“Primeiro gostaria de registrar que, como pediatra e portanto alguém que trata de crianças acho o estupro ou qualquer outro ato de violência contra esses indefesos a desumanização do ser humano”
“A desumanização do ser humano”.Essa é a opinião do pediatra Eduardo Marcondes, ex-secretário municipal de Saúde e uma das referências nesta especialidade médica em Dourados,sobre os casos de violência contra as crianças e os adolescentes.
Neste 18 de maio, Dia Nacional de Combate a Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes, o médico fala sobre as estatísticas de violência e propostas para reduzi-las, admite a existência de “complôs” nas próprias famílias para esconder casos que tenham como algozes seus membros, detalha os traumas que a violência sexual traz para a criança e conclamaos profissionais envolvidos com a população infanto-juvenil a uma soma de esforços para adotar medidas clínicas e legais eficazes de prevenção e atendimento às vítimas de violência.
“Precisamos formar uma grande articulação interssetorial e interdisciplinar para evitar que crianças sejam levadas para atendimento, nos consultórios, por causa desta chaga que é a violência infantil”, conclui o pediatra. Confira a entrevista.
Quais as estatísticas que se tem, na área de Saúde, em relação a estupros na infância e adolescência?
Primeiro gostaria de registrar que, como pediatra e portanto alguém que trata de crianças acho o estupro ou qualquer outro ato de violência contra esses indefesos a desumanização do ser humano. Os números de violência sexual contra crianças apurados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e divulgados recentemente são aterradores.
Entre 2011, quando as notificações passaram a ser obrigatórias, e 2015, foram estupradas no país 16.643 crianças menores de nove anos. Isto nos dá uma média de 9 crianças estupradas por dia no país. Se ampliamos a faixa etária até os 12 anos, o número cresce para 28.661 casos de violação. Ou, em média, quase 16 por dia. A tragédia fica ainda maior quando se sabe que várias meninas engravidaram. Entre 2011 e 2014, nasceram 4.021 bebês filhos de mães que foram violentadas antes dos 12 anos.
De onde foram extraídos esses números? E quanto aos outros tipos de violência?
Os númerosa que me refiro são parte de um relatório feito pelo Ministério da Saúde através Sistema Nacional de Violências (SINAN), que notifica todos os casos de violências interpessoais e autoprovocadas atendidas dentro do SUS. O SINAN foi criado em 2006, mas passou a ser obrigatório em 2011. Desde então os números de violências notificados aumentam a cada ano, passando de pouco mais de 107 mil casos em 2011 a quase 250 mil notificações em 2015.
Eles incluem casos de violência física, psicológica, negligência e violência sexual, que correspondem a 11% do total. As vítimas são mulheres em sua maioria, 67% dos casos. Com relação exclusivamente aos casos de estupro, apenas no ano de 2015, 17.871 mulheres foram atendidas pelo SUS, vítimas deste tipo de crime. Destas, 193 morreram em 2015, sendo que 68 morreram por causas de morte associadas a este crime. Estupro é o fator de risco mais letal que existe, representando 35% do total. Nenhuma doença tem uma taxa de letalidade tão elevada, isto considerando que os dados estão subestimados.
Esses números são confiáveis ou o senhor acredita que essas estatísticas podem ser mais altas ainda?
Mesmo altos, os números com que o SUS trabalha são menores do que os fornecidos pelo SINESP (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), que notifica mais de 40 mil casos de estupros por ano no país. A disparidade se dá porque o sistema de notificação de violência só está implantado em 60% dos municípios.
Os números do SUS vêm dos hospitais, clínicas etc. Além disso, muitos estupros vão direto para o setor de Medicina Legal, que é uma área da segurança pública. A diferença é que os dados têm detalhes que permitem rastrear alguns casos através de desfechos como gravidez e morte.
Além de detectar o índice de gravidez em crianças, o alto número de mortes nos dias ou meses posteriores a um crime sexual é um dos dados mais importantes que se pode extrair usando o SINAN/Violência e o Sistema de Mortalidade do Ministério da Saúde. As causas de óbito são diversas: morte materna, infecção generalizada, AIDS, entre outras. O mais dramático é que algumas causas nunca serão esclarecidas. Não se sabe se foi suicídio ou feminicídio.
Quais os traumas mais comuns na criança vítima de estupro ou outro tipo de violência e como o pediatra atua nesses casos?
Se para um adulto a violência sexual é traumática, em uma criança é devastadora e leva muitas vezes ao suicídio na adolescência ou mesmo ao homicídio. Nem sempre o sofrimento da criança, do adolescente ou da família se encerra com a denúncia e com a interrupção da violência.
Por se envolver frequentemente com a criança em situação de violência, é missãodo pediatra ações de identificação, enfrentamento e prevenção desse problema, demandando uma mudança de olhar das questões meramente clínicas para as sociais. É importante, nesse processo, questionar ativamente a criança e os responsáveis a respeito de novos episódios de violência; realizar sempre exame minucioso em busca de evidências físicas e estar atento para alterações comportamentais e emocionais compatíveis com abuso.
Aliado ao nosso trabalho, é fundamental o papel da família como co-atores nesse processo de detecção e cura da criança violentada.É importante que o pediatra conheça a legislação, os diversos órgãos existentes e as funções de cada um, suas possibilidades e dificuldades de atuação. Finalizo reafirmando o que disse no início deste artigo: o estupro é uma barbárie e deve ser combatido e punido, independente da faixa etária de quem é vítima.É a desumanização do ser humano.
Qual o seu sentimento pessoal quando atende uma criança vítima de violência?
No meu cotidiano profissional o que mais me causa repulsa é quando recebo para atendimento no consultório uma criança vítima de violência. A violência é, antes de tudo, uma violação dos direitos humanos fundamentais e manifesta-se sob diversas formas, nos mais diferentes espaços e em todas as classes sociais, afetando a saúde e a qualidade de vida das pessoas.
Os maus-tratos, abuso ou violência doméstica, que se configuram como campo de atuação dos pediatras, são mais visíveis nas camadas populares empobrecidas que, utilizando os serviços públicos de saúde como ambulatórios e serviços de emergência, de assistência social e outros, conferem maior visibilidade a esses eventos. Nas classes economicamente favorecidas, o sigilo que envolve as agressões é garantido em consultas particulares, seja com médicos, psicólogos e outros profissionais em serviços privados.
Pode-se afirmar que há uma espécie de conivência de familiares com casos de violência contra as crianças?
Creio que sim. Os maus-tratos sofridos na infância e adolescência, fases da vida de maior vulnerabilidade, por serem praticados, em sua maioria, no âmbito intrafamiliar, são encobertos por um complô de silêncio, justificado, muitas vezes, pelas alegadas inviolabilidade do lar e não invasão da sua privacidade.
Esses argumentos dificultam a atuação preventiva e o adequado encaminhamento das vítimas, podendo se perpetuar por meses e anos. Cabe ao pediatra, médico encarregado pelo acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança e do adolescente, incorporar em sua anamnese, exame físico e, fundamentalmente, na escuta empática da família e do seu paciente – crianças e adolescentes, elementos que possam subsidiá-lo para afastar ou suspeitar e/ou confirmar um caso de violência.
O que o senhor acha da legislação brasileira no que se refere aos direitos da criança?
No Brasil, crianças e adolescentes são protegidos por várias normativas jurídicas e institucionais que garantem, ao menos na letra da lei, seus direitos humanos fundamentais, sendo o principal o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É também signatário de tratados internacionais que tratam do tema.
A existência do arcabouço jurídico-institucional não exclui outros pressupostos que, a serem respeitados, levam a uma sociedade mais solidária e, em consequência, menos violenta, a saber: recursos no orçamento público para as políticas voltadas à infância e adolescência; garantia do pleno funcionamento dos conselhos de direitos e tutelares e criação destes onde eles ainda não existirem; ampliação do acesso à educação infantil de qualidade; melhora da qualidade do ensino fundamental; ampliação e melhora do atendimento pré-natal; assegurar a ampliação da licença-maternidade para 6 meses a todas as mulheres do país; respeito às diversidades e a todas as pessoas em quaisquer circunstâncias.
Pode-se afirmar que a violência contra a criança é uma questão de saúde pública?
A violência não é, em si, uma questão de saúde pública e nem um problema médico típico. Mas ela afeta fortemente a saúde porque provoca morte, lesões e traumas físicos e um sem número de agravos mentais e emocionais, diminui a qualidade de vida das pessoas e das coletividades, exige uma readequação da organização tradicional dos serviços de saúde, coloca novos problemas para o atendimento médico preventivo ou curativo. Evidencia a necessidade de uma atuação muito mais específica, interdisciplinar, multiprofissional, interceptora e engajada do setor, visando às necessidades desses pequenos cidadãos.
Como a pediatria classifica os maus tratos contra a criança e o adolescente?
Os maus-tratos são divididos nos seguintes tipos: maus-tratos físicos (uso da força física de forma intencional, não acidental, praticada por pais, responsáveis, pessoas da família ou conhecidas da vítima, com o fim de machucar, ferir ou destruir, podendo deixar ou não marcas evidentes), maus-tratos psicológicos (são todas as formas de desrespeito, discriminação, rejeição, depreciação, cobranças ou punição exageradas, assim como a utilização da criança ou do adolescente com o objetivo de atender às necessidades dos adultos) e negligência ( é o ato de omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para o seu crescimento e desenvolvimento.
O que o senhor sugere para que sejam reduzidos os índices de violência contra a criança?
Para se promover a redução do número de ocorrências de maus-tratos contra a população infanto-juvenil, iniciativas de sensibilização e capacitação dos profissionais, especialmente os pediatras, são propostas que visam a subsidiá-los para o diagnóstico precoce, o atendimento e encaminhamento adequados.Os profissionais envolvidos com a população infanto-juvenil poderão adotar medidas clínicas e legais eficazes de prevenção e atendimento. Tanto nos setores governamentais, como Saúde, Educação, Assistência Social, Justiça e outros, como os parlamentares das três esferas, os operadores dos direitos (conselhos de direitos e tutelares), a mídia, o terceiro setor e a sociedade como um todo, representada pelas famílias e comunidades, estarão aptos a participar no sentido da prevenção e adequado encaminhamento dos casos, formando uma grande articulação interssetorial e interdisciplinar para evitar que crianças sejam levadas para atendimento, nos consultórios, por essa chaga que é a violência infantil.
dourados agora