- Aids e covid-19 têm formas de transmissão, sintomas e tratamentos completamente diferentes. Mesmo assim, as doenças que marcaram o fim do século 20 e o início do 21, respectivamente, trazem semelhanças importantes, especialmente na forma como a sociedade e a ciência reagiram a elas.
E esses processos tiveram os mais variados desdobramentos. Por um lado, as duas pandemias demandaram a criação de soluções rápidas, que resultaram em testes, remédios e vacinas modernos e disruptivos, que beneficiaram não apenas as duas condições, mas a medicina como um todo. Por outro, o surgimento de problemas novos reforçou (e até criou) preconceitos, estigmas e desigualdades que resistem até hoje.
Os dois momentos históricos também trazem aprendizados importantes sobre a prevenção, quais estratégias funcionam mais ou menos e o papel da comunicação neste contexto.
Essa é a análise feita por especialistas em saúde ouvidos pela BBC News Brasil. Eles avaliam que as duas crises sanitárias apresentam muitos paralelos e entendê-los pode nos ajudar a lidar com as futuras pandemias que virão pela frente.
1. Estresse, medo e incertezas
Nos últimos dias de dezembro de 2019, veículos e agências de notícias publicaram as primeiras informações sobre os casos de uma “pneumonia misteriosa” que começou a acometer algumas pessoas em Wuhan, na China.
No início de janeiro, veio a confirmação de que o quadro estava relacionado a um novo tipo de coronavírus, que seria nomeado posteriormente de Sars-CoV-2.
Um processo parecido aconteceu com o HIV, o vírus da imunodeficiência humana. Apesar de existirem evidências de que ele já circulava desde a década de 1930, o problema começou a chamar a atenção entre o final dos anos 1970 e o início dos 1980.
Nessa época, os especialistas perceberam o aumento na frequência de sintomas do que viria a ser conhecida como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, ou aids. No período, o quadro foi observado com mais intensidade em homens que fazem sexo com homens de algumas regiões dos Estados Unidos.
Para o médico Ricardo Sobhie Diaz, professor de infectologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), as duas situações são marcadas pelo aumento do estresse generalizado diante das incertezas.
“Quando começamos a ouvir sobre HIV e aids, havia muito medo, pois não se sabia o que poderia acontecer com as pessoas e qual seria o tamanho da catástrofe que iríamos enfrentar”, lembra.
“E nós vemos a mesma coisa agora com a covid-19. Todos nos sentimos um tanto incapazes de entender realmente o que acontece, especialmente nos primeiros meses da pandemia”, completa.
2. Estigmas e preconceitos
Uma das consequências desse medo generalizado diante do desconhecido é o surgimento de teorias da conspiração e movimentos que tentam encontrar algo (ou alguém) para jogar a culpa.
“No início, a aids era descrita pejorativamente como a doença dos cinco H’s, pois acreditava-se que ela só afetaria homossexuais, prostitutas (hookers, em inglês), haitianos, hemofílicos e usuários de heroína”, diz a infectologista Karen Morejon, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), no interior paulista.
E esses estigmas e preconceitos eram reforçados pela própria imprensa. Na edição de 12 de junho de 1983 do jornal Notícias Populares, por exemplo, é possível ler uma manchete preconceituosa sobre a aids. Em letras garrafais, a capa anunciava: “A peste gay já apavora São Paulo”.
Com a covid-19, houve um cuidado extra das autoridades, especialmente da Organização Mundial da Saúde (OMS), para que Wuhan, ou a China como um todo, não ficassem estigmatizados, ou virassem referência como o nome da doença ou do vírus.
E há exemplos claros de como evitar essa vinculação geográfica de uma nova enfermidade é importante. Talvez o maior deles seja a gripe espanhola, que matou milhões de pessoas entre 1918 e 1920.
Apesar da alcunha, a doença provavelmente surgiu em acampamentos militares dos Estados Unidos. Mas, como ocorria a Primeira Guerra Mundial e a maioria dos países envolvidos controlava a imprensa, quem noticiou sobre a chegada de uma infecção desconhecida foram os veículos jornalísticos da Espanha, que mantinha uma posição de neutralidade naquele momento.
Passado mais de um século, o termo “gripe espanhola” continua a ser usado, apesar da imprecisão histórica.
Mesmo com as precauções em relação à pandemia atual, ainda existem muitas teorias da conspiração infundadas que acusam a China de ter criado o coronavírus e é comum ler o termo “peste chinesa” em muitos desses conteúdos falsos.
3. Riscos e vulnerabilidades
Um erro que ocorreu nas duas pandemias, de acordo com os especialistas, foi o foco excessivo nos chamados “grupos de risco”
Como mencionado anteriormente, existia uma ideia enviesada nos anos 1980 de que só homossexuais, usuários de drogas injetáveis ou pacientes que precisam de transfusão sanguínea se infectavam com o HIV.
Já na covid-19, circulou muito a ideia errada de que a doença só matava idosos e indivíduos com comorbidades, como os portadores doenças cardiovasculares ou pulmonares.
“E, em ambos os casos existe uma diferença enorme entre grupos de risco e indivíduos com maior vulnerabilidade”, diferencia Diaz.
Ou seja: estatisticamente e na comparação com as outras faixas etárias, pessoas acima de 60 anos são mais suscetíveis à infecção pelo coronavírus e desenvolvem com maior frequência as formas graves da enfermidade, que exigem internação e intubação. Mas isso não significa que os mais jovens estão absolutamente livres da covid-19 ou de suas repercussões no organismo.
O mesmo se repete quando pensamos nos primeiros anos da aids: a noção distorcida de que homossexuais seriam os únicos afetados fez com que indivíduos com outras orientações sexuais relaxassem e pensassem que não corriam perigo, quando se sabe que a realidade é muito mais complexa.
“O foco nos grupos de risco fez com que houvesse uma sensação de tranquilidade daqueles que não apresentavam aquelas características, pois eles achavam que não adoeceriam”, acrescenta Morejon, que também integra a Sociedade Paulista de Infectologia.
4. Desigualdade escancarada
A bióloga americana Claudia Velasquez, diretora do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) no Brasil, chama a atenção para outro ponto em comum entre as duas pandemias.
“As desigualdades têm um papel extremamente relevante [nos dois momentos históricos] e, por isso mesmo, é preciso atuar de forma conjunta e simultânea”, analisa.
“A resposta ao HIV evidencia a lacuna entre ricos e pobres. Onde um bom progresso foi feito, as pessoas que vivem com HIV têm uma vida longa e saudável. Já onde as desigualdades são grandes, foi alcançado um progresso limitado”, compara.
Na covid-19, a diferença de acesso a insumos, testes, remédios e vacinas também é enorme de acordo com cada país.
Essa disparidade fica escancarada no número de imunizantes contra o coronavírus aplicados até o final de setembro: de acordo com informações disponibilizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), 61,4% dos cidadãos de países ricos haviam recebido ao menos a primeira dose. Nos lugares mais pobres do planeta, apenas 3,5% das pessoas foram contempladas nas campanhas de vacinação.
Os mesmos números podem ser lidos de outra maneira: enquanto 1 em cada 2 indivíduos das nações ricas estão mais protegidos contra a covid-19, somente 1 em cada 28 que moram nos locais mais pobres tiveram essa mesma oportunidade.
5. Avanços nos métodos de prevenção
Esse talvez seja o ponto onde as semelhanças mais impressionam. Tanto a aids quanto a covid-19 seguiram uma sequência similar de orientações preventivas.
Nos primeiros meses, quando as informações sobre as doenças eram escassas, restava apelar às medidas proibitivas: para evitar o HIV, não faça sexo; para fugir do coronavírus, não saia de casa.
Com o passar do tempo, surgiram métodos um pouco mais rebuscados, que servem de barreira contra a entrada dos vírus. Falamos aqui das camisinhas e das máscaras.
Na sequência, vêm as intervenções biomédicas. No HIV, foram aprovados remédios para a PrEP (profilaxia pré-exposição) e para a PEP (profilaxia pós-exposição). Quando bem indicadas, essas estratégias ajudam a evitar a infecção pelo vírus.
Já na covid-19, as vacinas testadas e aprovadas em tempo recorde permitiram controlar o número de casos mais graves, internações e mortes.
Durante os dois processos de evolução, os especialistas aprenderam que não costuma dar muito certo depender unicamente dos métodos baseados no comportamento das pessoas, como a abstinência sexual, o isolamento social, a camisinha ou a máscara.
Pela experiência com as pandemias recentes, é justamente a combinação e a adaptação de diferentes estratégias que permite obter um bom resultado.
“É fácil dizer para as pessoas usarem camisinha ou máscara, como se todo mundo fosse respeitar essa recomendação 100% das vezes”, comenta o infectologista Rico Vasconcelos, pesquisador do Hospital das Clínicas de São Paulo.
“Conforme aparecem as intervenções biomédicas, como os remédios ou as vacinas, é que começamos a ver uma queda da incidência tanto das infecções por HIV ou pelo coronavírus”, observa.
O cientista social Alexandre Grangeiro, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP, concorda: “Recomendações muito normativas, que dizem aquilo que as pessoas precisam fazer e não consideram a autonomia de cada um, não funcionam”, entende.
“Ou a gente adequa os métodos de prevenção ao cotidiano ou eles vão falhar”, completa o especialista, que foi diretor do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde entre 2003 e 2004.
Já Diaz destaca o papel da comunicação nesse contexto e usa as orientações sobre o uso da camisinha como exemplo.
“Nós erramos feio ao dizer que fazer sexo com camisinha é igual em termos de prazer. Isso é mentira. A mensagem correta é que existe, sim, um prejuízo na sensibilidade, mas um ganho no aspecto preventivo”, analisa.
“Nossa comunicação foi sempre no sentido de que, ao se prevenir, você estará fazendo um bem para todo mundo, para a coletividade. E me parece que essa mensagem de fazer as coisas pelos outros nunca funcionou direito”, acrescenta.
6. Conquistas contra outras doenças
Vale observar aqui que o trabalho dos cientistas para trazer soluções às pandemias de aids e covid-19 também permitiu pensar em saídas para outros problemas de saúde.
“O esforço científico para entender a aids na década de 1980 propiciou o desenvolvimento de remédios que impedem a replicação de vírus. Muitos deles compõem o coquetel antirretroviral”, exemplifica Diaz.
“E esses tratamentos beneficiaram não apenas os portadores de HIV, mas também serviram de base para a criação de terapias contra a hepatite C, o vírus sincicial respiratório e talvez até o coronavírus”, conta o infectologista.
Já no contexto atual, algumas das vacinas contra a covid-19 usam tecnologias absolutamente novas. É o caso dos produtos que se baseiam no vetor viral não replicante, como aqueles desenvolvidos por AstraZeneca/Universidade de Oxford e Janssen, ou os imunizantes de mRNA, criados por Pfizer/BioNTech e Moderna.
Essas mesmas plataformas já são testadas para obter imunizantes contra outras doenças infecciosas e podem até servir como solução para diversos problemas de saúde, como o câncer.
“A pandemia de covid-19 mostrou que a ciência pode avançar rapidamente, quando existe a vontade política e o envolvimento de todas as pessoas”, resume Velasquez, da Unaids Brasil.
Morejon pondera que os avanços e as conquistas contra as infecções não foram frutos de uma iniciativa isolada de um especialista ou um grupo de pesquisadores, mas de um apoio constante à ciência.
“Só tivemos uma vacina contra a covid-19 em menos de um ano porque já existia toda uma pesquisa anterior, que buscava soluções para outros tipos coronavírus que surgiram em 2003 e 2011”, aponta a médica.
“E, mesmo na aids, que começou a chamar a atenção nos anos 1980, tínhamos investigações e amostras de pacientes guardadas em laboratórios desde os anos 1970”, lembra.
“Quando há investimento, a ciência prepara o terreno e nos permite lidar com as crises de forma muito mais fácil”, completa.
Fonte: BBC News