O capitão Roberto González navega há 25 anos, mas nunca tinha visto nada assim: um aglomerado de “lanternas vermelhas” brilhando à noite no rio Paraguai.
De sua barcaça, ele recomenda que sua tripulação tenha muito cuidado ao descer para ancorar a embarcação. Aqueles olhos brilhantes são de crocodilos que dominaram as margens do rio.
“Antes, pouco ou nada se observava. Agora, com certeza os lugares deles secaram e há uma quantidade impressionante”, diz González à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Quando diz “antes”, ele se refere ao tempo anterior a esse rio ter experimentado uma queda histórica em sua vazão, que está no nível mais baixo em 51 anos, devido à forte seca que atravessa a região.
O rio Paraguai tem uma importância estratégica sem igual para o país que lhe dá nome.
Isso porque, sem saída para o mar, o Paraguai tem grande dependência deste curso de água.
O rio Paraguai nasce no Mato Grosso, atravessa brevemente a Bolívia, o Paraguai e deságua no rio Paraná, que por sua vez desemboca no Oceano Atlântico na bacia do rio da Prata.
“Para nós, o rio Paraguai é a única rodovia que temos para sair ao mar e esta rodovia está com problemas”, disse Pedro Mancuello, vice-ministro do Comércio do Paraguai, à BBC News Mundo.
A escassez de chuvas nos últimos meses no Pantanal brasileiro, que alimenta o rio Paraguai, fez com que o rio atingisse a mínima histórica, 4 a 8 centímetros abaixo de seu zero hidrométrico (o padrão para medir sua vazão, localizado em porto de Assunção, medido na quinta-feira passada).
Em certos pontos, o rio não é mais profundo o suficiente para que navios comerciais maiores transportem grãos, combustível ou minério de ferro.
“Na bacia do Paraná houve chuvas, mas a situação do rio Paraguai é absolutamente crítica”, diz à BBC Mundo Esteban dos Santos, presidente do Centro de Armadores Fluviais e Marítimos do Paraguai.
“A profundidade cai a uma taxa de três centímetros por dia”, acrescenta.
Tanto ele como o governo preveem que dentro de alguns dias ou semanas, se tudo continuar como antes — as chuvas dos últimos dias não têm sido suficientes — os navios terão de ficar atracados no porto.
“Se não for encontrada uma solução e esta situação persistir, a navegação será praticamente impossível, estimamos, dentro de um mês ou mais”, reconhece Jorge Vergara, diretor do Diretor de Projetos Estratégicos do Ministério das Obras Públicas e Comunicações.
As consequências para a economia do país, que teve o melhor desempenho frente ao coronavírus em todo o continente americano, segundo dados recentes da agência de notícias financeiras Bloomberg, podem ser terríveis.
Segundo dados do Ministério do Comércio, em 2019, 52% das importações (o principal parceiro é a China) e 73% das exportações de produtos ocorreram por via fluvial.
O Paraguai é um dos maiores exportadores mundiais de produtos agrícolas, incluindo soja, e possui uma das maiores frotas fluviais.
Pelas águas de seu rio homônimo, são transportados desde minério de ferro extraído no Brasil a contêineres com importação da China.
Barcos ancorados
Devido à vazão insuficiente, há navios que permanecem atracados, ou transportam menos carga do que o habitual (até 60% de sua capacidade), ou têm de fazer escala no porto do Pilar, de onde o transporte segue por via terrestre.
São mais de 350 quilômetros até Assunção, em vez do trajeto normal ao longo do rio até o centro portuário de Villeta, a poucos quilômetros da capital.
Isso aumenta os custos, pois o transporte fluvial é consideravelmente mais barato.
Guillermo Ehreke, diretor de uma empresa de navegação, diz que mais de 20 dos 80 navios que movimentam cargas regularmente não podem navegar.
“Temos oito embarcações na Bolívia, três em San Antonio (Paraguai) e 12 em San Lorenzo (Argentina). Tecnicamente não estão encalhadas, mas não conseguem navegar por falta de água”, afirma.
“Essas barcaças estão paradas há três meses. Primeiro foi por causa da crise do coronavírus, que reduziu drasticamente o consumo de combustível. E então, quando estavam a ponto de voltar a operar, ficaram presas.”
O empresário estima que sua empresa esteja perdendo entre US$ 3 milhões e 4 milhões (R$ 17 milhões a 23 milhões) por mês em faturamento.
Quem está vivendo o problema na pele é o capitão Nelson Samudio, que permanece “em terra firme”, mas que, até a semana passada, navegava pelas águas do rio.
“Estávamos trazendo 12 barcaças vazias de San Nicolás, na Argentina, para carregar minério de ferro nas minas de Ladário (Brasil). Mas tivemos que parar em San Antonio (Paraguai), porque o calado é muito limitado e não podíamos mais chegar lá”, explica.
A distância entre os dois pontos por terra é de cerca de mil quilômetros.
O impacto até o momento para o setor privado paraguaio é de US$ 250 milhões, segundo dados do Centro de Armadores Fluviais e Marítimos.
Para sair dessa situação, o rio precisa de operações de dragagem em seus pontos mais críticos.
O governo está licitando atividades de dragagem emergencial no valor de US$ 21 milhões e o uso dos recursos, que já foi aprovado pela Câmara dos Deputados, precisa ser aprovado no Senado.
Segundo Vergara, a dragagem já estava planejada, mas os recursos destinados a ela tiveram que ser realocados no combate à pandemia do coronavírus.
Agora, ele estima que as empresas poderão começar a trabalhar em dois meses, mas até lá prevê “semanas muito complexas”.
“O mais grave seria a falta de combustível, mas também o custo extra em todos os bens de consumo”, resume Santos Santos.
Além da solução emergencial, o rio precisa de manutenção contínua entre o ponto de junção com o rio Paraná e a cidade de Concepción, afirma Roberto Salinas, presidente da Associação Paraguaia de Logística.
Manifestação
O custo de mantê-lo navegável a 11 pés, que tem cerca de 10 pés de profundidade, seria de cerca de US$ 150 milhões, diz ele.
A situação no rio Paraná, também afetado pela seca, também não é boa, mas seus trechos críticos começaram a ser dragados em janeiro.
“Embora sejam dois rios diferentes, não podemos compará-los porque o Paraná é mais abundante e apresenta pontos mais críticos […] e por isso o Governo previu essas obras”, declarou o representante da Comissão Mista Paraguai-Argentina do Rio Paraná, Martín González.
Segundo González, “com essas dragagens conseguimos melhorar os níveis de navegação do rio, visto que estamos passando por secas históricas”.
Falta crônica de água
A baixa vazão do rio Paraguai pode ser explicada ora pela seca que atinge o país desde março ora pelo fenômeno meteorológico La Niña desde setembro, explica à BBC Mundo Raúl Enrique Rodas, diretor de Meteorologia e Hidrologia do governo paraguaio.
A seca também gerou uma onda de incêndios tão devastadora que o Parlamento declarou estado de emergência nacional em todo o país no início deste mês.
A falta de água é, no entanto, um problema crônico no Paraguai.
Para dar uma solução ao menos parcial, e depois de vários anos de planejamento e execução, o governo inaugurou este ano um grande projeto para levar água à região do Chaco, que tem graves problemas de abastecimento.
O conhecido Aqueduto do Chaco leva água do rio Paraguai até a altura de Puerto Casado, a cerca de 650 quilômetros de Assunção, ao longo de cerca de 200 quilômetros até o Chaco Central, de onde se distribui para as colônias menonitas e algumas 84 aldeias indígenas.
Algumas semanas atrás, no entanto, ele estava fora de serviço, pois quase nenhuma água entrava na área de captação do rio.
Suprimentos básicos
Além da falta de água, o rio é vital para que muitas comunidades tenham acesso a suprimentos básicos.
Para Bahía Negra, cidade ribeirinha separada do Brasil apenas pelo rio, os suprimentos chegam apenas uma vez por semana de barco.
O barco que os transporta sai da cidade de Concepción, apelidada de “Pérola do Norte”, e chega a Bahía Negra depois de parar em vários portos.
Os ribeirinhos sobem então para fazer as compras naquele que é um verdadeiro mercado flutuante, o único em que têm acesso a fruta e legumes, visto que o solo desta região não é adequado para cultivo.
Devido à falta de vazão atual, “na última sexta-feira, o navio encalhou e chegou atrasado”, diz à BBC Mundo Saúl Arias, que trabalha em projetos de educação ambiental para a associação Eco Pantanal.
O rio é a opção mais barata e segura para levar suprimentos para a comunidade, assinala Arias, e se o barco não consegue chegar lá, a única alternativa é uma estrada de terra.
Não é de estranhar que Pedro Mancuello, vice-Ministro do Comércio do Paraguai, tenha mencionado repetidamente em conversa com BBC Mundo, a relação entre o clima, a natureza e a economia.
“Temos que conciliar nosso desenvolvimento produtivo e de consumo com o cuidado com o meio ambiente”, diz Mancuello.
“A natureza está nos enviando sinais”, acrescenta.
Fonte: BBC News