Em meados de novembro, representantes de duas das principais fabricantes de vacinas contra a covid-19, a BioNTech e a Moderna, se reuniram em um congresso nos Estados Unidos para discutir a “volta ao câncer” no desenvolvimento de vacinas de RNA.
O título do evento, “Vacinas de RNA: da covid de volta ao câncer”, explicita o desvio inesperado na trajetória dessas jovens empresas de biotecnologia, fundadas há cerca de uma década: elas foram criadas tendo como um dos principais objetivos o desenvolvimento de terapias de RNA contra o câncer, mas com a pandemia de coronavírus, acabaram usando a tecnologia para criar imunizantes contra a covid-19 em tempo recorde.
A vacina da BioNTech, em parceria com a Pfizer, foi a primeira a ser aprovada para uso emergencial contra a covid-19 nos Estados Unidos, em dezembro de 2020; poucos dias depois naquele mês, foi dado o aval para o imunizante da Moderna, que também usa a tecnologia de RNA. Das duas, apenas a vacina da Pfizer/BioNTech é aplicada no Brasil.
Mas essas vacinas não conquistaram apenas a marca de serem as primeiras aprovadas para covid-19 nos EUA. Na verdade, elas foram as primeiras de tecnologia RNA na história a serem permitidas para uso em humanos e comercialização — considerando não apenas a covid, mas todas as doenças.
“Construímos uma tecnologia que nos permitiu trazer uma vacina dentro de algumas semanas, e quando a pandemia estourou, percebemos que essa tecnologia também poderia usada para trazer uma potente vacina contra a covid, no menor tempo possível” relatou o diretor executivo da BioNTech, Uğur Şahin, no congresso anual da Sociedade para Imunoterapia de Câncer dos EUA (SITC).
“O processo para fazer uma vacina de mRNA personalizada contra câncer, versus o processo de fazer uma vacina de mRNA contra o SARS-CoV-2, é exatamente o mesmo. Isso significa que a tecnologia desenvolvida para tratar de um único paciente é a mesma adaptada para vacinas contra a covid-19 para grandes populações.”
Depois da corrida inesperada provocada pela covid-19, especialistas na tecnologia de RNA avaliam que as conquistas científicas durante a pandemia poderão impulsionar também tratamentos contra o câncer através de vacinas.
Vacina contra o câncer — como assim?
Imunizantes como da BioNTech e da Moderna, baseados em RNA, são um tipo de vacina gênica. Esta categoria é mais moderna do que vacinas tradicionais com vírus inativado, que vêm sendo usadas há décadas para proteger contra contra hepatite A, poliomielite — e também teve uma contra a própria covid-19, como a CoronaVac.
Ao falar de genética, que é a área das vacinas gênicas, surgem letrinhas que são bastante conhecidas: o DNA e o RNA. O DNA é composto por uma fita dupla de códigos, formando uma hélice; e o RNA, por uma fita simples que levará à produção de proteínas a partir do código genético do DNA.
Uma boa analogia apresentada pelo repórter Tim Smedley em uma matéria recente da BBC Future é: se o DNA fosse um cartão de banco, o RNA seria como o leitor desse cartão.
Há vacinas de DNA em estudo, mas vamos falar aqui das de RNA, que estão unindo tecnologias que podem servir da covid-19 ao câncer.
Enquanto vacinas tradicionais entregam ao corpo um pedacinho inofensivo do vírus, incapaz de provocar doença ou deixar o patógeno se reproduzir, as de RNA consistem em um código genético criado em laboratório que levará à produção de proteínas simulando as do vírus, provocando então uma resposta do sistema de defesa. Por transmitir essas instruções, o nome completo dessa tecnologia é RNA mensageiro (mRNA).
As vacinas de RNA contra a covid-19 orientam as células humanas a produzirem cópias da proteína spike encontrada na superfície do coronavírus. Essa produção é incapaz de provocar uma infecção de verdade.
Como disse o próprio diretor da BioNTech, Uğur Şahin, no congresso da SITC, as etapas de produção de uma vacina de RNA contra a covid-19 são bem parecidas com aquelas contra o câncer.
A BioNTech e a Moderna têm trabalhado com a proposta das vacinas personalizadas contra o câncer.
Nelas, em vez de cientistas coletarem o material genético de um vírus, eles extraem amostras do sangue, tecidos ou mesmo do tumor de um paciente; identificam mutações e outras informações genéticas; e em seguida produzem proteínas simulando a composição de células malignas. O objetivo, novamente, é levar a uma resposta imune do corpo.
Mas diferente das vacinas contra a covid-19, destinadas a milhões de pessoas ao redor do mundo como estratégia de prevenção, os tratamentos personalizados propostos contra o câncer serviriam para pessoas já diagnosticadas com a doença — e seriam no geral customizados individualmente, com a análise do DNA de cada paciente e identificação de mutações e outras características das células cancerosas.
Sediada na Alemanha, a BioNTech tem atualmente dois produtos na fase 2 de ensaios clínicos (testes com humanos, que costumam ter três fases) que consistem em vacinas para câncer: iNeST e FixVac.
A iNeST tem uma proposta altamente individualizada e linhas em estudo na fase 2 contra um tipo de câncer de pele melanoma e o câncer colorretal, em parceria com a empresa Genentech. Já a vacina FixVac serviria para grupos de pacientes com tipos parecidos de câncer e tem na fase 2 suas linhas para tratamento de melanoma avançado e cânceres de cabeça e pescoço induzidos pelo vírus HPV (papilomavírus humano).
A Moderna não tem as letras “rna” no seu nome por acaso — a empresa fundada nos EUA tem esta tecnologia como foco, e tratamentos experimentais contra o câncer são um dos investimentos da empresa. Atualmente, ela tem a Vacina Personalizada contra Câncer (PCV, ou mRNA-4157) na fase 2 de ensaios clínicos, e a vacina KRAS na fase 1. Ambas têm participação da farmacêutica Merck.
A PCV propõe-se a tratar vários tipos de câncer, mas a fase 2 dos ensaios clínicos está trabalhando especificamente com pacientes com melanoma. Já a vacina KRAS mira cânceres que têm mutações frequentes no gene KRAS, sobretudo os de pâncreas, pulmão e colorretal.
Também no congresso da SITC, o diretor clínico da Moderna, Robert Meehan, afirmou que os testes com a vacina personalizada mRNA-4157 acabaram ajudando para que a empresa pudesse rapidamente desenvolver sua vacina contra a covid-19 (mRNA-1273).
“A mRNA-4157 ajudou a preparar o terreno — com prazo de 6 a 8 semanas desde a coleta de amostras do tumor ou do sangue até a entrega das vacinas para pacientes com câncer — para a entrega do primeiro lote de mRNA-1273 ocorrer em 25 dias, do sequenciamento ao término da produção”, comemorou Meehan.
“A mRNA-1273 foi (resultado de) um acúmulo de 10 anos de pesquisas básicas e clínicas na Moderna.”
A empresa americana está testando também vacinas de RNA contra os vírus da gripe, HIV e zika, além de doenças autoimunes e outras condições de saúde. A BioNTech também está na fase de estudos pré-clínicos (ainda sem humanos) com vacinas de RNA contra o HIV, tuberculose e malária, entre outros.
A reportagem tentou entrevistas com representantes dessas empresas, mas não obteve resposta.
Pesquisa no Brasil contra o HPV
A cientista Jamile Ramos da Silva, doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP), explica que o estudo de vacinas de RNA começou a tomar corpo nos anos 1990.
“Só que por muito tempo, essas vacinas se mostravam altamente frágeis: se você simplesmente inocular esse RNA, ele pode ser entendido pelo corpo humano como infecção e ser destruído (antes de ele produzir o efeito desejado). O nosso corpo não era preparado pra enxergar isso como vacina, e as tecnologias foram aprimoradas ao longo do tempo”, conta a pesquisadora, que defendeu sua tese de doutorado no início de dezembro, explorando três tipos de vacinas baseadas em RNA para tratamento de tumores induzidos pelo HPV.
Para impedir a destruição imediata do RNA, uma solução que passou a ser estudada foi envolver este material genético em uma capa de gordura, as chamadas nanopartículas lipídicas. Em 2005, foi publicado um artigo científico demonstrando que essas nanopartículas poderiam ser produzidas em escala; e em 2018, o FDA (a agência eguladora de medicamentos dos EUA) aprovou pela primeira vez um medicamento que envolve a entrega do RNA encapsulado por uma nanopartícula lipídica.
“Essa capa de gordura é muito semelhante à composição da membrana plasmática das nossas células. Isso permite que, no corpo humano, elas não sejam tóxicas, não gerem reação.”
A solução reanimou o desenvolvimento de vacinas de RNA para infecções virais, câncer, entre outras doenças.
Jamile da Silva é pesquisadora colaboradora da ImunoTera, uma empresa de biotecnologia fundada por pesquisadoras que estudavam juntas no Instituto de Ciências Biomédicas da USP e tiveram incentivos da universidade para empreender. Por isso, a ImunoTera é chamada de uma spin-off da USP, ou seja, uma empresa derivada das pesquisas realizadas na universidade.
A ImunoTera, sediada em São Paulo, está se preparando para realizar nos próximos anos ensaios clínicos com candidatas a vacinas terapêuticas contra o câncer, incluindo as de RNA. A empresa explora também tratamentos contra doenças infecciosas.
A tecnologia patenteada pela ImunoTera junta uma proteína ativadora ao chamado antígeno viral — ou seja, uma proteína correspondente ao vírus que se quer combater. Em sua pesquisa de doutorado, orientada pelo professor Luís Carlos de Souza Ferreira, Jamile Ramos da Silva usou a plataforma da ImunoTera contendo um antígeno do HPV, o vírus do papiloma humano, que pode causar alguns tipos de câncer.
A pesquisadora também fez um período do doutorado na Universidade da Pensilvânia, EUA, instituição de referência nos estudos com vacinas de RNA.
Já existe uma vacina preventiva contra o HPV, aplicada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil em meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos idade, além de alguns grupos específicos. Esta não é uma vacina de RNA, mas sim do tipo recombinante.
Já as vacinas de RNA em estudo e que têm como alvo o HPV visam ajudar no tratamento de cânceres induzidos por este vírus. Em seu trabalho de doutorado, Jamile da Silva afirma ter tido resultados “altamente promissores” nos três tipos de vacina de RNA que testou em camundongos.
Fundadora e diretora científica da ImunoTera, Bruna Porchia Ribeiro ressalta que o futuro das vacinas terapêuticas provavelmente não as colocará como tratamento único contra o câncer. Elas deverão ser associadas a outras intervenções, como a quimioterapia e a radioterapia.
“Dificilmente a gente vai ter um único remédio pra tratar (câncer). A gente tem uma gama enorme de tipos de câncer — cada um tem a sua peculiaridade, a sua forma de tratamento. Associar terapias realmente é uma estratégia que vem sendo muito debatida nessa área e explorada por outros pesquisadores. Você tem a chance de diminuir a quimioterapia e trazer mais qualidade de vida pro paciente associando à imunoterapia. Esse é o caminho para tratamento de câncer para os próximos anos”, diz Porchia.
Uma ‘nova era da medicina’
Jamile Ramos da Silva lembra que, ao iniciar seu doutorado em 2016, resultados positivos com vacinas de RNA estavam começando a aparecer, mas eram incipientes. Agora, finalizado o doutorado e uma pandemia de coronavírus depois, ela enxerga que a tecnologia avançou para outro patamar.
“Como na pandemia tivemos a necessidade de desenvolver vacinas mais rápidas e seguras, foi uma oportunidade de testar isso em ensaios clínicos e mostrar que, de fato, essas vacinas são passíveis de serem utilizadas em humanos. Porque a gente não tinha anteriormente nenhuma aprovada e licenciada. Isso abre um leque para que sejam testadas outras vacinas, não só contra a covid, mas também para imunoterapia (para câncer)”, aponta a cientista.
Além da eficácia e segurança demonstradas nos ensaios clínicos e na própria imunização de grandes populações durante a pandemia, as vacinas de RNA disseminaram a tecnologia e deram um lucro sem precedentes a empresas que estão explorando sua aplicação em outras doenças, com destaque ao câncer. Isso deverá também alavancar a área da imunoterapia.
Um relatório para investidores da BioNTech mostrou que, considerando o período de janeiro a setembro, a receita da empresa saltou de €136,9 milhões (R$ 872 milhões) em 2020 para €13,4 bilhões (R$ 86 bilhões) em 2021. Para o mesmo período de nove meses, a Moderna divulgou ter tido receita de US$ 232 milhões em 2020 e, em 2021, de US$ 11,2 bilhões. Ambas companhias atribuíram estes expressivos aumentos na receita às vacinas contra a covid-19.
O oncologista Alessandro Leal destaca que, embora a pandemia de coronavírus tenha deixado um “grande legado” para o desenvolvimento de vacinas de RNA, a proposta para o câncer é diferente.
“Todo mundo infectado com a covid-19 tem a proteína spike (circulando no organismo), então a vacina pode ser universal. Só que nossos traços genéticos são diferentes: a gente espera que os traços genéticos dos tumores das pessoas sejam diferentes. Então é preciso fazer uma vacina específica para o sistema imunológico reconhecer as mutações, as alterações genéticas do tumor de uma pessoa ou de outra”, aponta Leal, membro da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) e consultor médico do Programa de Medicina de Precisão do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
“É algo que acompanha uma nova era da medicina, que a gente conhece como medicina personalizada ou de precisão. O desenvolvimento de novas tecnologias de sequenciamento genético tem permitido a individualização do tratamento”, aponta Leal.
Entretanto, o oncologista destaca que personalização implica em altos custos, o que não é trivial no leque de tratamentos para câncer, que já são caros.
“Quando você tem esse nível de individualização, há aumento de custos”, diz, apontando para etapas custosas como o sequenciamento genético e a confecção, em laboratório, de moléculas de RNA envoltas em cápsulas de gordura.
Apesar desta forte demanda financeira, Leal diz que as vacinas personalizadas de RNA contra o câncer são “um caminho sem volta” e explica que os tumores que mais podem se beneficiar dessa terapia são aqueles que tendem a ter uma melhor resposta com imunoterapias hoje. Exemplos deles são alguns tipos de câncer de intestino, de mama, pulmão e melanoma.
Fonte: BBC News