O aborto espontâneo é um baque, mas não significa o fim do sonho de ser mãe. Veja o depoimento de quem passou por isso (como eu) e conseguiu ter um filho. Entrevistamos, ainda, um time de especialistas que explicam as principais causas e sintomas dessa complicação, comum no primeiro trimestre da gravidez.
Sempre quis ser mãe. Por isso, aos 29 anos, com oito meses de casada, decidi não usar mais nenhum método contraceptivo. Já no primeiro mês, minha menstruação atrasou e, como meu ciclo é bem regular, senti que algo estava diferente. Comprei o teste de farmácia durante o almoço no expediente no trabalho e aqueles dois risquinhos apareceram tão nitidamente que não tive dúvidas: estava grávida! Fui invadida por uma felicidade que não cabia dentro de mim. Gritei de alegria, contei para todo mundo, ri e chorei de emoção. Visualizava a minha barriga crescendo, o quartinho, o enxoval… Como era gostoso pensar naquela vida que estava se desenvolvendo.
Ao chegar em casa, contei a meu marido, que já queria ser pai há muito tempo, principalmente depois que o dele se foi. Ficamos bobos e rindo por horas, só fazendo planos para nossa família. No dia seguinte à notícia, fiz o Beta HCG, exame de sangue que confirma a gravidez, e o resultado mostrou o que, na verdade, eu já sabia. Era hora de contar a nossos pais e irmãos.
Iniciei o pré-natal e, com nove semanas de gestação, revelei a novidade no trabalho. Afinal, não dava mais para esconder das pessoas que conviviam diariamente comigo as razões para não comer aquele habitual chocolate à tarde (só fruta!) e evitar refrigerante. Foi uma semana de muitos sorrisos, abraços, cuidados, planos, sonhos… até presentes para o bebê eu ganhei.
Uma semana após a revelação, o cenário mudaria completamente. No fim da tarde, senti uma cólica forte no trabalho. Quando cheguei em casa, a dor se intensificou e tive uma sensação de desmaio. Deitei na cama e percebi que um líquido escorria pelas minhas pernas. Era sangue, abundante e de cor viva. “O sangramento e as cólicas na gravidez não necessariamente significam que a mulher está abortando, pois cerca de 15% das gestantes podem ter sangramento vaginal”, explica o ginecologista e obstetra Domingos Mantelli (SP), que é autor do livro Gestação: Mitos e Verdades sob o Olhar do Obstetra e colunista da CRESCER.
No meu caso, não tive dúvidas de que precisava correr para o hospital. O pânico tomou conta de mim. No PS, fiz um ultrassom transvaginal, já que aquele feito sobre a barriga não consegue detectar o feto no comecinho da gestação. Descobri que estava no início de um aborto, mas que o meu filho ainda estava ali. Precisei fazer repouso de três dias e, ao repetir os exames de sangue e de imagem, tive a confirmação de que não havia mais bebê em meu ventre.
Até hoje, após seis anos, não esqueço o momento em que a médica disse: “Infelizmente, não há nenhum batimento cardíaco”. Não, eu ainda não tinha ouvido o coração do meu filho bater. Sim, eu estava bem no início da gravidez. Mas a verdade é que já me sentia mãe, mesmo sendo tão cedo. “A partir do momento que o teste dá positivo a mulher já vivencia a maternidade. Portanto, em qualquer perda, no começo ou no final da gestação, ela passa pelo luto materno”, diz a psicóloga Raquel Benazzi, especialista em luto materno-infantil, de São Paulo. Segundo ela, a primeira fase do luto é a revolta [veja as outras na página a seguir]. Foi o que senti na pele. Falei besteiras, chorei e gritei na sala da médica. Disse que nunca mais queria ter filho.
Depois de cumprir todos os protocolos no PS e ver muitas mulheres grávidas chegando ao hospital para ter seus bebês ou saindo com eles no colo, simplesmente não queria ver nem falar com ninguém.
No dia seguinte, fui ao consultório do meu ginecologista cobrar uma explicação. Calmamente, ele informou que se tratava de estatística e que eu fazia parte dos 25% de mulheres, na faixa dos 30 anos, em que a gravidez não “vinga”. Essa porcentagem aumenta para 30% depois dos 35 anos e para 35% após os 40. Depois dos 45 anos, a chance de abortar chega a 50%. Os especialistas acreditam que a incidência possa ser ainda maior, pois muitas podem ter o ciclo irregular e achar que foi simplesmente um atraso menstrual. Ou seja, elas engravidam, abortam e não sabem.“Geralmente o aborto espontâneo precoce ocorre entre a 6ª e 14ª semana, sendo a complicação mais comum do primeiro trimestre. Porém, pode acontecer tardiamente, até a 20ª semana”, diz o ginecologista e obstetra Eduardo Zlotnik, coordenador da Pós-Graduação em Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Israelita Albert Einstein (SP).
Embora a mulher busque, em um primeiro momento, se perguntar por que aconteceu com ela e o que fez de errado, é difícil achar um responsável. Estima-se que 80% dos casos de aborto espontâneo são decorrentes de anomalias cromossômicas, ou seja, embriões que não se desenvolvem bem já nas primeiras etapas da divisão celular e, assim, não têm condições para sobreviver. Os outros 20% ficam por conta de problemas de saúde da mulher, como doenças autoimunes, quando o corpo rejeita o feto como um organismo estranho e invasor; problemas endócrinos, como deficiência na produção de progesterona; alterações no funcionamento da tireoide; miomas uterinos; colo do útero aberto; obesidade ou magreza extrema; e predisposição à trombose.
Também merecem atenção, segundo os médicos, os hábitos de vida. Embora nenhuma pesquisa científica seja conclusiva sobre como fatores externos podem influenciar no aborto, é preciso ter cautela com algumas práticas. “Indico diminuir a ingestão de cafeína (até três xícaras de café por dia), ficar longe de drogas, álcool e alimentos crus, que podem causar infecções graves no início da gestação. Além disso, é preciso evitar medicamentos e vacinas sem orientação médica. Quanto mais saudável a mulher estiver, maiores são as chances de a gravidez progredir”, diz a ginecologista e obstetra Fabiana Ruas, coordenadora do pronto-socorro ginecológico do Hospital e Maternidade São Luiz (SP).
Ou seja, aquela culpa que me invadia por ter subido as escadas do prédio, ter tomado refrigerante e pegado meu sobrinho mais novo no colo realmente não fazia o menor sentido. Questionei o médico se poderia ser mãe ou se teria algum problema para engravidar. Mas ele me garantiu que não havia nada de errado comigo – aliás, meus exames estavam todos normais. Por isso, não seria necessária uma investigação naquele momento, a não ser após um terceiro episódio de aborto.
Essa é, inclusive uma recomendação de diversos especialistas, mas não um consenso. “Acho muito traumático. Por isso, já no primeiro aborto peço à paciente para fazer exames complementares, como o de sangue, hormonais, de glicemia e os de imagem para avaliar o útero. Sabemos que a baixa quantidade de progesterona no organismo pode dificultar a formação do corpo lúteo, que é uma glândula endócrina que se desenvolve no ovário após a ovulação, fundamental para que a gravidez aconteça. Nesse caso, a suplementação com progesterona evita o aborto. E se o útero tiver alguma abertura, é preciso fazer a cerclagem”, diz Mantelli.
Outro fator apontado pelos especialistas como causa do aborto espontâneo é a idade, não só da mulher, cujo risco aumenta por causa do envelhecimento dos óvulos, mas também do homem. Um estudo feito pela Universidade de Columbia e pelo Instituto de Psiquiatria de Nova York (EUA) com 657 mulheres que sofreram aborto espontâneo sugere que ele é 54,5% mais provável quando o esperma envolvido na concepção é de um homem de mais de 40 anos.
Como eu já havia descartado todos esses possíveis problemas, só me restava entender que o meu caso havia sido de má-formação fetal e, assim, tentar uma nova concepção.
Essa decisão, no entanto, não é fácil. Isso porque, depois de uma perda gestacional, muitas mulheres ficam traumatizadas e até colocam a gravidez em dúvida. Mas há aquelas, como eu, que encaram o medo para realizar o desejo de ser mãe. “O que faço para engravidar de novo?”, perguntei ao médico. Ele explicou que eu deveria apenas continuar tentando e relaxar, já que meu corpo havia expelido e não seria preciso esperar. Por mais difícil que seja, a expulsão natural do feto é a mais recomendada porque preserva o útero. “A natureza com certeza fará seu papel, mas o organismo pode demorar cerca de 30 dias para expelir, sem qualquer risco de infecção para a mulher”, diz Zlotnik, que deixa a paciente decidir se quer esperar ou não.
Quando a retirada do feto é feita por meio da curetagem, em que se faz uma raspagem dentro do útero, ou da aspiração, em que um aparelho suga o feto para fora da vagina, a cavidade uterina pode ficar danificada. Assim, ela precisa de um tempo maior para se recompor para que um embrião consiga se desenvolver ali dentro. Por isso, o recomendado é esperar dois ciclos menstruais para engravidar novamente após esses procedimentos cirúrgicos.
Seja qual for o processo de saída do feto, os médicos recomendam de três a sete dias de repouso. “Na verdade, a mulher fica bem fisicamente rápido, mas esse prazo é por causa do emocional, já que a maioria fica bastante abalada”, diz Fabiana. Em alguns casos, o ginecologista indica acompanhamento com um psicológo para que a mulher consiga lidar com a perda.
Apesar da dúvida que ronda muitos futuros pais, o risco de um aborto não é maior para quem já sofreu um anteriormente. Se a mulher respeitar as recomendações médicas, as chances são exatamente as mesmas em uma segunda gestação. Eu sou um exemplo disso.
Depois de um mês no processo de luto, minha menstruação atrasou novamente. Demorei cerca de 15 dias para fazer o Beta HCG e nem quis ir até o laboratório pegar o exame. Queria esperar. Meu marido, que sofreu junto comigo todos esses dias, decidiu que olharia o exame pela internet e… bingo! Sim, eu estava grávida de novo, um mês após ter perdido um filho. Um pouco mais contida, mas com aquela mesma felicidade que não cabia em mim, decidi que só avisaria os parentes mais próximos – é isso o que pedem os especialisas, inclusive. Como a incidência de aborto no primeiro trimestre é alta, a mulher sofre mais explicando e vivenciando a situação várias vezes.
Acredito que o mais difícil depois que você passa por um aborto é acreditar que tudo pode ser diferente. Eu mal respirava. Várias vezes acordava à noite com receio de o bebê não estar mexendo. Também fiquei neurótica com ultrassom. Queria tranquilizar meu coração e fazê-lo várias vezes, o que não é recomendado nem necessário.
Os dias passaram, ganhei confiança e, depois de oito meses vivendo esse mix de felicidade e medo, João Pedro nasceu. Consegui realizar meu tão esperado sonho de ser mãe. O curioso é que ele adiantou quase um mês e praticamente veio ao mundo na mesma data prevista para o nascimento do filho que perdi. Hoje, relembrando tudo que passou, acredito que tenho mais motivos para agradecer do que ser invadida pela tristeza de uma gravidez interrompida.
Três abortos
Eu e meu marido queríamos ter três filhos. Só que, depois de um ano de tentativas, descobrimos que ele tinha baixa quantidade de espermatozoides. Enquanto decidíamos se tentaríamos a fertilização in vitro (FIV) ou se adotaríamos, engravidei. Foi uma alegria. A Stephanie foi o melhor que poderia acontecer na minha vida. Quando ela tinha 1 ano, engravidei de novo. Mas a felicidade só durou dez dias, pois tive um sangramento e abortei naturalmente. A situação se repetiu seis meses depois. Mudei de médico e decidi investigar. Descobri que tinha resistência insulínica e tomei remédios para regularizar. Engravidei pela quarta vez e levei a gestação até o fim. Nasceu Letícia, que tem síndrome de Down. Mesmo realizada com as duas, não desisti de ter o terceiro sonhado filho. Por isso, quatro anos depois, engravidei novamente. Só que na 16ª semana, abortei no banheiro de casa. Minha bolsa estourou, tive um sangramento intenso e o bebê saiu. Meu marido chegou até a cortar o cordão umbilical. Corremos para o PS e lá fizeram curetagem para retirar a placenta. Foi muito difícil passar por tudo isso, mas hoje tenho a alegria de contar que um ano depois de mais esse triste momento estou na 10ª semana de gravidez e na minha sexta gestação. O medo ainda é grande, claro, mas não é maior do que minha fé.
Renata Andrejuck Ferreira, 40 anos, mãe de Stephanie, 9, Letícia, 5, e grávida de 10 semanas.
Antes de subir no altar
Depois de namorar por 12 anos, marquei meu casamento. Faltando um mês para o dia D, descobri que estava grávida. Em um primeiro momento, fiquei assustada, mas depois comecei a curtir a ideia. Na décima semana de gestação, ao fazer o ultrassom, soube que estava com um aborto retido. Tratei como se nada tivesse acontecido e queria expelir o bebê naturalmente. Mas, como tinha um casamento pela frente, a médica indicou fazer a curetagem, pois eu poderia abortar a qualquer momento, inclusive no altar. Depois daquela indiferença inicial, sofri muito. Fiquei um dia inteiro gritando no quarto e dizendo ao meu namorado que eu não iria casar. Já tinha feito um discurso para anunciar na festa a novidade para todos. Vivi aquela tão esperada noite como se não fosse eu. O vestido de noiva encobria um absorvente gigante. Eu ia o tempo todo ao banheiro para checar se não tinha manchado nada. As pessoas dizem que eu estava feliz, mas não me lembro do meu casamento. No dia seguinte, fomos para nossa lua de mel na Europa e, quando coloquei o pé no avião, só chorava. Após o aborto, meu ciclo menstrual “pirou”. Decidi que não queria ter outro filho até que, sete meses depois, engravidei novamente. Rezamos os nove meses para que tudo desse certo – e deu. Hoje, minha Catherine é minha vida, e meu mundo.
Lívia Polichisio, 31 anos, mãe de Catherine, 1 ano.
Era uma menina
Ser mãe era um sonho, por isso, assim que descobri, fiz logo o exame de sexagem fetal para saber o sexo. Estava esperando a Alice. Com 12 semanas de gestação, marquei o ultrassom e levei minha mãe e minha sogra para verem a primeira neta delas. Elas estavam radiantes, minha mãe já tinha até bordado o nome da Alice no enxoval. Mas, ao encostar o aparelho na minha barriga, o médico falou sobre ausência de batimentos cardíacos. Minha vontade era de morrer ao saber que minha Lili tinha ido embora. Decidi fazer a curetagem para acabar logo com o sofrimento, mas não estava preparada para tudo aquilo. Enquanto as enfermeiras colocavam os acessos para eu receber as medicações e entrar no centro cirúrgico, tive um surto. Gritei, arranquei todas aquelas agulhas e dizia que ninguém iria tirar minha filha da minha barriga. Fui sedada. Quando acordei, sabia que ela não estava mais em mim. Os dias seguintes foram difíceis. Sofri demais com a perda da minha filha. Quatro meses depois, no entanto, engravidei novamente e, dessa vez, só quis contar para as pessoas na 12ª semana. Os nove meses foram cheios de medo, mas consegui curtir a alegria de esperar e ter um bebê. Thomas me faz sentir a mulher mais feliz e realizada deste mundo.
Michele Lozardo, 35 anos, mãe de Thomas, 10 meses.
Se as causas do aborto ainda são obscuras para a medicina, o sofrimento durante e após o episódio é concreto. Por isso, ainda que em passos tímidos, poucos hospitais já estão acolhendo melhor essas mães. Em alguns, depois da perda gestacional, a mulher já passa em consulta com um psicólogo para iniciar um tratamento, caso seja necessário. Em outros, o atendimento a quem acabou de abortar é feito longe da maternidade. “Não dá para colocar essa mulher na mesma ala daquelas que estão plenas e felizes com seus filhos nos braços. Por isso, a deixamos em outro andar, sem acesso ao berçário e em quartos diferentes dos que existem na maternidade”, conta a ginecologista Fabiana Ruas, do Hospital e Maternidade São Luiz (SP).
A medicina também avança nas descobertas para minimizar o trauma de perder um bebê. Recentemente, cientistas da Universidade de Heidelberg (Alemanha) desenvolveram um teste para detectar o risco de aborto já na quarta semana de concepção. Os pesquisadores acreditam que, com um diagnóstico precoce, pode-se reduzir o período de incerteza e de ansiedade das mulheres sobre a gravidez vingar. Eles estudaram mulheres entre 18 e 42 anos que não tinham histórico de perda gestacional e que fizeram tratamento para engravidar e descobriram uma proteína capaz de detectar quando a mulher tem uma lesão ou inflamação, podendo, portanto, prever o risco de aborto. “Há vários marcadores envolvidos no aborto espontâneo e são necessárias novas análises para dizer se essa proteína está presente em todos os casos. Mas é claro que esse estudo é um primeiro passo”, diz Zlotnik.
Depois de sofrer um aborto, os pais precisam superar a perda. Segundo a psicóloga Raquel Benazzi, antes de tentar engravidar novamente o casal deve ter uma conversa franca para saber se os dois estão emocionalmente preparados para uma nova gestação. “Eles só conseguem descobrir isso quando vivenciam as cinco fases abaixo. Passar por todas elas pode levar meses ou até dois anos”, diz. É importante que o casal tenha em mente que, se estiver difícil demais encarar o problema, é válido procurar ajuda de um profissional.
1. Negação – a mulher não aceita que teve um aborto e tenta se convencer de que era um sonho.
2. Raiva – ela passa a se questionar por que aconteceu. chora e grita na tentativa de eliminar esse sentimento ruim.
3. Barganha – é aquele momento de oferecer algo em troca de uma nova gestação. Há casais que fazem até promessas.
4. Depressão – a tristeza profunda aparece quando os futuros pais se dão conta de que a perda é real.
5. Aceitação – o casal entende que é preciso passar por aquilo e seguir em frente.
Fonte: CRESCER