Enquanto me recuperava da covid-19 em janeiro, recebi mais um diagnóstico.
Os sintomas apareceram primeiramente na infância, mas eu simplesmente não os havia reconhecido. Não existe o equivalente médico a um teste rápido para essa condição. Ela exige a avaliação de especialistas que montam quebra-cabeças de comportamento (usando peças que parecem vir de quebra-cabeças diferentes) para criar um quadro novo e inesperado.
Isso explica por que só fui diagnosticada aos 60 anos de idade com um transtorno do desenvolvimento que me acompanha pela vida inteira. É embaraçoso, mas esta ex-correspondente de ciências da BBC perdeu a chance de dar a grande notícia sobre si mesma.
Sou autista.
É claro que há muito para processar. Na linguagem comum da área, estou “no espectro”. Ou sou neurodiversa. Ou penso “diferente”.
Sou aquela mulher sem controle de volume, que provavelmente interrompeu sua conversa porque um pensamento explodiu na cabeça e saiu imediatamente pela boca.
A mulher que é tão brutalmente honesta que você poderá se lembrar dela como mal-educada. Que ficou entusiasmada demais com selos sobre o espaço ou flores silvestres e insistia em cobrir histórias de mulheres astronautas. Aquela que não se calava e não se omitia.
Um médico disse que sou o diagnóstico com mais idade que ele já conheceu. Muitos adultos contam que se sentem empoderados com um diagnóstico tardio de autismo, mas não estou entre eles. Pelo menos, não por enquanto. Minha reação inicial foi uma mistura de choque e vergonha.
Eu me sentia com defeito.
Desde o diagnóstico, venho lentamente reenquadrando seis décadas de relacionamentos, ações e comportamentos através dessa nova lente alternativa. Da mesma forma que um prisma dispersa a luz branca em um arco-íris, minha compreensão de como e por que eu me comporto da minha maneira está se expandindo. É, ao mesmo tempo, revelador e angustiante.
Como jornalista de ciências, é claro que fiz minha pesquisa e descobri que estou longe de estar sozinha. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos estima que 1% da população mundial está no espectro autista.
Logo, sou uma em 74 milhões.
A maioria das pessoas recebe o diagnóstico quando criança. E a maioria dessas crianças é de meninos. A relação entre homens e mulheres no autismo, segundo a Sociedade Nacional do Autismo do Reino Unido (NAS, na sigla em inglês) é de cerca de 3:1, mas o número de mulheres sendo diagnosticadas com autismo está aumentando.
Os especialistas em autismo perceberam há relativamente pouco tempo que algumas meninas “apresentam-se” de forma diferente dos meninos, o que pode ter causado subdiagnóstico no passado. As meninas eram avaliadas com base nas observações de comportamento dos meninos. E elas nem sempre teriam assinalado as alternativas “certas”.
Como indica a palavra “espectro”, o autismo cobre uma série de condições. A Organização Mundial da Saúde o define como “caracterizado por algum grau de dificuldade na interação social e na comunicação”, além de diferentes formas de comportamento, “como dificuldade na transição de uma atividade para outra, foco nos detalhes e reações incomuns às sensações”.
Ah, sim, as sensações…
Passo a maior parte do meu tempo fora de casa usando óculos de sol, pois meus olhos são sensíveis à luz brilhante. E tenho forte aversão a certas texturas e sons.
Certa vez, eu me recusei a ir para a escola porque os colegas faziam muito barulho para comer e, por muito tempo na minha juventude, minhas refeições eram apenas sopa de tomate e pudim de chocolate. Quando estava na casa dos 20 anos, abandonei minha primeira refeição japonesa, mesmo estando com muita fome, porque eu me engasguei ao olhar para o sashimi.
Eu também não fico totalmente confortável quando alguém chega fisicamente muito perto ou “invade meu espaço”. Eu disfarço esse desconforto oferecendo um aperto de mão ou um sorriso durante a apresentação, em vez da terrível tendência social, cada vez maior, de abraçar ou beijar a pessoa.
Mas posso ser pega desprevenida. Certa vez, um cientista francês inclinou-se em direção ao meu rosto para um cumprimento típico da Europa continental. Eu entrei em pânico e disse a ele, um tanto enérgica: “Para trás!”
E há também minhas peculiaridades com cores. Não me pergunte por que, mas não consigo comer alimentos amarelos e cor de laranja juntos. E pedir um café da manhã típico inglês exige fazer com que o feijão (alaranjado) e o ovo não sejam servidos no mesmo prato, a menos que uma barreira de salsicha seja usada para separá-los. Com tudo isso, é claro que fui eleita a esquisita da família.
Mas todos nós temos nossas peculiaridades, certo?
Na verdade, a não ser por quase ter ofendido aquele cientista – que aceitou minha precipitada explicação “sou britânica” por não ter gostado de receber três beijos no rosto (sim, três, para minha agonia!) -, nenhuma dessas peculiaridades interferiu na minha carreira razoavelmente bem sucedida no setor de comunicação, para uma pessoa com transtorno de comunicação.
Isso porque sou sociável e conversadora, apresento podcasts e consigo dar palestras públicas. Ao contrário de muitos autistas, não tenho problemas para fazer contato visual.
Mas é nos bastidores que as dores e dificuldades do autismo se revelam. Tenho dificuldade para fingir interesse por um tema que não me motiva e sou terrível em conversa fiada, que muitas vezes é importante para conhecer as pessoas. Isso às vezes me causou isolamento e sensação de intensa solidão e rejeição.
Antes da maioria dos eventos ou programas de TV, sofro cólicas estomacais de nervoso, ataques de pânico ou – nos piores cenários – minicolapsos que poucas pessoas testemunham, além do meu marido.
Como faço muitas listas de tarefas diariamente, também fico permanentemente preocupada se as coisas sairão como o planejado. Eu me preparo excessivamente e fico estressada tentando relembrar todo o conteúdo de um livro que li para uma entrevista de três minutos.
Depois que passa o alívio da apresentação, minha tendência é sair na primeira oportunidade para descomprimir e deitar. Muita interação social me deixa fisicamente exausta. Aquela mulher que fala alto retira-se em busca de solidão.
Mas isso, aparentemente, é o que muitas mulheres autistas fazem com frequência. Nós nos “mascaramos” ou fingimos. Escondemos o desconforto com uma fachada de cordialidade e comportamento social treinado.
E aí veio o coronavírus…
Comecei a produzir um novo documentário de rádio semanal com a equipe do programa OS (Outside Source), do Serviço Mundial da BBC (em inglês). Enquanto todos batalhavam para tentar entender uma nova e assustadora realidade, eu reunia pessoas de todo o mundo para compartilhar conversas profundamente significativas.
Como se esperava, muitas dessas conversas eram puras e emocionais. Meu trabalho incluía ouvi-las repetidamente para editá-las.
Nas primeiras horas da manhã, as conversas ressoavam novamente na minha cabeça, uma após a outra. O médico do hospital na Índia que não conseguiu salvar seu pai da covid. A solidão das pessoas isoladas nas pradarias do Canadá ou no interior da Austrália. A tristeza e o luto insuportável dos que perderam entes queridos que morreram sozinhos.
Tive insônia por quase um ano. Na maior parte dos dias, eu trabalhava ouvindo em lágrimas as fascinantes, comoventes, mas muitas vezes insuportáveis histórias humanas.
Como aconteceu com muitas pessoas, a pandemia fez com que os buracos da minha psique se aprofundassem. Eles se ampliaram até se transformarem em abismos de emoções e sensibilidades intensificadas e incontroláveis.
Em alguns dias, ficava deprimida. Em outros, não conseguia parar de pintar, normalmente planetas ou luas, ou identificava flores silvestres compulsivamente.
Depois veio uma obsessão por fungos. Eu andava por horas até encontrar um cogumelo específico. Minhas idiossincrasias sensoriais saíram do controle. O ruído do ventilador do banheiro através da parede do quarto me perturbava física e mentalmente.
Alguma coisa não estava certa. Um médico concordou e me encaminhou para uma equipe de saúde mental, mas todas as pessoas estavam tendo crises de saúde mental. Passaram-se meses até eu chegar a receber uma ligação telefônica preliminar.
Uma pesquisa da Sociedade Nacional de Autismo do Reino Unido (NAS) em 2019 relatou que a ansiedade e a depressão são os problemas mentais mais comuns para os autistas e que três em cada quatro adultos precisaram de auxílio com sua saúde mental nos cinco anos anteriores. Nem me atrevo a imaginar quais serão os números atuais.
Felizmente, em 2021, houve uma coincidência. Eu estava produzindo para o Serviço Mundial da BBC o documentário radiofônico Smart Women, Male Genius (“Mulheres inteligentes, homens gênios”, em tradução livre), que analisa o sexismo das posturas sociais e científicas com relação à inteligência.
As condições do autismo variam desde a debilitação da fala, linguagem e problemas cognitivos que exigem cuidados por toda a vida até problemas sociais mais leves. E, em todas as pessoas, essa condição está presente em pessoas com uma série de QIs diferentes.
Enquanto eu pesquisava a inteligência, descobri que – embora essa correlação não tenha sido comprovada – a genialidade muitas vezes é associada a uma forma de autismo conhecida como Síndrome de Asperger. Isso alimenta erroneamente a noção de que os gênios são, em sua maioria, homens, já que eles são a maioria dos diagnosticados com Asperger.
O nome da síndrome vem do pediatra austríaco Hans Asperger, que realizou importantes pesquisas sobre autismo infantil. Mas a maioria dos profissionais evita utilizar o seu nome, já que a história revelou que Asperger colaborou com o Terceiro Reich no assassinato de crianças. A Associação Psiquiátrica Norte-Americana chegou a remover o termo Asperger da quinta edição do seu Manual de Diagnósticos e Estatísticas em 2013.
Atualmente, a expressão preferida para todos os tipos de autismo é Transtorno do Espectro Autista (TEA). Mas TEA também não agrada a todos porque o termo “transtorno” pode ter conotação negativa. Por isso, já se vê a expressão Condição do Espectro Autista (CEA).
Eu marquei uma entrevista com a bioquímica Camilla Pang para o programa. Ela foi diagnosticada com Asperger quando criança e escreveu o premiado livro Explaining Humans (“Explicando os seres humanos”, em tradução livre) sobre a sua condição. Ler o seu livro me trouxe uma série de momentos de iluminação.
Depois da nossa pré-entrevista, eu mencionei quantas das suas experiências coincidiam com as minhas e que o livro me fez pensar em buscar uma avaliação de autismo. Ela achou uma ótima ideia.
Existe onde moro uma lista de espera de dois anos para obter um diagnóstico de autismo infantil. Para os adultos, leva muito mais tempo, então procurei uma empresa conceituada e paguei por uma avaliação particular.
A avaliação incluiu diversos questionários longos e consultas com psicólogos. Um deles entrevistou minha mãe por várias horas sobre meu comportamento quando criança.
Enquanto aguardava o resultado, percebi que, se o autismo não justificasse meu comportamento, os frequentes mal-entendidos e outros aborrecimentos não intencionais, minha família então estava certa. Minha doença era falar sem pensar, mesmo.
Mesmo assim, o diagnóstico positivo para CEA ainda me surpreendeu. Ficou terrivelmente claro no relatório, por exemplo, que eu tinha pouca consciência de como meu comportamento era percebido durante a avaliação.
Depois de ler como eu realmente havia feito monólogos (minhas palavras, não deles) sobre alguns dos meus temas favoritos, eu me senti muito constrangida. Alguns dos exercícios sociais simples mostraram uma disparidade quase absurda entre como eu achava que havia me saído e o julgamento clínico dos profissionais. E o meu contato visual nem sempre era bom.
A avaliação descobriu coisas que eu já sabia. Eu só comecei a falar aos 18 meses de idade e minhas primeiras palavras foram “veja as luzes”, no Natal. E também descobriu coisas que eu não sabia ou que talvez me recusasse a relembrar, como a minha perda de cabelo por estresse com 11-12 anos de idade.
Ao final da avaliação detalhada com 30 páginas, seis dos nove livros recomendados eram sobre Asperger.
A ativista do clima Greta Thunberg, que também tem Asperger, descreveu suas diferenças de pensamento resultantes do autismo como “superpoder”. Ainda não cheguei a esse estágio. Mas as características do autismo “escondidas à vista de todos” estão esclarecendo o meu passado e o presente.
A avaliação está ajudando a mim e ao meu marido a compreender meu comportamento e ansiedades. Ele acredita que seja por isso que achei o trabalho como repórter de ciências terrivelmente estressante.
O jornalismo, por definição, lida principalmente com mudanças. Mas, ao contrário da maioria dos jornalistas (incluindo ele), eu odeio atualizações ou notícias de última hora, porque elas prejudicam meus planos. Basicamente, eu estava no pior emprego possível para uma pessoa que fica ansiosa com mudanças inesperadas.
E isso também explica por que eu gravitei em torno de documentários mais longos e escrevi meu livro, Wally Funk’s Race for Space (“A corrida para o espaço de Wally Funk”, em tradução livre). São atividades muito menos estressantes, que satisfazem minhas obsessões e recompensam minha atenção aos detalhes, já que eu me concentro nas minúcias. É uma boa qualidade para a edição, mas, às vezes, perde-se o panorama geral.
Enfim, estamos vivendo tempos estranhos (em muitas formas), mas posso imaginar um dia em que as partes fragmentadas da minha vida, aqueles quebra-cabeças que não faziam sentido, reaparecerão com mais clareza e entendimento.
Durante a consulta ao final da avaliação, o psicólogo contou que muitos dos seus clientes autistas também haviam relatado sintomas de piora durante a pandemia, de forma que o mais importante agora é controlar minha ansiedade.
A família e os amigos têm oferecido apoio incrível. Ninguém ficou muito surpreso. Na verdade, vários dos meus familiares têm autismo – muitos mais do que eu imaginava.
E o mais importante é que, mesmo nas minhas poucas discussões pessoais até aqui, já incentivei uma jovem – cujos sintomas são iguais aos meus – a iniciar seu próprio processo de diagnóstico. E outra amiga finalmente está buscando o diagnóstico da sua filha, depois de perceber que ela é simplesmente igual a mim.
É por isso que precisamos vir a público sobre o autismo. Essa nova compreensão da vida é um enorme presente. Eu gostaria de ter conseguido o diagnóstico antes. Reconheço que ainda estou processando a novidade, mas não acho mais que sou alguém com defeito. Apenas meus fios estão ligados de outra forma. E tudo bem.
Fonte: BBC News
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês)