questão de um outro ponto de vista. Para a especialista, as diferenças na forma como os espectadores encaram os vídeos expõem divisões típicas da sociedade americana.
— Eu acho que, se a pessoa se torna insensível às imagens, isso é um reflexo da orientação, da compreensão que ela tem da realidade dos negros. O que eu posso dizer é que há pessoas como eu que, mesmo após anos convivendo com esse tema de perto, não foram dessensibilizadas. Pelo contrário: eu me choco a cada vez que vejo um vídeo ou conheço um caso novo. E isso acontece porque eu entendo que um indivíduo negro perdeu a própria vida no momento em que aquela imagem foi gravada.