Quando o bebê americano Curtis Means nasceu, em julho de 2020, poucos acreditavam que ele iria sobreviver. Sua mãe, Michelle Butler, grávida de gêmeos, havia entrado em trabalho de parto com apenas 21 semanas de gestação.
A irmã gêmea de Curtis, C’Asya, morreu um dia depois. Mas o menino, que pesava somente 420 gramas, surpreendeu a todos e, após meses de internação, foi para casa e acabou sendo reconhecido pelo Guinness World Records como o bebê mais prematuro do mundo a sobreviver.
Exemplos como o de Curtis são raríssimos, mas vêm sendo usados por oponentes do aborto para questionar um ponto central na decisão que garantiu esse direito nos Estados Unidos: o conceito de viabilidade fetal, momento a partir do qual o feto pode sobreviver fora do útero.
Em 1973, com a decisão no caso Roe versus Wade, a Suprema Corte, mais alta instância da Justiça americana, estabeleceu o direito constitucional ao aborto. Mas a decisão também permitiu aos Estados limitar esse direito depois do segundo trimestre ou 28 semanas de gestação, que na época era considerado o ponto de viabilidade fetal.
Em 1992, no caso Planned Parenthood versus Casey, a Suprema Corte reafirmou “o direito da mulher de optar por um aborto antes da viabilidade” e ressaltou que “o direito de interromper a gravidez antes da viabilidade é o princípio mais central de Roe versus Wade”.
Esses precedentes determinam que, antes de a gestação chegar ao ponto de viabilidade fetal, nenhum Estado pode impedir uma mulher de exercer seu direito ao aborto. Mas, passado esse ponto, os Estados ficam livres para regular o procedimento, com a exceção de casos em que seja necessário para preservar a vida ou a saúde da gestante.
Nas décadas seguintes, avanços médicos permitiram que bebês nascidos cada vez mais cedo conseguissem sobreviver, e hoje o consenso é o de que o ponto de viabilidade costuma ocorrer em torno de 24 semanas. Mas, dependendo do hospital e dos cuidados que recebem, bebês nascidos com 23, 22 e, em casos raros, até 21 semanas de gestação têm sobrevivido.
Isso vem gerando um debate sobre se a viabilidade fetal ainda é um critério legítimo para determinar quando um Estado pode proibir ou não a interrupção da gravidez. Agora, o tema está no centro de um caso diante da Suprema Corte que pode colocar em risco o direito ao aborto nos Estados Unidos.
Proibição a partir de 15 semanas
O caso em questão, Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization, se refere a uma lei no Estado do Mississippi que proíbe a interrupção da gravidez a partir de 15 semanas de gestação, muito antes de um feto conseguir sobreviver fora do útero. Há exceção apenas para algumas emergências médicas e “anormalidade fetal severa”.
Ao longo das últimas cinco décadas, vários Estados aprovaram leis que proibiam o aborto antes da viabilidade fetal. Essas leis acabavam derrubadas na Justiça, por serem consideradas inconstitucionais.
Ao analisar outros casos sobre o tema, a Suprema Corte sempre reafirmou o direito de interromper a gravidez até o ponto de viabilidade. Mas, desta vez, tanto opositores quanto defensores do aborto acreditam que o resultado poderá ser diferente.
A decisão sobre a lei do Mississippi, que deve ser anunciada somente no final de junho, será a principal sobre o aborto depois da entrada na Suprema Corte da juíza conservadora Amy Coney Barrett, nomeada no final do mandato do presidente Donald Trump.
Barrett ocupa a vaga deixada por Ruth Bader Ginsburg, juíza morta em 2020 e que era voz crucial na defesa dos direitos reprodutivos. Com Barrett, o tribunal passou a ter uma supermaioria de seis juízes na chamada ala conservadora (nomeados por presidentes republicanos) e apenas três na ala liberal (nomeados por democratas).
Caso os juízes decidam manter a lei do Mississippi em vigor, terão de derrubar inteiramente Roe versus Wade ou, pelo menos, descartar a parte fundamental que define a viabilidade fetal como critério para que um Estado possa proibir o aborto. Seja qual for a decisão, terá impacto em leis no resto do país.
‘Critério arbitrário’
Defensores da lei do Mississippi argumentam que a viabilidade é um critério arbitrário e deve ser descartado. Na verdade, a decisão de estabelecer este como o fator que determina se um Estado pode proibir o aborto sofreu críticas desde o início.
Inicialmente, o juiz Harry Blackmun, autor da opinião da maioria na decisão sobre Roe versus Wade, propôs que o limite fosse o final do primeiro trimestre de gestação, em torno de 13 semanas. Na época, Blackmun escreveu que reconhecia que tanto o primeiro trimestre quanto a viabilidade eram pontos arbitrários.
“Um dos motivos pelos quais a Corte considerou estabelecer o limite no primeiro trimestre é que a maioria dos abortos nos Estados Unidos, e em vários outros países, ocorre nesse estágio”, diz à BBC News Brasil a professora de Direito Mary Ziegler, da Florida State University.
“O primeiro trimestre parecia ser tempo suficiente para que as pessoas tivessem acesso aos recursos necessários para um aborto”, observa Ziegler, que é autora de diversos livros sobre o tema, entre eles Abortion and the Law in America: A Legal History of the Abortion Debate (Aborto e a Lei na América: Uma História Legal do Debate sobre Aborto, em tradução livre).
Mas Ziegler ressalta que, diferentemente de outros países desenvolvidos, nos Estados Unidos não existe um sistema de saúde universal que cubra abortos. Alguns juízes da Suprema Corte na época argumentaram que isso poderia dificultar o acesso ao aborto no primeiro trimestre, especialmente para gestantes de baixa renda.
No fim, o critério adotado foi o ponto a partir do qual o feto pode sobreviver fora do ventre, mas isso nunca foi considerado ideal.
“Muito cedo as pessoas perceberam que não era uma linha muito estável, porque poderia mudar não apenas à medida que a tecnologia evoluísse, mas também dependendo da gravidez, do hospital, da parte do país e dos recursos disponíveis, entre outros fatores”, afirma Ziegler.
Mudança dramática
O médico Edward Bell, professor de pediatria e neonatologia da Universidade de Iowa, lembra que, no início de sua carreira, nos anos 1970, o limite da viabilidade era considerado em torno de 28 semanas de gestação e peso de pelo menos 1 kg.
Mas, segundo Bell, nas últimas cinco décadas houve uma mudança dramática na idade gestacional que separa bebês considerados muito imaturos para receber cuidados intensivos daqueles que podem se beneficiar desses tratamentos.
“Agora temos bebês com 300 gramas sobrevivendo”, diz Bell à BBC News Brasil. “Se olharmos apenas para as semanas de gestação, o limite (de viabilidade) caiu em cerca de uma semana a cada dez anos.”
O médico ressalta que a viabilidade é mais complexa do que apenas a idade gestacional do feto.
“Há outros fatores que determinam as chances de sobrevivência, como se a mãe recebeu esteroides, se é um único bebê ou se são gêmeos e o tamanho do bebê, entre outros”, enumera Bell. “Podemos ter dois bebês com a mesma idade gestacional, e um deles terá muito mais chances do que o outro.”
Muitos hospitais nos Estados Unidos se recusam a tratar de bebês nascidos com menos de 23 semanas de gestação, argumentando que não seria ético submeter esses prematuros e suas famílias à dor de intervenções médicas agressivas e prolongadas, já que a chance de sobrevivência é muito baixa.
Mas um número crescente de hospitais vêm oferecendo tratamentos nesses casos, desde administração de esteroides nas grávidas em risco de parto prematuro (que auxilia o desenvolvimento dos pulmões do feto) até ressuscitação e intubação dos recém-nascidos e terapia com surfactante (para ajudar no amadurecimento dos pulmões).
Chance de sobrevivência
Atualmente, calcula-se que cerca de 5 mil bebês nasçam com 22 ou 23 semanas de gestação nos Estados Unidos a cada ano. Bell e o médico Matthew Rysavy, também da Universidade de Iowa, são autores de estudos demonstrando como esses bebês têm chances de sobreviver se receberem cuidados intensivos.
Em estudo de junho passado, Bell, Rysavy e outros médicos analisaram dados de cerca de 900 hospitais americanos. Em 2007, somente 26% ofereciam tratamento a nascidos com 22 semanas, e a taxa de sobrevivência era de 5%. Em 2019, tratamentos já eram oferecidos em 58% dos hospitais, com taxa de sobrevivência de 17%.
Os pesquisadores calculam que “entre 150 e 250 bebês nascidos com 22 semanas de gestação sobrevivem nos EUA a cada ano”. Entre os nascidos com 23 semanas, o número de sobreviventes chega a ser cinco vezes maior.
As taxas de sobrevivência variam, mas vêm aumentando, resultado de uma série de avanços médicos nas últimas décadas, entre eles tratamentos para melhorar a respiração, alimentação e digestão desses bebês e mantê-los aquecidos, além de instrumentos médicos menores, adaptados para o tamanho dos prematuros.
“E, principalmente, simplesmente entender que sobrevivência e bons resultados são possíveis”, diz Bell.
Bebês nascidos extremamente prematuros precisam de cuidados intensivos e caros e enfrentam meses de internação. Quanto menor a idade gestacional, maior a chance de complicações, e muitos enfrentam problemas de saúde de longo prazo.
Paralisia cerebral, problemas pulmonares, cegueira, surdez, dificuldades motoras, epilepsia e deficiência no desenvolvimento neurológico estão entre os possíveis problemas de saúde que esses prematuros poderão enfrentar. Mas nem todos irão apresentar sequelas.
Argumentos
O trabalho de especialistas como Bell muitas vezes é politizado, tanto por defensores quanto por opositores do aborto, algo que o médico lamenta. “O meu trabalho e o dos meus colegas é cuidar de bebês. A maioria de nós não está particularmente envolvida no debate sobre o aborto”, afirma Bell.
Mas, à medida que novos avanços na área vão surgindo, o ponto de viabilidade fetal deve continuar a ocorrer cada vez mais cedo, influenciando as discussões sobre o tema nos Estados Unidos. Mais de 95% dos abortos no país são realizados antes desse ponto, e a maioria ocorre no primeiro trimestre de gestação.
Um dos argumentos dos defensores da lei no Mississippi é o de que ela afetaria apenas uma pequena parcela dos abortos, já que a clínica no centro do caso diante da Suprema Corte é a única ainda em funcionamento no Estado, e só oferece o procedimento até 16 semanas de gestação.
Mas opositores da lei lembram que uma decisão favorável ao Mississippi, descartando o critério de viabilidade, abriria o caminho para que outros Estados também possam limitar o procedimento em estágios da gravidez em que o feto não conseguiria sobreviver fora do útero.
Muitas gestantes, especialmente de baixa renda, enfrentam dificuldades para obter abortos antes de 15 semanas. É comum que precisem viajar quilômetros, dependendo da localização das clínicas, o que exige recursos financeiros e folga no trabalho, entre outros empecilhos. Além disso, várias clínicas exigem pelo menos duas visitas, com alguns dias de intervalo, antes de realizar o procedimento.
Especialistas salientam que as decisões da Suprema Corte costumam ser imprevisíveis. Mas, durante os argumentos orais sobre o caso, em dezembro passado, os seis juízes da ala conservadora deram indicações de que pretendem manter a lei do Mississippi.
Mary Ziegler, da Florida State University, afirma que é possível que a Suprema Corte decida não apenas descartar a viabilidade como critério, mas derrubar Roe versus Wade por completo. Nesse caso, o aborto passaria a ser regulado somente pelos Estados, que poderiam proibir o procedimento em qualquer estágio da gravidez.
Segundo análise do Centro de Direitos Reprodutivos, organização de defesa do direito ao aborto, o procedimento seria proibido em pelo menos 24 Estados e três territórios americanos caso a Suprema Corte derrube Roe versus Wade.
“O movimento antiaborto não quer parar (na proibição) em 15 semanas”, ressalta Ziegler. “Muito da discussão sobre viabilidade e leis de 15 semanas é mais um ponto de partida na luta para proibir o aborto (completamente) nos Estados.”
Fonte: BBC News