Um projeto pioneiro desenvolvido pelo InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), com apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e parceria com a Cisco, viabilizou cirurgias cardíacas em crianças com cardiopatia congênita à distância.
Câmeras e microfones de alta resolução acoplados no equipamento médico e no centro cirúrgico, especialistas do InCor participaram de 16 cirurgias, remotamente, em crianças que foram operadas no Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (HU-UFMA), vinculado à rede Ebserh.
As cirurgias foram realizadas pelos médicos locais, com apoio da equipe do InCor de São Paulo, em tempo real.
A ideia central do projeto, que ainda está em fase experimental, é futuramente diminuir a fila de espera em grandes centros urbanos, como São Paulo, apoiando a equipe local para que ela consiga realizar o procedimento com mais segurança.
As cirurgias começaram a ser realizadas em outubro de 2022 e, até agora, todas tiveram excelente resultado.
Uma das crianças escolhidas para participar do projeto foi a pequena Maria Helena, de 4 anos. A menina tem síndrome de down e nasceu com cardiopatia congênita, como explica a mãe, Eliane Sousa de Oliveira, 41.
“Nós começamos a perceber que ela tinha algum problema a partir dos 15 dias de vida. Levamos no pediatra e ele confirmou que ela tinha sopro no coração. Daí começou nossa luta”, conta Eliane, acrescentando que a partir dos 3 anos o quadro de saúde da filha piorou.
“Ela ficava muito cansada, irritada, gritava e daí não dormia mais direito, não brincava, não corria. A gente vivia na emergência”, lembra a mãe, que precisou parar de trabalhar logo depois que a menina nasceu para se dedicar aos cuidados com a filha.
Helena ficou na fila de espera para realizar a cirurgia cerca de dois anos, mas foi através de uma ligação do SUS (Sistema Único de Saúde) que a família foi informada de que ela havia sido incluída no projeto do InCor.
“E foi por isso que ela conseguiu operar, graças a Deus, alguns dias antes de ela completar 4 anos”, diz a mãe, aliviada.
Vinícius Nina, cirurgião cardiovascular do HU-UFMA, responsável pela cirurgia de Helena, explica que a menina já estava com o coração bem aumentado de tamanho.
“Ela tinha o que a gente chama de átrio único, a membrana que separa o lado direito do lado esquerdo entre os átrios do coração não se formou. Então nós fizemos a correção, fechamos esse defeito e ela teve uma evolução muito boa”, afirma o médico.
A telecirurgia, como o projeto é chamado, fez com que Helena realizasse o procedimento em sua cidade natal, em São Luís (MA). A princípio, diz a mãe, ela precisaria se deslocar à Fortaleza (CE), pois era o lugar mais provável que poderia atendê-la. No entanto, a família não tinha condições de arcar com os custos da viagem.
“Mas depois deu tudo certo e ela conseguiu operar aqui. Hoje ela está bem e em processo de recuperação. Ela é uma criança bem ativa”, comemora Eliane.
‘Vi meu filho quase morto saturando 16%’
Pedro Lucas, hoje com 1 ano, nasceu com uma cardiopatia congênita complexa muito grave.
O lado esquerdo do coração do menino não se formou corretamente e, por isso, a passagem de sangue era bem reduzida. A mãe, Ladjane da Silva Cordeiro, 33, descobriu o problema na 23ª semana de gestação.
“Mas o Pedro surpreendeu os médicos, porque ele nasceu bem, com o peso adequado e uma boa saturação. Ele ficou 15 dias na UTI para ser acompanhado, mas não teve nenhuma intercorrência”, conta a mãe, que também é enfermeira.
Desde o nascimento, Pedro precisou ser acompanhado pela cardiologista pediátrica e uma equipe multidisciplinar. Mesmo assim, ele ficou 6 meses normalmente com a família em casa.
“Mas, em janeiro desse ano, o Pedro passou mal, começou a ficar roxo e com muita falta de ar. Nós o levamos para o hospital, ele ficou intubado num estado gravíssimo e começou uma luta para transferi-lo para o Hospital Universitário Materno Infantil, porque não era tão fácil assim”, explica a mãe.
O menino conseguiu ser transferido para o hospital referência da cidade em um final de semana, mas teve duas infecções.
“De sábado para domingo, ele chegou a saturar 16%, e quem satura isso está morto. Eu vi meu filho morto. A médica me disse que ele era um paciente muito grave mesmo e que só um milagre de Deus para salvá-lo. Mas, se tudo corresse bem até quarta-feira e os exames melhorassem, ele seria operado”, recorda-se a mãe que, até então, não sabia que o filho havia sido selecionado para participar da telecirurgia.
É importante explicar que a saturação é um valor em porcentagem que representa a quantidade de oxigênio circulante no sangue. Uma saturação normal varia entre 100% e 95%, embora alguns médicos considerem até 92%.
O cirurgião responsável pela cirurgia do menino no Maranhão explica que o menino nasceu com o que os especialistas chamam de ventrículo único.
“Um dos lados do coração não desenvolveu durante a formação embrionária dentro do útero, e essa parte não desenvolve mais. Então a gente fez uma cirurgia para poder melhorar a oxigenação dele, para que chegue mais sangue ao pulmão”, detalha Nina.
Pedro fez a cirurgia no início de fevereiro, quando estava com 7 meses.
“Quando eu soube que o Pedro foi um dos escolhidos para participar desse projeto pioneiro, eu fiquei surpresa, porque se essa cirurgia não fosse feita aqui, em São Luís, a gente teria que ter ido para outro estado e fazer o impossível, porque não tínhamos condições financeiras”, relata a mãe.
“O Pedro foi uma das crianças abençoadas para participar desse projeto. Eu achei extraordinário. Fiquei muito feliz por ele ter sido operado por duas equipes maravilhosas. Essa junção deu muito certo. Isso salvou o meu filho e pode salvar muitas outras crianças, porque existe uma fila muita grande e a gente fica com mais esperança quando vemos esse tipo de projeto”, desabafa Ladjane.
Pedro passou por um pós-operatório muito difícil com várias intercorrências, mas após um mês, finalmente, recebeu alta e pôde ir para casa.
“Esse tempo que está conosco depois da cirurgia, ele já desenvolveu muito. Hoje ele toma as medicações do pós-cirúrgico, vitaminas, faz fisioterapia, é acompanhado pela cardiologista, mas está ótimo. Ele é o nosso milagre de Deus, porque ele tinha tudo para nem ter existido na visão médica, mas hoje ele é uma criança normal com um coração especial”, diz a mãe, emocionada.
Cardiopatia congênita é problema grave
A cardiopatia congênita é um conjunto de malformações na estrutura ou na função do coração que surge ainda durante o desenvolvimento fetal. Anualmente, no Brasil, estima-se que cerca de 30 mil crianças por ano nasçam com o problema.
“Por exemplo, tem a comunicação interventricular, que significa que a membrana que separa o lado direito do lado esquerdo está incompleta. Daí a criança nasce com um buraquinho que causa um sopro. Então, a cardiopatia congênita é um defeito de nascença no coração”, define Vinícius Nina, cirurgião cardiovascular do HU-UFMA.
De acordo com o especialista, embora prevalente, cerca de 80% das cardiopatias congênitas têm cura. “E esses defeitos, uma vez corrigidos, a criança pode ter uma vida normal. Por isso é importante que a mãe faça o pré-natal corretamente”, reforça Nina.
Contudo, há uma longa fila de espera para realizar a cirurgia, e ela varia muito de acordo com o hospital e a região. Mas, de um modo geral, o déficit é grande.
“Dessas quase 30 mil, temos a expectativa de que 70 a 80% dessas crianças precisem ser operadas. Isso dá umas 22 ou 23 mil cirurgias por ano, e a gente está fazendo perto de 10 mil. Então existe uma deficiência de 50 a 60%, dependendo do local”, esclarece Marcelo Biscegli Jatene, diretor do serviço de cirurgia cardíaca pediátrica do InCor e um dos coordenadores do projeto de telecirurgia.
Jatene, que também é professor livre-docente da disciplina de cirurgia cardiovascular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP, ressalta, ainda, que na região sul e sudeste o déficit é menor, quando comparado ao norte e nordeste.
“Nessas regiões, a nossa expectativa é que só entre 20 e 30% dessas crianças estão sendo atendidas. Já na região sul e sudeste, nós conseguimos atender mais de 60% das crianças.”
O cenário das cardiopatias congênitas no Brasil, portanto, está longe do ideal. Há muita dificuldade em diagnosticar, tratar e transferir as crianças para hospitais especializados. E essa situação se agravou ainda mais durante a pandemia.
“Nós começamos a buscar alternativas para tentar minimizar um pouquinho esse cenário de déficit de atendimento às crianças com cardiopatia congênita, com alguma tecnologia que pudesse ser aplicada de imediato”, explica Jatene.
Por isso, a equipe do InCor chegou na proposta de um telemonitoramento do ato cirúrgico, composta não só pelo cirurgião, mas também por outros profissionais, com uma sala de comando onde a equipe pudesse participar em tempo real da cirurgia que estaria sendo realizada em outro local.
“E com isso a gente conseguiria minimizar o problema do não atendimento, ou seja, essa criança vai ser operada por uma equipe que atende no local onde ela reside, sem precisar ser transferida, com o respaldo dessa equipe cirúrgica do InCor”, diz Jatene, lembrando que embora seja um trabalho em conjunto, a decisão final é do cirurgião responsável pelo procedimento.
“São cirurgiões capacitados, mas que precisam de um suporte adicional durante a cirurgia”, descreve o diretor do InCor, frisando que a ideia é ajudar esses centros hospitalares que têm menos experiência, mas não menos capacidade técnica, com acompanhamento e alguns procedimentos.
À princípio, as cirurgias foram realizadas em parceria com o Hospital Universitário do Maranhão, em crianças com cardiopatia congênita, mas o InCor tem expectativa de ampliar o projeto e atender outros centros ainda neste ano.
Para Fabio Biscegli Jatene, diretor da divisão de cirurgia cardiovascular, vice-presidente do conselho do InCor e professor titular de cirurgia cardiovascular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o projeto de telecirurgia está sendo muito bem executado.
“Eu estou impressionado, positivamente, pelos resultados que tivemos. Foi além das minhas expectativas do início até agora. A interação, integração entre as equipes foi muito boa. Tecnicamente, nós tivemos condições de acompanhar com muito detalhe o que estava acontecendo na Universidade Federal do Maranhão. As imagens foram muito boas, a possibilidade de diálogo e discussão do caso durante a realização da operação também foi muito produtiva”, avalia o vice-presidente do conselho do InCor.
Segundo os especialistas do InCor, esse será um projeto abrangente, inclusive para outras áreas.
“Nós estamos, nesse momento, imaginando isso em relação às cardiopatias congênitas, mas podemos expandi-lo para outras regiões além da Universidade Federal do Maranhão. Podemos também expandi-lo para outras áreas dentro da cirurgia cardiovascular e, por fim, para outras especialidades. Eu vejo esse projeto com muita perspectiva na medida que ele siga avançando”, finaliza o vice-presidente do conselho do InCor.
Texto publicado originalmente no site de notícias BBC News