Casos recentes de grande repercussão evidenciam o estigma em torno dos transtornos mentais, dizem especialistas; cuidados passam por corpo saudável e vínculos sociais fortes.
Nana Calimeris até hoje se vê diante de momentos em que fica mais retraída e isolada, suscetível a sensações de grande desilusão – e a pensamentos de suicídio.
Aos 43 anos, a escritora enfrenta a depressão e a ansiedade desde a adolescência, época em que começou a desenvolver “uma vontade muito grande de morrer”.
“Me sentia uma pessoa horrível. A sensação era a de que eu estava respirando o ar que deveria ser de outro ser humano.”
Casos recentes de grande repercussão de suicídio em colégios e universidades, bem como a morte de celebridades como o chef e apresentador Anthony Boudain e a designer Kate Spade – ambos no auge de suas vidas profissionais -, evidenciam a importância em falar sobre o tema e diminuir o estigma em torno da saúde mental.
Os números também são alarmantes: a cada 40 segundos uma pessoa morre por suicídio no mundo, totalizando quase 800 mil mortes por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde.
No Brasil, segundo o mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, são mais de 11 mil suicídios por ano, e alguns especialistas temem que haja uma subnotificação de casos.
Não é possível saber o que está por trás de cada uma dessas histórias, uma vez que o suicídio é multicausal, ou seja, não há um único fator ou culpado.
Mas especialistas apontam que, em grande parte dos casos, há um histórico de transtornos mentais, diagnosticados ou não: depressão, ansiedade, esquizofrenia, bipolaridade, borderline (de comportamento impulsivo e compulsivo), entre outros.
“Não é possível reduzir o suicídio a uma única causa, mas a depressão causa uma disfunção dos neurotransmissores do cérebro. É parte de um conjunto de fatores psicológicos, culturais, físicos e bioquímicos”, diz à BBC News Brasil Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), em São Paulo.
Associados a essas doenças estão os chamados “Ds”: além da depressão, há “o desespero, desamparo de grupo social, desesperança, desemprego, divórcio e dependência química. Quanto mais ‘Ds’, maior é o risco de suicídio”, explica à BBC News Brasil o psiquiatra Fabio Gomes de Matos e Souza, coordenador do Programa de Apoio à Vida (Pravida) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Diante disso, dizem os especialistas, é preciso sempre cuidar da saúde mental com o mesmo empenho que nos ensinaram a ter com o restante do corpo.
Corpo saudável
E isso começa por “ter uma vida saudável mesmo: sono adequado, alimentação adequada, atividades físicas e evitar o isolamento social”, explica Daniel Barros.
“Os exercícios físicos aumentam as substâncias do prazer – a seratonina, a dopamina e a noradrenalina -, que ficam em níveis baixos em pessoas deprimidas”, agrega Souza, do Pravida. “Então as atividades físicas funcionam como um escudo protetor. A meditação, a ioga, a natação e o exercício na academia ajudam o corpo a ter mecanismos fisiológicos de combate à depressão.”
Foi o que Nana Calimeris aprendeu ao longo da convivência com a doença: ela usa a ioga e a meditação para ajudar a conter a ansiedade.
“Aprendi a respirar e a lembrar que as crises de ansiedade são cíclicas e passam”, conta à BBC News Brasil.
“Algumas crises são longas. Mas, com a respiração (da meditação), elas duram menos e eu consigo distinguir meus pensamentos. Isso traz a consciência de que a angústia talvez seja fruto da minha imaginação. Tem hora que dá certo, tem hora que não dá.”
O momento mais crítico da doença de Nana foi aos 28 anos, quando ela se viu prostrada na cama com uma crise de depressão profunda. “Eu não via saída para lidar com aquela dor”, conta.
Nana tentou se matar, ingerindo uma dose cavalar de medicamentos. Felizmente, sua mãe a viu desacordada e a levou ao hospital.
Hoje, ela não espera mais chegar ao fundo do poço: “Quando começo a ter ideias suicidas, a sensação de que não tenho possibilidade de aceitação, ou quando me jogo na comida, vou na mesma hora ao médico, porque sei que não estou legal”.
A partir daí, com a ajuda do psiquiatra, ela dosa os medicamentos e os combina com terapia. “Nenhum deles resolve (o meu problema) separadamente.”
‘Guardiões da vida’
Um apoio crucial para Nana vem do filho de 18 anos, que aprendeu a distinguir os momentos em que a saúde da mãe não está bem.
“Ele vê quando eu começo a me isolar, quando deixo de sair, e me alerta”, conta Nana.
Da mesma forma, pessoas atentas a sinais de isolamento de quem está ao seu redor podem ajudar na prevenção ao suicídio, explica Souza, do Pravida.
Ele tem ajudado na formação de “guardiões da vida” em escolas, instituições públicas e empresas cearenses.
“Trata-se de um grupo atento e treinado para identificar pessoas que estejam faltando, se isolando, chorando. E que se perguntem: ‘será que que ela está deprimida? Vou falar com ela'”, diz o psiquiatra.
“É preciso ter esses guardiões também dentro da família, que percebam quando é hora de conversar, de levar (o parente) para uma avaliação médica, para que dê tempo de tratá-lo.”
Os sinais a prestar mais atenção são, segundo Souza e Barros:
– Mudanças de comportamento e perda de interesse pelas coisas de que a pessoa gostava;
– Crises de choro, ideias pessimistas e de nulidade;
– Comportamentos compulsivos ao extremo;
– Pessoas que perderam alguém de que tenham grande dependência emocional;
– Pessoas que já tenham histórico familiar de depressão e suicídio.
Casos assim têm de ser “avaliados imediatamente”, adverte Souza. Mas como distinguir tristezas passageiras de casos de alta gravidade?
“Na dúvida, considere aquela pessoa em perigo”, opina o psiquiatra. “Pode ser uma tristeza, pode não ser. É bom buscar uma avaliação de um especialista em saúde mental. É melhor ter certeza, porque não podemos arriscar aquilo que não podemos (nos dar ao luxo de) perder.”
‘Guardiões da vida’ em escolas, famílias e empresas podem ajudar a identificar pessoas que estejam vulneráveis à depressão
Getty Images
Rede de proteção social
Ao longo do tratamento, as redes de apoio social têm um papel fundamental para pessoas com doenças mentais.
“Tenho amigos que são imprescindíveis”, relata Nana. “Fez toda a diferença para mim ter um amigo virtual com quem eu falava por Skype em momentos difíceis. Ele me ouvia mesmo quando eu me repetia; ele lia os textos que eu escrevia. São pequenas coisas que fazem muita diferença.”
Nesses momentos, o que um amigo deve ou não dizer?
Para Nana, os amigos ajudam ao serem genuinamente presentes.
“É querer saber de verdade como você está, e não apenas querer ouvir um ‘estou bem’. É dizer ‘estou aqui’. Tenho um amigo que me traz uma lembrancinha sempre que viaja, e é algo que me toca profundamente”, diz.
“O que não ajuda, nos momentos de depressão, é dizer ‘vamos sair, vamos tomar um sol’. Não adianta. A gente não falaria isso para alguém doente de câncer, então não adianta falar para alguém doente de depressão.”
A escritora e psicanalista Paula Fontenelle, autora de Suicídio: O Futuro Interrompido – Guia para Sobreviventes, acha que devemos evitar meias palavras se estivermos preocupados com um amigo deprimido.
“Uma amiga me telefonou certa vez, e notei que ela estava ligando para se despedir de mim. Perguntei sem rodeios se ela estava pensando em tirar a própria vida. Ela desatou a chorar e contou que sim, que já havia planejado tudo”, diz Fontenelle, que acabou conseguindo que a amiga buscasse tratamento, no qual está até hoje.
“É preciso ser direto e ouvir sem julgamento, porque não tem certo ou errado nessas horas. O que a pessoa quer é acabar com a própria dor, não necessariamente morrer. E como a dor é muito grande e muita gente não tem com quem conversar, se você abre a porta para um diálogo, já está ajudando muito.”
Há tratamento para transtornos mentais e ele é capaz de salvar vidas, diz psiquiatra
Getty Images
Na juventude, drogas e excessos digitais
Mundialmente, o suicídio já é a segunda maior causa de mortes de jovens entre 15 e 29 anos. E, no Brasil, pesquisas indicam que a morte autoinfligida de crianças de 10 a 14 anos aumentou 65% entre 2000 e 2015.
É preciso lembrar que o cérebro juvenil está exposto a um desequilíbrio no amadurecimento: o hipocampo e a amígdala, regiões cerebrais responsáveis pelos sentimentos e pelo armazenamento de emoções, amadurecem mais rapidamente que o córtex pré-frontal, responsável pela regulação emocional e de impulsos. Essa disparidade dura até os 25 anos de idade.
“Temos de ensinar isso aos mais jovens: o seu cérebro ainda está sendo gestado”, opina Souza, do Pravida. “Quanto mais saudável o cérebro, menos vulnerável ele estará à depressão e ao suicídio. E por isso é tão importante evitar álcool e drogas. Há uma percepção de que a maconha é inócua, mas ela favorece a depressão, a esquizofrenia e o suicídio.”
Essa faixa etária enfrenta ainda outro desafio moderno: a excessiva valorização da vida digital em detrimento das relações presenciais.
“Existe um desequilíbrio grande e uma ausência de espaços para desabafar e conversar, em vez de apenas olhar a ‘revista digital’ do Instagram, onde você não vê quem está mal ou sofrendo, porque essas pessoas estão sozinhas em seus quartos”, diz o psiquiatra.
Abuso de substâncias químicas é um fator de risco para o suicídio – mesmo a maconha, percebida como inócua, pode favorecer a depressão e a esquizofrenia
Getty Images
Proteção e diagnóstico
Por fim, Souza destaca o papel das políticas públicas de prevenção, algo que passa por diminuir o tabu em torno das doenças mentais e aumentar a proteção em edifícios e espaços públicos e privados – por exemplo, grades em pontes e estações de metrô, redes protetoras em varandas públicas ou ao redor de escadarias.
“Há quem diga, ‘ah, mas quem quer se matar vai encontrar um modo’. Mas como o suicídio tem um componente muito forte de impulsividade, a dificuldade de acesso já vai ter um impacto”, opina Souza.
O Ministério da Saúde tem uma “agenda estratégica” de combate ao mal, com a meta de reduzir em 10% a mortalidade por suicídio até 2020 por meio de “ampliação da vigilância, prevenção e atenção integral”, mas Souza opina que são necessárias campanhas de saúde pública mais amplas, a exemplo do que é feito com doenças infecciosas.
“O Brasil tem campanhas sistemáticas contra a dengue, que matou 200 pessoas no ano passado. Pelo suicídio morreram quase 12 mil”, compara.
Do ponto de vista clínico, ele defende um prontuário único para pacientes do SUS, que permitisse acompanhar o histórico de saúde mental de pacientes e a dosagem de medicamentos receitados – evitando algo comum, que é um paciente obter o mesmo medicamento tarja preta de vários médicos e acabar tendo em mãos uma dose potencialmente mortal.
E ele ressalta que é possível, sim, tratar a depressão e a intenção suicida. “Não nos deixemos levar pelo ‘não tem jeito’. Tem tratamento sim, e é eficaz”, diz.
Nana Calimeris se diz um exemplo disso. Nos últimos anos ela passou a se dedicar à carreira de escritora, e seu livro A Biblioteca de Alexandria tem como personagem principal uma jovem que convive com a depressão.
“E pensar que eu estava disposta a ir embora sem ter realizado esse sonho de ser escritora”, pondera. “Por isso acho que é preciso sempre falar em prevenção. As pessoas julgam: ‘mas essa pessoa tinha tudo; por que ela se matou?’. Vai ver que ela se matou porque não deu conta. O suicídio existe e precisamos falar a respeito.”
* O Centro de Valorização da Vida (CVV) dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Se você está em busca de ajuda, ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br. (Até 30 de junho de 2018, o CVV atende pessoas de Maranhão, Bahia, Pará e Paraná no número 141; após essa data, o atendimento ao país inteiro migrará para o 188.)
BBC Brasil – Todos os direitos reservados