Autópsias feitas em cinco crianças que morreram de covid-19 no Hospital das Clínicas, em São Paulo, ajudam a explicar por que a doença continua escapando aos diagnósticos dos pediatras.
Os pesquisadores do departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) descrevem quatro apresentações, ou seja, quatro “caras” diferentes da doença.
Uma é um quadro de doença pulmonar, bem típico da covid e de fácil diagnóstico, que acometeu duas das crianças.
Já as outras três crianças tinham quadros que ilustram o caráter “camaleônico” do vírus Sars-CoV-2.
Os casos são relatados em um estudo publicado na semana passada na revista científica EClinicalMedicine, uma publicação de acesso livre da revista Lancet.
A seguir, Dolhnikoff e o autor principal do estudo, o patologista e infectologista da FMUSP e do Instituto Adolfo Lutz dr. Amaro Duarte, explicam o que as autópsias revelam sobre a covid infantil e como elas podem influenciar o entendimento da comunidade científica internacional sobre os mecanismos por trás das mortes dessas crianças.
A equipe explica também como os cientistas lidam com o desafio de identificar e descrever um vírus que nunca foi visto antes.
SIM-P, a covid infantil atípica que continua fugindo ao diagnóstico
Crianças, para a pediatria, são pacientes com até 18 anos de idade.
Desde abril do ano passado, os especialistas sabem que quando a covid nessa faixa etária é sintomática, ela se apresenta de duas maneiras:
A forma mais “clássica”, caracterizada pela doença pulmonar (como acontece com os adultos), tende a afetar crianças com comorbidades. Isso se confirmou em dois casos investigados no novo estudo.
Um deles foi o de uma adolescente que tinha câncer. “É um caso complexo, onde fica difícil determinar se a causa da morte foi o câncer ou a covid”, diz Dolhnikoff, que lidera, ao lado do patologista Paulo Saldiva, os estudos em autópsia de óbitos pela covid no Hospital das Clínicas da FMUSP.
A outra criança, com idade entre zero e dois anos, havia nascido prematuramente e tinha malformações congênitas. (A pedido da equipe, para evitar ferir os sentimentos da família, omitimos a idade exata da criança.)
Os outros três casos de covid-19 descritos no estudo têm características comuns a uma manifestação atípica de covid-19 infantil que os especialistas batizaram de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P). E é essa síndrome que tem confundido médicos na hora do diagnóstico. A BBC Brasil traz um depoimento de uma mãe que perdeu seu filho pela SIM-P nesse link.
“A febre alta e contínua é um dos critérios para você dar um diagnóstico de SIM-P”, diz Dolhnikoff.
Mas por razões que os pesquisadores desconhecem, junto com a febre, as crianças podem apresentar quadros iniciais muito distintos.
“A criança chega ao hospital com muita dor na barriga, febre, vômito, podendo ou não ter diarreia, você aperta a barriga, a barriga dói. Você vai pensar na apendicite como um dos diagnósticos possíveis”, explica Dolhnikoff.
“Uma das criancas no estudo foi operada por apendicite. Os médicos tiraram o apêndice, mas era covid.”
Uma outra criança, com idade entre oito e dez anos, foi admitida com dores de cabeça, confusão mental e convulsões.
“A criança era normal, começou a ter convulsões de mal epilético. Foi tratada com um anticonvulsivante, mas não conseguiam tirá-la daquele quadro. Era um quadro cerebral.”
A terceira criança com covid atípica estudada (um caso já descrito em artigo na revista Lancet Child and Adolescent Health) chegou ao pronto socorro com sintomas cardíacos graves. Ela também tinha dores abdominais e falta de ar, entre outros sintomas.
Dolhnikoff explica que, embora as crianças tenham entrado no hospital com quadros distintos, quando morreram tinham inflamação generalizada, com vários órgãos comprometidos – uma característica da SIM-P.
Preocupada em evitar que o estudo gere alarme na população, Dolhnikoff coloca os casos em contexto:
“Felizmente, a morte é um evento raro. A maioria das criancas com SIM-P responde bem ao tratamento hospitalar de suporte e se recupera”, ela diz. “Há várias intervenções possíveis, por isso é tão importante fazer o diagnóstico antes de que o caso fique grave demais.”
Por que as crianças morrem? – A hipótese da USP
A SIM-P permanece misteriosa e sobre ela os especialistas divergem.
Muitos na comunidade científica defendem que ela seja, na verdade, uma resposta imunológica anormal, somente de algumas crianças, possivelmente por predisposição genética, após a covid.
Mas para os patologistas da FMUSP, as autópsias contam uma história um pouco diferente.
“Muitos estão sugerindo que essas crianças que têm a covid grave podem ter tido a infecção, o vírus estava só no nariz e na boca da criança mas gerou uma resposta completamente descontrolada do sistema imune dessa criança. Isso é o que se propõe”, diz Dolhnikoff.
“Mas nós estamos dizendo que não, não é apenas isso. Não é que o vírus passou lá e foi embora.”
Dolhnikoff e a equipe acham muito possível que as crianças afetadas tenham, sim, alguma característica genética que as torne mais vulneráveis, “caso contrário, muito mais crianças estariam morrendo de covid”.
“Mas as autópsias estão mostrando claramente que, nessas crianças com quadro grave, o vírus foi muito invasivo e agressivo, se espalhou pelos tecidos e lesou esses tecidos.”
“Esses dois fatores, a agressividade do vírus e a resposta imune, levaram essas crianças à morte.”
O estudo também veio comprovar que as tromboses, fenômeno associado à covid em adultos, estão também presentes nas crianças com SIM-P, diz Dolhnikoff.
“Essa constatação é importante porque influi nos possíveis tratamentos.”
Conhecendo um inimigo novo – como cientistas identificaram o Sars-CoV-2
A equipe da FMUSP é a única no mundo fazendo estudos em autópsia com foco nessa faixa etária, daí a relevância desse estudo. Os patologistas podem literalmente “enxergar” o Sars-CoV-2 em ação no corpo das crianças.
Mas como sabem que o que estão vendo ali é mesmo o novo coronavírus? Amaro Duarte, autor principal do estudo, explica:
“Nós, patologistas mundo afora trabalhando com autópsias, estamos descrevendo um agente infeccioso que não tinha sido descrito anteriormente. Quando você faz isso, precisa se cercar de que aquilo que você está vendo ali é realmente aquele agente, no caso o Sars-CoV-2.”
Para eliminar qualquer dúvida, a equipe da USP baseou seus resultados em três métodos de investigação.
Um deles foram exames de RT-PCR (sigla para Reverse-Transcription Polymerase Chain Reaction), também usados para diagnóstico de covid-19 na população.
“Esse método usa biologia molecular para detectar elementos genéticos, nesse caso, o RNA do vírus, no tecido coletado na autópsia”, diz Duarte.
O segundo método é a microscopia eletrônica, que aumenta dezenas de milhares de vezes o tamanho da amostra de tecido – como na imagem abaixo, feita pela bióloga e professora da FMUSP Elia Caldini, outra integrante da equipe.
“Por esse método, a gente mostra as partículas virais no coração, cérebro, pulmão e na parede intestinal das crianças”, diz Duarte.
“E nós introduzimos uma metodologia nova, que é a microscopia imunoeletrônica, em que a gente usa um anticorpo acoplado a uma partícula de ouro para marcar a partícula viral. Então, a gente vê a partícula de ouro sobre a partícula viral, comprovando que aquilo ali é mesmo o vírus.”
“Nossa colega Elia Caldini levou meses desenvolvendo essa metodologia e tivemos um resultado muito bom, com imagens muito boas.”
Para reforçar ainda mais seus resultados, a equipe lançou mão de uma terceira técnica, a imuno-histoquímica.
“A técnica imuno-histoquímica é largamente usada em patologia para detectar antígenos – proteínas de um tumor, de uma bactéria, de um vírus ou de um parasita – nos tecidos”, diz Duarte.
“E para não ficar nenhuma dúvida, a gente utilizou dois anticorpos diferentes para detectar duas proteínas do Sars-CoV-2 nos tecidos.”
“Esse anticorpo vai estar ligado a uma substância que produz cor ao entrar em contato com o antígeno – a cor vermelha que você vê nas fotos. Padronizamos a técnica no Adolfo Lutz para a detecção de antígenos do Sars-CoV-2.”
Ferido em batalha e as lições do estudo para a comunidade médica
O estudo publicado na EClinicalMedicine – cujo título é “An autopsy study of the spectrum of severe COVID-19 in Children” (em tradução livre, Um estudo em autópsia do espectro de COVID-19 grave em crianças” – é o culminar de meses de trabalho da equipe da FMUSP.
Para Duarte, foi um período particularmente difícil.
Por ser também infectologista, o médico acabou tendo seu próprio encontro com o coronavírus: contraiu a covid-19 no pronto socorro do Instituto do Coração, o Incor, em junho do ano passado. Não precisou ser internado, conta, mas foram dias de muita ansiedade.
“É muito bom que casos graves em crianças sejam raros. Imagine se a criança fosse acometida em larga escala, como acontece com pessoas de meia idade? Teríamos gerações inteiras comprometidas.”
Ainda assim, ele diz, o estudo traz lições importantes para a comunidade médica.
“Faça o teste duas vezes para ter certeza”, recomenda. “É importante insistir nessa pesquisa antes de que o caso fique muito grave.”
“E se a criança está apresentando quadro de gravidade que necessite de hospitalização, que fuja da curva do que é esperado para aquela faixa etária, insista o máximo possível para chegar a um diagnóstico, seja do Sars-CoV-2 ou de outras doenças virais.”
Para as famílias com crianças, Duarte lembra que embora óbitos sejam proporcionalmente raros nessa faixa etária, elas também precisam ser protegidas do contato com o vírus.
“É importante ensinar a criança a seguir as medidas de prevenção, como usar máscaras, lavar as mãos e evitar aglomerações.”
Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 1 de abril de 2020 e 13 de março de 2021 foram notificados no Brasil 813 casos confirmados de SIM-P em crianças com até 19 anos de idade. Destes, 51 resultaram em óbitos.
Com base nessa reportagem, conclui-se que haja grandes chances de subnotificação.